Suely

Nasci aos 6 meses e meio, de parto difícil, sem assistência médica, sem recurso nenhum, em casa, num sítio de uma família japonesa. Tive anóxia na hora de nascer (falta de oxigenação no cérebro) e, segundo uma neurologista, alguns neurônios que estavam em formação no corpo caloso morreram e eu fiquei com a paralisia cerebral do tipo atetóide. Isto aconteceu em 08/01/53.

Após o nascimento, minha mãe improvisou uma "incubadeira" caseira, que servia também de bercinho. Ela arranjou uma caixa de uvas "Niagara", feita de ripas e a forrou com algodão. Como eu tinha de receber calor, ela colocou duas garrafas de refrigerante com água quente dos dois lados da caixa, também revestida em algodão, para eu não me queimar. Minha alimentação era feita com chumacinhos de algodão embebido em leite de minha mãe, que ela espremia em minha boca. Foi assim até eu alcançar o tamanho "normal" de bebê recém-nascido.

Depois de 4 meses eu ainda não tinha os movimentos de uma criança normal e ai meus pais começaram a me levar a massagistas, médicos, etc. e minha mãe movimentava meus braços e pernas, sempre com cuidado, sempre vendo meus limites. Intuição materna.

Mais tarde, com dois anos, minha mãe teve a idéia de me pesquisar e me estimular intelectualmente. Ela lia estórias infantis para mim, todos os dias e pedia para que eu apontasse determinada personagem ou qualquer outra coisa mencionada na estória contada e eu acertava todas. A partir daí ela teve a certeza de que a parte intelectual não estava afetada. Neste mesmo periodo, minha avó paterna deu uma indireta para me colocar numa instituição para deficientes mentais, o que a minha mãe se negou, pois ela pensava que a criança que precisava de mais cuidados e amor não deveria ser "largada" numa instituição, longe da família.

Após muita procura, disseram para ir à AACD. e ai comecei a minha vida escolar no jardim da infância, na A.A.C.D., com 4 anos e meio. Fiquei lá até os 7 e ½, quando Dr. Bonfim, juntamente com a diretora pedagógica disseram para a minha mãe que eu não necessitaria ficar lá e o melhor seria me colocar numa escola comum, pois a deficiência que apresentava não era (e não é) muito limitadora e se eu ficasse lá, a tendência era a piora do quadro, porque eu só teria crianças mais comprometidas que eu como modelos.

Lá, eu me sentia fora de lugar, porque eu não tinha que usar cadeira de rodas, aparelhos, muletas e outras coisas para poder andar. E, também, não tinha cicatrizes enormes pelas pernas e braços, não tinha nenhuma atrofia, e outras coisas assim.

Depois disto, meus pais matricularam-me num colégio perto de casa e lá fui eu. Há um pequeno detalhe: a escola era particular e era religioso. Por que? Na cabeça de minha mãe, era para me poupar das crianças de escola pública, por que eram mais agressivas e não haveria quem me protegesse das chacotas dos coleguinhas, como em colégio religioso. Viva a super proteção!

E lá fui eu, estudava e procurava fazer tudo como as outras crianças; parecia como as outras, mas não era bem assim e eu também sentia isto. Outra vez, sentia que estava fora de lugar.

É interessante, pois, dentro da sala de aula, eu era vista como uma super aluna - aplicada, estudiosa, inteligente, super esforçada, e, pior, colocavam-me como a exemplo a ser seguido! Como isso pesava! E eu não me considerava nada disto, e, ao mesmo tempo, tendia a acreditar e a carregar este peso. Na verdade, esta identidade atribuida foi produto de uma dificuldade que eu tinha em escrever, falar, e de coordenação motora, devido à paralisia cerebral.

Na hora do lanche eu ficava num grupinho de "marginais" — uma era gorda demais para a idade, outra era pobre e simplória para a categoria do colégio, ainda havia uma que era filha de pais desquitados e outra, negra. Sempre foi assim, do primário até o último ano do colegial. Indo um pouco mais além, até a universidade.

Terminado o primeiro grau, tive que mudar de escola, porque não havia o Colegial lá. Para me matricular em outra escola, precisava do atestado médico. Fui até o posto de saúde de Santana fazer o dito cujo, mas, chegando lá, o médico escreveu em meu atestado que eu era retardada mental. Ele nem me examinou direito, viu que eu não articulava bem as palavras (minha fala era bem pior do que agora), era lenta para pegar coisas, enfim, era esquisita, e colocou no papel que eu tinha retardamento mental. Alguns meses antes, fiz um teste vocacional na escola e a minha escala no Quociente de Inteligência – Q.I.– resultou como sendo portadora de deficiência mental.

Na hora, minha mãe ficou muitíssimo furiosa, pegou o exame médico e rasgou-o na frente do médico, dizendo que uma pessoa retardada mental não consegue chegar ao nível colegial. Mesmo assim, ele não voltou atrás e disse que não poderia fazer mais nada.

Depois deste incidente, fomos para a escola que eu iria freqüentar para perguntar se era válido um atestado de saúde dado por um médico particular. As freiras que dirigiam a escola aceitaram. E fomos para o médico que já me conhecia, pois me acompanhou durante toda a minha estada no primeiro colégio, porque ele era o médico de lá. Minha mãe expôs o acontecido, depois de pedir o atestado. Este ficou indignado, chegando a chamar o outro médico de ignorante e quem era retardado era o outro que tinha feito isso e não eu.

Continuando a minha trajetória, freqüentei o Colegial todo, sem problemas aparentes. Sem problemas aparentes, porque, no final de 1º ano, a psicóloga da escola chamou a minha mãe e eu para ter uma conversa séria. Pensei: "É hoje! Fui reprovada!" Mas não era esse o assunto a ser tratado.

O assunto era a minha atitude de não falar em classe. A psicóloga me chamou de egoísta porque não queria compartilhar a minha experiência de vida com as colegas. E eu pensando "Por que? Não há nada demais na minha vida. Ela é desinteressante." E não era bem assim. Com o passar do tempo é que fui entender a bronca que levei.

Eu entrava muda e saia calada da sala de aula porque eu não achava que aquilo que ia colocar era importante, muito pelo contrário. Muito mais tarde, fui ver que o medo de ser descoberta na minha deficiência mental pesava muito. Ao mesmo tempo, lutei para provar, inclusive para mim, de que eu era capaz intelectualmente.

Após o Colegial, prestei o vestibular e entrei para a PUC. em Filosofia. Freqüentei o curso normalmente, durante 1 ano. No 2º ano, eu fui fazer um tratamento de reabilitação para lesados cerebrais. Fiz esse tratamento durante 06 meses, junto com o 1º semestre do 2º ano.

Eu me agarrei a este tratamento como um náufrago agarra sua tábua de salvação. Lá, eu vi crianças e adolescentes serem moralmente maltratados e violentados, porque vítimas de brincadeiras humilhantes por parte dos funcionários que aplicavam os exercícios nos pacientes.Aqueles mal haviam cursado o primeiro grau completo. O corpo de especialistas era composto por uma fonoaudióloga, um clínico geral e um fisiátra, que atendia periodicamente a cerca de 40 pacientes, atendimento este insuficiente em função do número restrito de horas a eles dedicados. Mais grave ainda é que a dita instituição cobrava mensalidades altíssimas, pois o fisiatra e dono da instituição era super-conceituado.

Naquele local também ouvi coisas difíceis de se acreditar, como "ainda bem que meu filho tem muita autocrítica, por isso não fala", que veio como resposta à questão de meu pai da razão do por quê o rapaz não falava, se havia se expressado bem na conversa que tiveram; ou ainda "vou deixar meu filho aqui [em regime de internato], pois ele atrapalha meus compromissos sociais". O primeiro tinha 14 anos, apresentava um levíssimo problema de fala e descoordenação motora quase imperceptível; o segundo tinha entre 4-5 anos de idade, era paralisado cerebral espástico grave.

Após seis meses abandonei o tratamento, por não aguentar o clima de pressão psicológica da instituição e, daquele que se apresentava em mim, que era a negação de minha deficiência e ao mesmo tempo, a sua afirmação. Esta dicotomia se apresentava a mim desde que eu comecei a perceber a realidade fora de mim. A "cura" não aconteceu. Aconteceram a instalação de uma dor de cabeça fortíssima, que não passava com nada, espasmos fortíssimos pelo corpo inteiro, pegando até a glote, que dificultava a respiração, crises de labirintite fortíssimas, o que me levou ao trancamento da matrícula na Universidade. Após procurar muito, encontrei um neurologista que, depois de umas 2 ou 3 consultas, disse para eu tirar o cavalinho da chuva, se estava com esperanças de "cura".

Eu fiquei muito agradecida a ele por isso. Depois, na consulta posterior a isso, ele disse que mais de 70% dos problemas físicos que eu apresentava eram de origem psicológica, e me mandou para um psiquiatra.

Chegando ao consultório, ele solicitou vários exames psicológicos. Após 1 mês, com os resultados em mãos, ele disse que eu tive muita sorte, porque se demorasse mais um pouquinho, eu não estaria lá, mas em outro lugar. E a recuperação iria ser muito mais difícil, uma vez que ele quase estava me atingindo fisicamente.

O desiquilíbrio emocional foi causado pela dicotomia negação-afirmação de minha deficiência física, gerada pelo preconceito aos deficientes que havia se infiltrado em mim.

Um ano mais tarde, após o início da psicoterapia, retornei à universidade, com muito incentivo por parte dos 2 médicos e de minha mãe, onde concluí o curso de Filosofia, iniciei o de Comunicação Social para esperar a permissão do psicoterapeuta, dos psicólogos amigos para começar a pesquisa dos preconceitos que recaiam nos portadores de deficiência física.

Quando voltei a cursar Filosofia, reavivou-se também, desta vez com mais clareza e força, a preocupação com a questão da discriminação que recaía sobre os deficientes, mas não podia ainda trabalhar nela, pois trazia muita dor, revolta e tristeza profunda, que se esteriorizavam sob forma de espasmos fortíssimos generalizados pelo corpo, pois eu ainda não conseguia assumir a minha identidade de deficiente física.

Quando terminei o curso de Comunicação Social, deram o ok e parti para fazer o mestrado em Psicologia Social pela mesma Universidade.

Nesse meio tempo, consegui me ver na condição de pessoa portadora de deficiência, com a ajuda de muita psicoterapia, e me tornei militante pela causa das ppds. Esta militância se deu por conta de minha pesquisa de mestrado sobre a Identidade do deficiente físico. E continuo até hoje como membro do MDPD (Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes) do CEDIPOD (Centro de Documentação e Informação do Portador de Deficiência) http://www.mbonline.com.br., do DEFNET (Banco de Dados sobre e de Portadores de Deficiência) http://www.defnet.org.br, ainda dou palestras sobre as ppd, em especial sobre os pc. e estou dando um curso sobre a identidade dos ppd no Instituto Sedes Sapientiae. Este curso irá ser oferecido também no semestre que vem (2º semestre de 1998).

Depois de passar pela defesa de dissertação, uma professora de pós em psicologia social olhou para mim e disse que não sabia lidar com deficientes físicos, como um apelo. Eu fiquei muito abismada com isso, porque pensei que o grau de ignorância ainda é muito grande em torno destas questões.

Hoje, sou Doutora em Psicologia Social e minha tese foi referente à Identidade dos Paralisados Cerebrais Socialmente Ativos. Esta pesquisa foi editada em livro com o título de "Paralisado cerebral: construção da identidade na exclusão"pela Cabral editora universitária. Agora sei, com certeza, de que eu estava à procura de minha identidade como ser humano desde a escolha de meu curso de graduação em Filosofia.

E, vejo que, apesar dos sofrimentos causados pelos preconceitos e conseqüente discriminação, sou uma pessoa com muita sorte, pois na minha militância e na pesquisa sobre os p.cs., encontrei pouquíssimas pessoas com esta deficiência que chegaram a concluir um curso Universitário com muito esforço, pois havia limitações no próprio corpo e também as barreiras arquitetônicas e os preconceitos. Outros, não chegaram a finalizar sequer o primeiro grau, pois as barreiras atitudinais e físicas são enormes. Ainda, há os que simplesmente foram deixados de lado, ou escondidos, pelas condições não "normais" de funcionamento de uma parte de seu corpo. O mesmo valendo para os outros lados da vida pessoal e social.

Quanto aos outros lados da vida, sempre tive amigos, alguns que permanecem até hoje, desde a adolescência ou infância, outros vieram ao longo de minha vida. Alguns foram "descartáveis", pois aproximaram de mim com intenções não muito honestas de amizade, ou, queriam se aproveitar de mim; outros permanescem e destes eu tenho a maior afeição, procuro respeitá-los, assim como eles me respeitam e procuro ajudá-los, dentro das minhas possibilidades, assim como eles o fazem também. Penso que é assim para todos.

Sempre andei e ando por onde queria e quero e fiz e faço quase todas as coisas que eu queria e quero fazer, mas sempre no meu rítimo, pois o pc funciona com uma rotação mais baixa. Quanto a isto eu brinco com colegas e amigos que o meu lema é :devagar e sempre" e que o meu símbolo é a tartaruga.

E fico com o Gonzaguinha, quando ele diz que a vida é para ser vivida como der ou puder ou vier. Concordo com ele também que a vida é para ser vivida sem medo de ser feliz e que ela é bonita, é bonita, é bonita.

Para finalizar, quero lembrar que os p.cs. são pessoas, mas com necessidades diferenciadas, porque apresentam diferenças físicas e, à vezes, mentais. Se estas necessidades forem atendidas, não nos colocando na situação de sub ou super, mas de todos os humanos, que nós somos, não haverá mais o desperdício de potencialidades como vem ocorrendo atualmente.

Suely H. Satow

Email - shsatow@uol.com.br

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