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Fiquei surda por causa de meningite quando tinha dezesseis meses de vida. Como tinha pouco tempo de vida, não tinha noção da perda auditiva, meu avô materno que, gostava de bater palmas e assobiar ao brincar comigo, notou que eu parei de olhar para ele quando me estimulava. Foi daí que minha mãe me levou ao pediatra, este logo me encaminhou a um otorrinolaringologista para fazer o diagnóstico. Foi constatada uma perda auditiva em torno de 95 decibéis, principalmente dos sons agudos, isto é, surdez profunda. |
Fui criada numa família grande com avós e muitos tios e já falava os
nomes de todos e várias palavras quando queria alguma coisa, por
exemplo, água, xixi, cocô, bala, papa, etc. Andava, dançava e
conseguia cantar algumas músicas numa linguagem com sons
onomatopaicos. Aos poucos fui esquecendo as palavras e os diversos sons que repetia e somente gritava sons como "tatá-pá-ah-rá". Principalmente, quando queria algo e as pessoas não entendiam, eu gritava, chorava, batia e esperneava. Por morar rodeada de adultos, sou primeira filha, sobrinha, neta - fui mimada e todos me paparicavam. Com a surdez, fiquei intransigente, pirracenta. Apesar da minha família ter sido orientada para não me tratarem de forma diferente, ela não conseguia agir comigo de forma natural, muitas vezes sentiam pena e me mimavam cada vez mais. Minha mãe ficou preocupada em buscar a força interior que a impulsionaria para a luta pela conquista dos métodos que poderiam me tornar bem integrada ao meio, o que a levou ao Centro Verbo Tonal. Os métodos utilizados pelo Centro Verbo Tonal eram adaptados ao oralismo. Minha mãe ficou mais consciente de seu papel de educadora e partiu para a luta que levasse à minha independência, e não se acomodou e nem se acobertou pela auto-piedade, pois ela sempre soube que o tempo era precioso e quanto mais cedo a estimulação, Eu poderia atingir um bom desenvolvimento. Além do Centro Verbo Tonal, também estudei na Escola Regular, onde minha mãe exercia supervisão pedagógica, o que facilitou muito o meu desenvolvimento educacional. Eu era considerada uma aluna rebelde e revoltada, daí as dificuldades que as professoras enfrentavam com paciência e tolerância. Ressalto a importância que minha mãe exerceu na minha vida. Ela não poupou esforços e sacrifícios para me fazer independente socialmente. Ela me ensinou que posso passar acima da minha limitação, e além disso ela foi e ainda é minha grande mentora. Apesar da surdez, só descobri a Língua de Sinais já na fase adulta, aos 21 anos de idade. Comecei a trabalhar em Prefeitura de Belo Horizonte, onde passei a conviver com surdos, fiquei tão entusiasmada com novas amizades e nem sequer sabia a língua de sinais para poder me comunicar com eles! Então me esforcei para aprender, pois afinal era a minha própria língua, porque eu não tinha direito a esta língua antes? Porque minha família achava que oralismo era melhor para mim, não tive a minha própria língua! Eu tive de passar por muita coisa para ter identidade própria, a de ser surda, tive de lutar, combater para chegar aqui, antes eu era mais como "cópia de ouvinte", muito submissa no poder dos ouvintes, estas histórias de ouvintes que acham que ali e aquilo é certinho para o surdo, por exemplo, é preciso falar bem e ler lábios para ter o mesmo "patamar" que os ouvintes, justamente por isso que a educação de surdos no Brasil e no mundo andam tão mal, tudo isso porque os surdos são muito sacrificados para serem "reabilitados" os surdos são "medicalizados". Por mais absurdo que seja, o objetivo da maioria das "escolas especiais" de surdos é reabilitar e não educar... fico tão puta! Tem pouquíssimas escolas de surdos que educam de verdade, respeitam o ser surdo como diferente e não deficiente. Não tenho sentimentos negativos diante das dificuldades, ao contrário, me impulsionam a enfrentar obstáculos. Um dia minha colega de trabalho me disse que eu jamais chegaria à faculdade por causa da minha surdez, eu a desafiei a prestar vestibular comigo e quando saiu o resultado, eu disse a esta pessoa: "Você é ouvinte, eu sou surda e estou por cima de você". Foi um desafio e mostrei a ela que a minha surdez é menor do que a ignorância dela. Mas, de qualquer forma, agradeço a ela por ter me impulsionado a chegar ao curso superior. Faço curso superior de Pedagogia. Já solicitei à Faculdade uma Intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) para me ajudar a acompanhar as aulas visando um desempenho ainda melhor. Com fundamentação na Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional nº 9.394 de 20/12/96, artigo 58, argumentei o pedido acima. A Faculdade respondeu que é preciso aguardar regulamentação da lei. A Faculdade poderia pelo menos ter boa vontade em ajudar-me, afinal, ela se transformou no Centro Universitário e o credenciamento foi aprovado pela "excelência de ensino" e como a "filosofia" da faculdade é "fazer do estudante um ser humano transformador, capaz de tornar este país uma grande nação", irônico, não? A minha educação toda era baseada no oralismo, desde maternal até o curso superior onde estou hoje. Apesar disso, não consigo captar 90% da fala dos professores, então fico lendo muito e procuro entender um pouco melhor nos livros e apostilas indicados pelos professores. Mas isso é suficiente? NÃO!!! Eu quero tanto "ouvir" como meus colegas da sala, fico tão frustrada e deprimida não poder participar ativamente das aulas, não tenho raiva por ser surda, aliás tenho orgulho de ser surda, não considero a surdez como uma deficiência e sim uma diferença, só tenho raiva porque não tenho o suporte da faculdade, o reitor diz que tenho boas notas e não tenho necessidade de apoio especializado, ora, fico me matando, estudando de madrugada, pego mil livros na biblioteca, quando o professor indica apostilas, livros, muitas vezes não entendo a linguagem destas indicações, são muito científicas, técnicas... então vou à caça de outros livros com linguagem mais suave, mais simples para poder entender a disciplina, bem como os conteúdos. Já fiz de tudo para sensibilizar o reitor, fiz requerimentos, abaixo-assinado da Comunidade Acadêmica, passeata cibernética, mas tudo foi em vão... A minha vitória é só uma questão de tempo, não vou me graduar de mãos abanando, tenho de abrir caminhos para outros surdos, ainda há muito a lutar, às vezes choro, esperneio, desabafo, brigo com os professores, colegas, coordenadores, funcionários... não quero só Intérprete de Língua de Sinais, também quero filmes legendados nas aulas, nem com isso a faculdade preocupa, fico danada!! Esta é a minha batalha, a batalha de todos os surdos. Às vezes sou muito "chata", exijo muito, não tenho paciência de ver o tempo passar, eu apenas quero o meu direito de ter uma EDUCAÇÃO PLENA E SIGNIFICATIVA! SENHOR REITOR, ainda vou vencê-lo!!! Estar no mundo de surdos, me ajudou a ter a minha independência emocional, auto-estima, coragem para prosseguir os estudos... estou estudando para poder dar educação aos meus semelhantes, só de pensar nisso que vou lutando até a exaustão, por isso a minha luta na faculdade não é gratuita... Tenho orgulho de ser surda, isso só há cinco anos anos atrás... Escolhi pedagogia por gostar muito das pessoas parecidas comigo. Gostaria muito de poder contribuir, com a minha formação acadêmica, na qualidade de ensino aos surdos, daí o desafio que isso representará em minha vida. Vejo isso como uma motivação e crescimento pessoal. Email - paty@ez-bh.com.br
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