A
MEDIAÇÀO DA ARGILA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
(
a relação de objeu)
Como lidar com os objetos
deixando-se sensibilizar psicologicamente pela natureza dos mesmos ? Isto é
possível ? Como pensar a relação “sujeito-objeto” em psicanálise tendo em vista
o uso de um objeto concreto como “instrumental de trabalho do analista” ? A
partir de uma pesquisa que vem sendo feita desde 1980 com crianças,
adolescentes e adultos (em análise individual e de grupo) no Brasil (em consultório
particular e na favela da rocinha) e na França (no Centro Gaston Bachelard de
pesquisa sobre o imaginário e a realidade), temos procurado reformular
teoricamente o estatuto da palavra “objeto”, com o intuito de sistematizar um
método que ajude o analista e o analisando a lidar com a dimensão sensorial e
visual de suas fantasias.
A estratégia metodológica por nós
utilizada em nossa pesquisa teve por objetivo devolver ao setting analítico a dimensão perdida do dinamismo material (imaginação
sensorial). A nosso ver, o analista precisa da “positividade” do objeto externo
como suporte para compreender as fantasias do analisando. Diríamos, então, que
qualquer que seja a fórmula encontrada hoje pelo psicanalista para o exercício
de sua atividade clínica, deveria esse projeto conter, no mínimo, a preocupação
em se perguntar sobre o que pode trazer de benefício para o ato analítico o uso
de objetos concretos como catalisadores de emoções.
Na verdade, no trabalho analítico
com objetos concretos como “ferramenta de trabalho” do analista, o terapeuta se
depara com duas espécies de “desconhecidos”: um desconhecido do mundo interno e
outro do mundo externo. Sendo assim, os fatos e as indagações de fundo do
trabalho clínico estariam necessariamente direcionadas para esses dois
“desconhecidos”: o “de dentro” (no homem) e o “de fora” (na natureza). Esse
mistério que envolve o homem e a natureza preocupara sobremaneira os
românticos, residindo, ainda hoje, como pano de fundo de todos aqueles que
desejam tentar uma espécie de reconciliação
entre os objetos internos e os objetos na natureza.
O uso de um determinado objeto como
“instrumental de trabalho analítico” abre áreas de sentimentos inexploradas
ainda pela linguagem oral. Em nossas pesquisas, constatamos que ao
sintonizarmos os objetos subjetivos proposto pela teoria com os objetos fora e
reunidos no espaço, acabávamos evidenciando um novo agir terapêutico. Agir esse,
capaz de proporcionar ao analista, uma forma mais criativa de trabalhar na
clínica.
A proposta desse nosso trabalho,
embora de maneira rudimentar ainda, é expor a forma que encontramos para tentar
resolver a questão do hiato existente entre a imaginação verbal e a imaginação
sensorial, Postulamos que, ao se abrir com coragem para o desconhecido do mundo
externo, esforçando-se por construir uma elo de ligação, uma ponte entre os
objetos mentais e os objetos concretos, o analista será capaz de produzir uma
significação para além do verbal.
Eis, portanto, algumas das questões de caráter geral que se impuseram
quando pensamos em estabelecer o jogo analítico também pela via
sensório-motora: qual seria a margem possível de convivência entre a linguagem
verbal e a linguagem sensorial em psicanálise? Como no cotidiano de uma práxis
analítica poderíamos romper com o muro do verbo irredutível e partir para uma
atividade clínica mais próxima do mundo dos objetos reais? Qual a condição de
possibilidade de uma práxis psicanalítica voltada para uma pragmática que
envolva uma representação de cunho verbal e lúdica ?
É justamente nesse terreno pantanoso
que pretendemos mergulhar. A princípio procuramos esboçar uma breve reflexão
sobre a maneira como a psicanálise vem abordando a questão da relação
“sujeito-objeto”. A nosso ver, a noção de objeto tem sido tratada em
psicanálise de uma maneira muito ambígua – o que tem acarretado transtornos
para a compreensão do ato analítico em que se preconiza o uso do objeto real
como “terceiro termo” do ‘brincar” analítico. A subjetivação desenfreada a que
tem se prestado a noção de objeto, tem transformado a dita “relação de objeto”
numa “relação de sujeito”, ou seja, isola-se o valor terapêutico que possa ter
o objeto concreto sobre o imaginário em proveito de um pan-fantasmismo do
“objeto referência”.
Daí, como tem feito alguns
psicanalistas na França e os próprios lingüistas, recorremos estrategicamente à
palavra “objeu” (objogo: objeto do jogo) [1]
para propormos a noção de “relação de objeu” como suporte teórico ideal para a
clínica. A idéia é redimensionar o enquadre analítico, inserindo a atividade
analítica numa tridimensionalidade. Com este fim, como em Winnicott, o nosso
objetivo fundamental é retomar para a teoria a dimensão perdida do “brincar”
analítico, estimulando a reflexão teórica em torno da importância do retorno do
objeto real como “ferramenta de trabalho do analista” e, assim, poder
reconduzir a práxis analítica por vias menos racionalizantes.
Diríamos então que do neologismo
“objeu”, criado pelo poeta Ponge e introduzido por Pierre Fédida no vocabulário
psicanalítico, seguimos com a noção de “relação de objeu” - o que nos permite
sugerir a argila como o terceiro
termo da relação “analista-analisando” compondo, assim, a tríade “analista-objeu–analisando”. Aqui,
a argila aparece como mediadora de imagens oníricas e de fantasias do
analisando, abrindo áreas de sentimentos no psiquismo e mediando sensações e
emoções. Assim, na “relação de objeu”, o fantasma será capturado pelas mãos do
analisando e petrificado na argila enquanto objeto do jogo. A rigor,
estabelecemos um novo campo para a atividade analítica, ligando a “imaginação
sensorial” à poética da comunicação verbal – sistematizando, assim, um novo
agir terapêutico.
“[...] a psicanálise, se se pudesse sistematizá-la em seus esforços de psicologia normativa, não mais se mostraria somente como uma mera investigação sobre a regressão dos instintos. Seguidamente se esquece que ela é um método de cura, de endireitamento psíquico, de mudança de interesses.” [2]
A psicanálise é um modelo teórico que repousa, sobretudo, sobre a linguagem. Pela linguagem, pode-se tentar sistematizar teoricamente o funcionamento da psique. Mas, o que vem ser a linguagem ? Esta questão torna-se instável e complexa quando tentamos religar a linguagem falada ao terreno da linguagem gestual, procurando, assim, juntar os “objetos subjetivos” veiculados pela linguagem oral, aos contornos das imagens sugeridas pelos “objetos concretos” – isso, com o intuito de valorizar a imaginação sensorial, sugerindo-a como elemento indispensável para a clínica. Grosso modo, para que ocorra em psicanálise essa conjunção entre o “objeto idéia” e o “objeto material”, devemos encaminhar a reflexão teórica na direção de uma compreensão mais ajustada da palavra “objeto”, procurando refletir sobre a função que deve ter o objeto concreto como mediador do ato analítico. Como já advertira Lacan: “La notion d’objet est [...] infiniment complexe, et mérite d’être accentué à chaque instant si nous voulons au moins savoir de quel objet nous parlons” [3] . Pierre Fédida, por sua vez, diria:
“L’inflation du concept d’objet en psychanalyse entrâine inévitablement la culture conceptuelle d’une langue. Les significations symboliques de l’objet sont sémantisées alors même que le concept d’objet était fait pour les dé-signifier. Attribuer un contenu à l’objet (la mère, l’absence ou le sein, le pénis) c’est certainement viser des organisations sémantiques de l’inconscient. Mais le risque est de substantialiser les opérations de l’analyse au profit d’un pan-fantasmisme de l’objet. “ [4]
A nosso ver, como já deixamos entrever acima, em se tratando da práxis analítica, a noção de objeto deve possibilitar o uso de um objeto concreto como “ferramenta de trabalho analítico”. Mas, infelizmente, os estudos sobre a chamada “relação de objeto” recaem quase sempre numa ruptura com a materialidade do objeto. Para a grande maioria dos psicanalistas, é suficiente que o objeto seja indicado enquanto um “objeto idéia” (referência) para desencadear o processo analítico - calcula-se que é daí que advém essa importância desmesurada que a psicanálise tem dado à linguagem verbal em detrimento da linguagem sensorial. O equívoco surge, antes de tudo, em querer reduzir a experiência clínica, transformando-a em um postulado racionalista ou semântico. De fato, como dissera Ponge: “Il faut remettre les choses à leur place. Le langage en particulier à la sienne” [5] A partir dessas nossas objeções, a questão que nos colocamos é de saber até que ponto é possível reconduzir a teoria e a práxis do analista na direção de uma noção de objeto menos subjetiva.
Ora, tudo indica que essa
tarefa é possível. É pela palavra “ob-jeu” que a teoria pode restabelecer o
“jeu” (jogo) perdido pelo “jet” (projetar) dos objetos imaginários. A expressão
“objeu” aparece pela primeira vez nos escritos de Ponge, para fazer lembrar que
a “palavra” pode estar em consonância com a “coisa”, ajudando o homem na
construção dos pensamentos e na fabricação da realidade. Segundo Ponge: “Les pensées, les paroles et les actions ne
se commandent ni ne s’obéissent dans l’homme: elles s’y jouent. Elles se
trompent. Elles s’y dévorent, et l’homme est leur radeau” [6].
E concordamos com esta estratégia do poeta: “Étant
donné le pouvoir singulier des mots, le pouvoir absolu de l’ordre établi, une
seule attitude est possible: prendre jusqu’au bout le parti des choses” [7].
Esse esforço pode ser observado também nos escritos de Pierre Fédida
quando, em seu livro L’absence,
recorre à palavra “objeu” de Ponge para poder refletir teoricamente sobre a
questão do espaço terapêutico e do “brincar” analítico. Segundo Fédida: “Jeter n’est pas jouer mais l’objeu pourrait
être un jeu à l’objet perdu” [8]
.
Entendemos que a noção de objeu deva pressupor o reconhecimento de um tipo de relação analítica no interior da qual possamos confrontar o “objeto idéia” com o “objeto real”. A partir daí verdadeiramente poderíamos falar no “brincar” analítico. Na verdade, se nos remetêssemos ao fort-da [9], observaríamos que Freud não deixa sombra de dúvida quanto à importância do objeto concreto (o carretel) para que a criança possa viver o prazer do jogo completo (desaparecimento e retorno).
A brincadeira com o “carretel” é que impede a criança de alienar-se em torno da experiência emocional vivida com o afastamento da mãe. A alegria em ver o carretel voltar instaura no imaginário da criança a certeza da existência de um novo mundo que pulsa fora de sua intimidade. Um mundo diferente marcado por uma consistência pragmática e funcional – o mundo das “coisas”. Um mundo de “coisas concretas” que dá ao psiquismo infantil a oportunidade de criar outra realidade que não a vivida inicialmente de maneira simbiótica com a mãe. É esse carretel, enquanto objeto concreto, que ajuda a criança a se soltar de um narcisismo embrionário e dar um salto na direção do Outro. Nesse caso, o objeto “carretel”, funciona como o “terceiro termo” do brincar entre mãe e filho. E, como observara Freud, é pensando no retorno do objeto, e não na falta, que reside o “prazer” que sustenta o brincar da criança [10] e, a nosso ver, o “brincar” analítico.
Poderíamos, então, pensar o fort-da como uma espécie de estratégia analítica, como uma tentativa em querer promover na clínica o retorno do objeto. Para isso, seria necessário, antes de tudo, rever o estatuto do objeto em psicanálise. É o que tentamos fazer quando procuramos operacionalizar o termo “objeu” – criando, a seguir, a noção de “relação de objeu”. A nosso ver, essas duas noções veiculam uma estrutura teórica ideal capaz de levar o analista a pensar sua práxis como sendo um “jogo completo”. O outro passo seria sugerir um objeto, para que ele ocupasse o lugar do “carretel” no jogo imaginário, transformando tal objeto escolhido pelo analista e/ou analisando em “objogo”. Aqui é que entra a nossa pesquisa com a argila como o terceiro termo do jogo analítico, ou seja, a argila como objeto do jogo, oferecendo-se metodologicamente como “ferramenta de trabalho” para o ato analítico. Dessa forma nos foi possível redimensionar o velho tripé analítico “analista-referente-analisando” (relação de objeto) substituindo-o pela tridimensionalidade inerente a tríade “analista-argila-analisando” (relação de objeu), possibilitando desambigüisar a palavra “objeto”, contribuindo, assim, para a ampliação do vocabulário analítico e assegurando uma nova dinâmica para o setting.
Além da relação de objeto
A noção de “relação de objeto” se inscreve na concepção vétero-testamentária de um Deus cuja palavra está na base da criação do mundo e do homem. Sabe-se que, na história do povo judeu, a experiência de Deus acontece através da palavra, ou seja, Yahvé é um Deus que fala e ordena; ele é o Verbo: “Yahvé diz a Abraão: Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que eu te mostrar”. [11] Em uma linguagem psicológica, podemos dizer que aqui Yahvé é apenas uma “palavra-ação” que incita o homem a encontrar um destino, um Eu. Sendo assim, as palavras endereçadas a Abraão permitem que ele se discrimine das imagens parentais e oferecem um ponto de apoio à fenomenologia do Eu.
Mas é preciso ter em conta que, paradoxalmente, o homem pode enredar-se nesse “verbo” ao qual ele também deve se submeter. De fato, aquele que escuta “a palavra de Deus” pode se deixar levar por um estado narcísico, na medida em que a imagem que tecer sobre si mesmo seja forjada em uma interpretação ideológica da palavra de Yahvé. É para evitar esse aliciamento da palavra e injetar nova força ao “verbo” que Yahvé resgata a matéria, permitindo a entrada em cena de um terceiro elemento: o barro. Assim, nutrindo sua palavra pela concretude da argila, todos os fatores subjetivos do sujeito, suas lembranças mais antigas, anteriores mesmo à construção de sua consciência, encontram um objeto para deixar a sua marca. Apesar da dissonância existente entre o poder daquele que verbaliza a criação (Yahvé) e daquele que a recebe (o homem), convém notar a abertura que é feita na direção do simbólico, quando Yahvé toma a iniciativa de ligar sua palavra à fecundidade do barro.
Poderíamos então dizer que o prazer de uma dialética entre Yahvé e o homem se encontra, num primeiro momento, firmada sobre uma “relação de objeto”, na qual a ação criadora é presa do Verbo. Mas Yahvé não criou o homem conduzindo-se apenas pela linguagem oral. Num segundo momento, suas palavras se revestem de uma forte conotação afetiva, regida, sobretudo, pelo comportamento metódico de Yahvé, quando ele resolve formar o homem a partir do barro da terra: “O senhor formou, pois, o homem, do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” [12]. Observa-se, aqui, uma metodologia que faz da matéria um terreno propício para a criação da palavra viva. Nesta perspectiva, há transformação da relação “sujeito-objeto”. Diríamos mesmo que, na relativização de uma palavra que se faz carne pelo barro, encontra-se a transposição de uma relação binária (relação de objeto) para a tridimensionalidade do que denominamos “relação de objeu”.
A “relação de objeu”
A nosso ver, a evolução da clínica em psicanálise deve retomar o seu curso, criando as condições necessárias para que se possa teorizar sobre transferência/contratransferência também através da “relação de objeu”. É preciso que os psicanalistas se coloquem a questão da “relação de objeu”. Mas de que se trata? Na tentativa de esboçar uma definição, poderíamos dizer que a “relação de objeu” consiste em uma ampliação do “enquadre” em psicanálise, cujo objetivo é o de reescrever o “brincar analítico” numa dinâmica sensorial, procurando transpor a relação binária de objeto para a relação tridimensional do objeu.
A “relação de objeu” permite ao analista abordar a palavra em todas as suas dimensões. Se a “relação de objeto” permite ao analista abordar a “idéia de objeto“, ou seja, substituir a “ausência” do objeto concreto pelo “referente” e vir a estabelecer um determinado enquadre analítico; vê-se, graças à “relação de objeu”, o enquadre da análise se ampliar e o analista e o analisando se relacionarem pela via do objeto concreto. Ao inverso daquilo que se passa na prática analítica (relação de objeto), que leva o analista a trabalhar somente com o verbal, na “relação de objeu” a trama da ação analítica se desenvolve sobre a imagem-ação de um objeto concreto (no nosso caso, a argila). Portanto, o objetivo da “relação de objeu” é o de abrir um espaço sistemático no interior da teoria e incluir na dinâmica clínica, além do verbal, o lado sensorial.
Se na “relação de objeto” o predomínio é da dinâmica verbal, diríamos que na “relação de objeu” o ato analítico surge tendo em vista as imagens modeladas na argila, seguindo-se de uma verbalização em torno da imagem fabricada. Uma vez criada a imagem pelo analisando numa “atenção flutuante”, procura-se, a seguir, “dar palavra” a essas imagens. O que importa é a ativação da imagem pelo agir sensório-afetivo-motor. Assim, amplia-se a significação da imagem, conduzindo o verbo pelas mãos. Na “relação de objeu”, são as mãos que capturam a função simbólica no inconsciente e, pela via do objeu (a argila), é que penetramos no núcleo das emoções, dando condições de possibilidade à “representação de objeu”. Aqui, tanto o analista como o analisando sabem do valor das mãos e da argila como agentes do processo simbólico.
A via da argila na formação
do Eu
Símbolo da matéria primordial, mistura de terra e água, a argila se oferece como uma massa ideal que facilita a dialética entre o Eu e o Inconsciente. Graças a ela, o Eu pode ser atualizado pelas mãos que ao se juntar às palavras darão corpo e significado ao material inconsciente do analisando. Tendo a argila como ponte entre o “mundo interno” e o “mundo externo”, as emoções cristalizam-se em imagens dando livre curso às intenções terapêuticas inerentes ao movimento do ser.
A argila é vetor do simbólico. No enquadre proposto pela “relação de objeu”, a argila se oferece ao manusear do real produzindo imagens que possuem o valor e a função de “imagem realidade” em relação à engrenagem do “jogo analítico”. Em seguimento à sua entrada na cena analítica, a argila se constitui como o objeto ideal para dar forma aos “objetos internos”, desvinculando a fantasia da lógica que procura centrar o processo analítico na identificação do sujeito com a idéia de “objeto perdido”. Isso lhe confere o estatuto de “objeto presença”.
Na “relação de objeu”, a argila funciona como a encarnação do significante e fala do prazer possível. Nesse novo enquadre constituído pela “relação de objeu”, analista e analisando, enquanto elementos irredutíveis da cena analítica, como numa heresia, vão “colocar a mão na massa” e “brincar” com as palavras, as máscaras, as resistências, as defesas, as transferências, as contratransferências e o próprio vínculo terapêutico. Aqui, a mão que manuseia a argila quando em processo analítico, participa de uma intenção terapêutica que, ao transformar e encarnar as emoções do analisando, acaba oferecendo um contorno ao objeto do desejo.
Enquanto objeto de apoio para o imaginário, a argila é um objeto material que não dissimula, ao contrário, revela-se sempre como uma excelente “ferramenta de trabalho” para o analista. Como uma espécie de “esforço-resistência”, ela é capaz de ajudar o analisando a veicular, sem transtornos para a consciência, tudo aquilo que de alguma maneira constitui o impreciso, o assustador e o evasivo do mundo inconsciente. Em nossas pesquisas [13], constatamos que, tal uma pedra litográfica, a argila entra como um “terceiro-termo” capaz de se submeter à tintura de significações que permite o alargamento da consciência e o fortalecimento do Eu.
A argila e as mãos
“Que l’on puisse
parler d’une voix poignante ou de paroles cassantes, atteste que la parole
réalise une véritable projection organique de la main. Dans le mot, la chair de
la main se fait verbe et la voix jaillit du corps comme une main qui ouvrirait
l’huis clos de la monade”. [14]
O aspecto significativo da “relação de objeu” pela via da argila reside no fato de que a argila tenta religar a imaginação verbal à imaginação sensorial – o objetivo é sempre o de facilitar e permitir o desbloqueio da expressão imaginativa, fazendo com que as mãos e as palavras se interpenetrem pela intimidade do barro. Têm-se a tendência, em geral, a dissociar as manifestações intelectuais das sensoriais. Encontra-se normalmente nos indivíduos uma certa dificuldade em querer se abandonar frente à totalidade dos meios de que dispomos para nos exprimir: ora é o pensamento que bloqueia a mão, ora é a mão a bloquear o pensamento. Disso resulta um fosso a entrincheirar nossa cabeça separando-a das mãos.
A clivagem entre a expressão oral e a expressão sensorial tem prejudicado o exercício da técnica analítica. Muitas vezes o analisando se vê obrigado a analisar suas fantasias apenas pelo viés da imaginação falada. Esse aprisionamento da clínica na comunicação verbal certamente tem impedido o analisando de uma percepção mais objetiva do real. Constatamos que a partir de um processo analítico onde o analisando além de modelar um determinado objeto consegue “dar palavra a esse objeto por ele fabricado”, aos poucos sobrevêm nele, o prazer de perceber sitiando pelas mãos as imagens subjetivas que antes não encontrava palavras para expressá-las, talvez, pela impossibilidade de tais imagens se prestarem às metáforas sugeridas pela estrutura da linguagem verbal,
Na verdade, cometemos muitos erros quando limitamos o fantasma ao cenário lingüístico. Nosso trabalho nos ensinou que se o analista subverte a ordem da “relação de objeto”, procurando articular sua práxis através da “relação de objeu”, tendo a argila como “objogo”, a natureza lingüística do fantasma acaba se nutrindo das formas sugeridas pela argila, metamorfoseando-se em um novo tipo de linguagem. Isso porque a base arcaica dos conteúdos inconscientes e as emoções ganharam contornos concretos quando inseridos na linguagem manual. Diríamos que é assim que, na apreensão de imagens “argilosas”, o desejo pode vir a se metamorfosear em prazer.
O exercício da psicanálise através do “brincar” analítico, tendo o barro como condutor do verbo, provoca uma espécie de simultaneidade no interior da qual o “princípio de prazer” e o “princípio de realidade” coexistem lado a lado em função da imagem real que brota da argila. É assim que a razão vai, pouco a pouco, se deixando manusear no barro, traduzindo emoções em palavras e revelando imagens do desejo inconsciente. Esta maneira de “psicanalisar” tem como objetivo principal levar o analista e o analisando a vivenciar o barro como mediador ideal de conteúdos inconscientes e, por outro lado, sugerir novas estratégias para o “brincar” analítico.
A argila libera, muitas vezes de maneira inexplicável, a projeção neurótica e a reescreve sobre um outro plano, facilitando, assim, a intervenção do analista. Seria esta uma das principais funções da argila como “objogo”: realizar a conversão do “objeto referência” em formas e ações terapêuticas. Nesse caso, a ação analítica pela via da argila modificaria o curso da interpretação, ou seja, a interpretação seria articulada a partir de duas formas de imagens: uma imagem definida pela inserção de formas em argila, e outra complementar cujo objetivo é “dar palavra” às imagens sugeridas na argila. Sendo assim, ao ativarmos a imaginação do analisando através do brincar que se estabelece entre suas produções verbais (imaginação verbal) e as suas produções manuais (imaginação porosa), criamos condições para o manusear da neurose e a conseqüente liberação de possíveis entraves da rede imaginária.
Conclusão
Em nosso trabalho, evidenciamos a importância exercida pelo “objeto concreto” na reconstrução psíquica dos indivíduos. Presenciamos em nossas pesquisas, discursos partidos e a angústia de experiências profundas de corte com a realidade externa virem a ser remontados, palavra por palavra, em face à emoção de lidar com o barro enquanto objeto do jogo analítico. Nesse processo terapêutico inscrito no que chamamos de “relação de objeu”, a palavra nascendo do encontro, do gestual que se movimenta dialogicamente entre o analista, o analisando e o “objeu”, inaugura um brincar analítico que legitima o barro como o “instrumental de trabalho” ideal para o psicanalista. Concluímos, então, ser possível romper com as limitações que as teorias racionalistas e idealistas impuseram ao conceito de “objeto” e que de certa forma foram herdadas pela psicanálise, sugerindo um repensar constante da questão da relação sujeito-objeto.
A partir da noção de “relação de objeu”, acreditamos que o analista poderá superar o muro criado pela irredutibilidade do Verbo, procurando unir a palavra à coisa. Constatamos também, que a introdução de um objeto concreto na qualidade de “ferramenta de trabalho” permite ao analista abordar a dialética entre o Eu e o Inconsciente pelo viés das tendências positivas, evolutivas e criativas que povoam o nosso psiquismo. Optar por essa forma de pensar a dinâmica pulsional não significa dizer que devamos abandonar a questão da resistência, do recalque e dos subterfúgios que naturalmente são engendrados pelo analisando a partir de suas neuroses e idiossincrasias. O que queremos evidenciar é que a mediação da argila através do enquadre analítico insere o analisando num discurso espontâneo e frutuoso capaz de redimensionar a sua maneira de lidar com a neurose.
Uma vez colocado no contexto do “objogo”, o analisando
vivencia uma certa harmonização interna. E, como uma criança, ele se sente
capaz de se religar a argila que lhe oferece o analista, de reconhecer seu lugar
entre os objetos internos e externos, de “brincar” de construir e reconstruir
os objetos internos pelos externos e, sobretudo, de sentir que pode sobreviver
à destruição. Daí a importância em deixar que as projeções e introjeções do
analisando entrem nos contornos da argila, em sua água, sua cor, seu perfume,
sua moleza ao manusear, sua possibilidade de ser seca, dura, inflexível... de
ser, em suma, tudo aquilo que a revela como o objeto ideal, propício à
modelagem de nossos fantasmas quando numa relação terapêutica.
NOTAS
[1] Na falta de uma palavra em português que pudesse ajustar-se com precisão e sonoridade ao termo “ob-jeu” (talvez “ob-jogo”), optamos por manter a palavra inventada pelo poeta Francis Ponge e que já vem sendo aceita por lingüistas e psicanalistas franceses. Acresce o fato de que a palavra “objeu” não é propriamente uma palavra francesa. Trata-se de um neologismo que, a nosso ver, se adapta bem ao português, respeitando, é claro, a liberdade em ajustá-la à pronúncia brasileira. De qualquer maneira, o leitor está livre para utilizar a tradução “objogo” e “relação de objogo”, caso lhe pareça melhor.
[2] BACHELARD, G
(1991). A
terra e os devaneios da vontade. São Paulo, Martins Fontes, p. 85.
[3]
“A noção
de objeto é [...] infinitamente complexa, e merece ser acentuada a cada
instante se desejarmos ao menos saber de qual objeto estamos falando”. LACAN, J. (1994). Le séminaire, livre IV: la relation d’objet. Paris, Éditions du
seuil, p. 27.
[4]
“A
inflação do conceito de objeto em psicanálise arrasta inevitavelmente a cultura conceptual de uma língua. As
significações simbólicas do objeto são semantizadas ainda que o conceito de
objeto tenha sido feito para as de-significar. Atribuir um conceito ao objeto
(a mãe, a ausência do seio, o pênis) é certamente visar às organizações
semânticas do inconsciente. Mas
o risco é de substancializar as operações da análise em proveito de um
pan-fantasmismo do objeto.” (grifos
nossos). FÉDIDA, P. (1978). Connaissance de l’inconscient. In: L’absence.
Paris, Gallimard, p. 195.
[5]
“É preciso repor as coisas no seu devido lugar,
em particular, a linguagem.“ Citamos
aqui uma passagem extraída de “Réflexions
en lisant ‘L’essai sur l’absurde’ “ , tirada dos “Proêmes” (Ver PONGE, F.,
“Le parti- pris des choses” seguido
de Proêmes, Paris, Gallimard, Poésie/
Gallimard, 1944, p. 184.
[6]
“Os
pensamentos, as palavras e as ações não se comandam nem se submetem à vontade
dos homens: elas brincam entre si. Elas se enganam umas às outras. Elas se
devoram, e o homem é sua jangada.” PONGE, F. (1980) Plus-que-raison. In: Lyres.
Paris, Gallimard (Poésie Gallimard), p. 129.
[7]
“Considerando
o poder singular das palavras, o poder absoluto da ordem estabelecida, uma só
atitude é possível: optar radicalmente pelas coisas.” Ibid. nota 4, p. 127.
[8]
“Projetar
não é brincar mais o “objeu” poderia
ser um brincar para o objeto perdido” FÉDIDA, P. , op. cit. p. 97. Ver o capítulo VIII: “L’objeu-objet, jeu et enfance – l’espace
psychothérapeutique.”
[9]
Ver sobre o Fort-da em FREUD, S. (1976). Além
do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, p. 25-27.
[10]
Lembremos o texto de Freud: “Puxava então o
carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu
reaparecimento com um alegre “da” (ali). Essa, então, era a brincadeira
completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a
seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo,
embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato”. [grifos nossos] . FREUD, S. ibid., nota 9, p. 26-27.
[11]
Gênesis 12:1. Bíblia Sagrada (1974). São Paulo, Ed. Ave Maria.
[12]
Gênesis 2:7. Op. cit. , nota 12.
[13]
Como já fora dito anteriormente, a nossa
pesquisa com a argila como instrumental terapêutico vem acontecendo desde 1980
até os dias de hoje. De 1980 à 1992 a pesquisa se deu em consultório particular
e na favela da Rocinha, em trabalho individual com adultos e adolescentes e com
grupos de crianças. Os resultados obtidos em consultório particular e na favela
da rocinha deu origem ao livro: “Sol da
Terra: o uso do barro em psicoterapia”,
publicado pela SUMMUS editorial em 1990. No período que vai de 1992 à
1995, através de pesquisa teórica realizada no “Centro Gaston Bachelard de
pesquisas sobre o Imaginário e a racionalidade” na Universidade de Borgonha e de vários grupos realizados em
Dijon, Boyer e Paris, demos continuidade a esse trabalho – defendendo e sendo
aprovado no DEA de filosofia um trabalho sobre esse assunto. Em 1996 foi defendida e aprovada pela PUC-Rio a tese
de doutorado intitulada: “A relação de objeu: uma estratégia
psicoterápica”. A partir dessa tese surgiu o livro: “A tridimensionalidade da relação analítica” publicado recentemente
(1999) pela editora CULTRIX.
[14] “Que se possa falar de uma voz pungente ou de palavras duras, confirma que a palavra executa uma verdadeira projeção orgânica da mão. Na palavra, a carne da mão se faz verbo e a voz se solta do corpo como a mão que abriria a porta fechada da mônada.” BRUN, J. (1963). La main et l’esprit. Paris, PUF, p. 149. Nova edição: Paris, Sator-Labor et Fides, 1986, p.160.
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