O que a clínica do autismo pode nos fazer pensar sobre a constituição das subjetividades na contemporaneidade*
Ana Elizabeth Cavalcanti
*Este trabalho foi originalmente apresentado na XV Jornada do Círculo Psicanalítico de PE, “Feminilidade e subjetividade”, em outubro de 1998 no Recife.
A intenção
desse trabalho é refletir sobre a constituição do sujeito na contemporaneidade,
a partir de uma questão oriunda da clínica psicanalítica com autismos. Partindo
dos conceitos de função paterna e função materna em Green, sugiro pensar a
constituição do sujeito nas dimensões do excesso e do interdito, do feminino e
masculino, borrando as fronteiras que delimitaram claramente estes dois campos
na modernidade e redescrevendo-os à luz do que pode nos ensinar a clínica dos
autismos.
Palavras-chave: Autismo, constituição do
sujeito, feminilidade, função paterna
Pretendo, neste
trabalho, pensar sobre a constituição do sujeito na contemporaneidade, a partir
de uma questão clínica, oriunda de minha prática psicanalítica com autismos.
Partindo dos conceitos de função paterna e função materna em Green, trabalharei
com a possibilidade de pensar a constituição do sujeito nas dimensões do
excesso e do interdito, do feminino e masculino, borrando as fronteiras que
delimitaram claramente estes dois campos na modernidade, redescrevendo-os à luz
do que podemos pensar a partir da clínica do autismo. Me interrogo sobre as
questões que essa clínica coloca sobre a feminilidade e masculinidade, nos
impelindo a ampliar o nosso repertório teórico quanto às noções de sujeito e
linguagem. Assim, termino propondo, mais do que soluções, algumas linhas de
investigação acerca da condição do sujeito na contemporaneidade – marcado pelo
desamparo, pela insubordinação às construções universalizantes e desprovido das
certezas fálicas que o acompanharam até então – recorrendo para isto às idéias
de Winnicott sobre o espaço de ilusão e o brincar.
*
* *
Para apresentar minhas idéias sobre a construção do sujeito na contemporaneidade, precisei retomar dois trabalhos escritos anteriormente. Inicio com a história da construção destes textos. Estava eu às voltas com uma questão clínica, formulada a partir do trabalho com pais de adolescentes pós-autistas, quando fui convidada a apresentar um trabalho em um congresso sobre autismo e psicose infantil realizado em São Paulo. Como costumamos fazer, aproveitei a oportunidade para pôr a trabalhar minha questão, buscando formular as teorizações iniciais em torno dela. Abro aqui um parêntese para falar de como a formulei e de como tentei tratá-la.
Chamava-me atenção a forma como aqueles pais, cujos
filhos estavam em tratamento na terapia intensiva no CPPL1, falavam sobre a sexualidade genital de seus filhos
adolescentes. No que pesem as grandes diferenças entre eles, havia um traço
muito similar em suas falas. Alguns negavam as manifestações da sexualidade de seus
filhos de forma radical, enquanto outros falavam delas como algo da ordem da
desmedida e do ilimitado.
Duas cenas, extraídas de sessões com esses pais, pareciam ilustrar bem o que eu queria falar. A primeira passou-se em uma sessão de grupo em que uma das mães começou a falar da masturbação, segundo ela, incontrolável de seu filho adolescente. Começava a pensar que ele realmente sentia prazer sexual. Neste momento D., uma outra mãe, visivelmente mobilizada, me fez a seguinte pergunta: “Esses meninos sentem mesmo essas coisas?”. Os tais “meninos”, inclusive seu filho, eram na verdade rapazinhos, já mais altos do que nós, nos quais os sinais próprios da puberdade se faziam notar de forma muito evidente. Pedi que me falasse sobre o que pensava a esse respeito. Disse então: “Eu não estou preparada para isso. Isso não é justo. Se Deus tirou tanto deles, por que não tirou isso também? Não vou admitir isso. Vou dar remédio para que isso não aconteça ao meu filho. Ele continua o mesmo menino de sempre, nunca notei essas coisas. Não acredito que ele sinta nada disso. Nunca o vi se masturbando nem se interessar por nada disso”.
A segunda cena remonta à sessão dos pais de um outro adolescente, cujo comportamento os estava deixando muito angustiados. Iniciaram a sessão falando da ausência de limites do filho. Segundo diziam, ele se masturbava compulsivamente na frente deles e de uma irmã mais nova, ao mesmo tempo que vinha fazendo algumas tentativas de se masturbar no corpo da mãe. Falaram-me de algumas fantasias acerca dos impulsos incontidos do filho. Viam o seu futuro sombrio no que diz respeito à sexualidade. Temiam que só houvesse duas possibilidades para ele: cometer atos sexuais impensados ou, o que era mais provável, ser vítima de abusos sexuais ou de violências decorrentes dos tais atos impensados. “Ele está incontrolável”, dizia-me o pai, “agora ainda posso conter sua violência batendo nele, depois não sei como será”. Indo na mesma direção da fala do marido, a mãe começa a narrar uma cena do dia anteriorem que o filho agarrou-a pelas costas, começou a “esfregar-se” nela e não queria largá-la. O pai retoma a palavra e diz: “Quando apareci e falei, ele partiu para cima de mim. Neste momento o enfrentei de homem para homem”.Quando pontuei que ali estavam um pai e um filho, ele me respondeu que nunca pensara nisso.
Numa primeira abordagem, lancei mão do conceito de função paterna, tal qual Green2 a descreve, até então muito útil nas tentativas de teorização de minha clínica. Como sabemos, embora se alinhe com Lacan, à medida que a função paterna diz respeito à função simbólica do pai, se distancia dele e se aproxima de Winnicott, quando tece algumas considerações acerca da função materna.
Com a referência do conceito de Green, me pus então a
trabalhar com a idéia de que as reações paternas frente às manifestações da
sexualidade genital dos filhos das quais estamos falando – tanto no caso da
negação quanto no de tomá-la como algo da ordem da desmedida – deviam-se a uma
falência do exercício da função paterna com estes filhos. Embora estivesse
implícito o papel preponderante da função materna para que os pais se colocassem
da forma como estamos falando frente à sexualidade dos filhos, a ótica
principal recaía sobre o papel estruturante da função paterna. Quando eu digo
por exemplo, “Aconstrução do sujeito pressupõe, em todos os tempos de sua
estruturação, uma dimensão de interdição que o põe na condição de pleitear um
prazer possível”, trabalho claramente com um pressuposto de sujeito: o sujeito
da interdição, da lei e da falta.
Fechando o parêntese, conto agora a reação de Manoel Berlinck quando terminei a leitura deste texto, apresentado no tal congresso sobre autismo. Como já havia referido, e como tentei resumidamente mostrar, o texto sustentava-se no conceito de função paterna. Fazendo, como disse, não uma questão mas uma provocação, Berlinck falou que, segundo sua opinião, estava na hora dos psicanalistas pararem de falar em função paterna e simbólico como condição para que fossem realizados os avanços teóricos necessários à psicanálise na contemporaneidade. Ou seja, “derrubou o pau da minha barraca!” Na hora comentei que, se o conceito de função paterna não lhe era útil, na minha clínica era fundamental e lhe disse por que. O que acontece é que Berlinck pôs o dedo na ferida. Embora estivesse imbuída no texto a idéia do papel preponderante da função materna para a constituição do sujeito, com uma nítida influência do pensamento de Winnicott, todo o argumento era costurado pelo viés da função paterna, o que não era a minha intenção. Isso criava uma espécie de ruído no texto, uma vez que apontava para algo insinuado mas não explicitado. Resolvi então topar a provocação, tomei Berlinck como interlocutor e pus a trabalhar a minha questão.
Comecei então a construir o que seria a segunda versão do texto. Desta vez ainda me valia do conceito de Green, mas o meu olhar voltou-se para o que ele enfatizava sobre o exercício da função materna. Para Green3, como para Freud, a mãe é o primeiro objeto de amor para ambos os sexos. Ele defende a posição de que um “estado de loucura benigna”, desenvolvido durante a gravidez e nos primeiros tempos da vida, coloca a mãe numa sintonia quase alucinatória com o seu bebê. É esse estado que dá à gravidez e à maternidade essa dimensão miraculosa que elas têm para a mãe. É sob o seu efeito que a mãe se oferece como objeto de investimento erótico para o filho, fomentando-lhe a vida pulsional. Mas, diz Green, se por um lado, esse estado de loucura é indispensável para a constituição do sujeito, deve ser contrabalançado por outro aspecto da relação mãe-bebê para que não tenha efeitos nefastos. Assim, se por um lado a mãe exerce essa função de seduzir o bebê, de despertar-lhe a vida pulsional, por outro, deveria funcionar também como continente e como espelho para ele, o que só é viável se a ela for possível conter sua própria vida pulsional. Nesse sentido, seria impensável o exercício da função materna sem a função paterna que representaria, desde sempre, uma limitação à loucura materna, à medida que sinaliza permanentemente para uma inevitável separação.
Ora, sabemos que no que pesem as inúmeras especificidades e os matizes singulares que tomam em cada sujeito, há nos autismos uma história de grandes dificuldades na constituição desses laços iniciais a que se refere Green. Se continuamos com a sua referência, poderíamos dizer que a história dos sujeitos autistas começa a se delinear no âmago mesmo deste estado de loucura – quando ele não se desenvolve ou quando não pode ser mediado. Essa retomada do conceito de Green, enfatizando o efeito do investimento materno e, mais do que isso, a dimensão erótica desse investimento para a constituição do sujeito, levou-me a trabalhar com a idéia de que as dificuldades dos pais dos adolescentes pós-autistas de quem estamos falando – que ora negam a sexualidade genital de seus filhos, ora a tomam como algo da ordem da desmedida e do ilimitado – decorre de dificuldades nos exercícios das funções paterna e materna que, desta forma, só podem ser pensadas uma em relação à outra.
Assim, no que poderíamos chamar de segunda versão do
texto, estava trabalhando com um sujeito em que a dimensão do excesso – marca
da experiência pulsional, desmedida por definição, jamais totalmente submetida
à ordem do sentido – é, tanto quanto as dimensões do interdito e da lei,
condição para a sua constituição.
Dizer das funções paterna e materna que elas só podem ser pensadas uma com relação à outra, e que, portanto, as dimensões do excesso e do interdito assumem igual estatuto na constituição do sujeito, trouxe-me uma série de questões e desdobramentos. Vamos a eles.
Aproximei função materna a excesso e função paterna a interdito. Logo, como o fez Freud, identifiquei excesso com feminino e interdito com masculino. Esclareço.
Como todos sabemos todos, é em “O mal- estar na civilização”4 que Freud coloca a relação entre princípio do prazer e as exigências do pacto civilizatório. Nesse texto, entre outros, Freud fala da mulher como a grande usurpadora do pacto civilizatório, defensora dos prazeres, sobretudo dos prazeres do amor. Todos conhecemos bem a mulher freudiana. Compartilhando das idéias do seu tempo, Freud definiu a mulher em relação ao homem, portanto, de sua posição anatômica de falta do pênis. Parte dessa posição para formular que a menina entra no Édipo pela mesma razão que o menino o abandona, ou seja, pela descoberta e pelo temor da castração. Isso o leva a indagar sobre as diferenças das ameaças que pairam sobre o menino e a menina quanto à castração, pois, enquanto para o primeiro seria muito claro o que tem a perder, para a segunda, bem ao contrário, o que seria posto é que ela nada teria a perder. A posição da menina seria então a daqueles que, nada tendo a perder, são menos vulneráveis às ameaças e punições. Assim, Freud foi levado a pensar na mulher como um ser pouco submetido à lei – daí a famosa formulação da fragilidade de seu superego – com grandes dificuldades em abrir mão de sua posição incestuosa e bissexual.
O destino do amor edípico para a mulher, definitivamente traçado por suas características anatômicas – o que dá à inveja do pênis uma posição central –, seria o de receber o falo paterno pela via da maternidade, o que tornaria inviável pensar em qualquer tipo de realização no plano do social. Nesse sentido, a mulher freudiana seria um ser muito pouco confiável no que diz respeito à sustentação do pacto civilizatório, já que teria pouco senso de justiça, grande demanda de amor anti-social, baixos interesses sociais e capacidades sublimatórias bastante limitadas. Seria, poderíamos dizer, a autêntica representante da desmesura e do excesso, ameaça constante a um pacto civilizatório – sustentado a duras penas pelos homens – que prioriza o contrato social, o senso de justiça, o espaço público e tenta evitar o desprazer a qualquer custo. Assim, para Freud, à medida que definiu anatomia como destino, foi possível construir campos bem definidos e claramente delimitados para o feminino – colocado por ele do lado do excesso e da desmesura – e para o masculino – do lado do interdito e da submissão à castração.
Portanto, só tomando os paradigmas de um modelo
falocêntrico como o fez Freud, seria possível pensar em função materna e função
paterna operando em campos claramente distinguíveis.
Voltando então à minha questão, poderia dizer que na primeira versão do meu trabalho, apesar de não estar mais suportada apenas na questão anatômica mas ainda montada num modelo falocêntrico, a ótica recaía sobre a função paterna, claramente distinta da função materna. Foi esta posição que me permitiu pensar a constituição do sujeito pela via do exercício da função paterna, do interdito e da lei, mesmo estando tão evidentes as implicações da função materna na sua dimensão do excesso. A sua segunda versão, ao contrário, apontava para a impossibilidade de sustentação desta posição. Quando proponho que só é possível pensar a função paterna em relação com a função materna, interdito em relação a excesso, feminino e masculino um em relação ao outro, começo a lidar com um certo esfumaçamento das fronteiras que até então delimitavam claramente estes campos. Desta forma, me vi confrontada com a crise do masculino e feminino na contemporaneidade que já não podem mais ser pensados a partir dos mesmos atributos que os definiam na modernidade. Já não estamos tão certos de que as diferenças que distinguiam esses dois campos com clareza, podem se sustentar com as grandes mudanças impostas a homens e mulheres no decorrer de um século de modernização.
Pensar a constituição do sujeito na contemporaneidade
implica, a meu ver, em levar em consideração esses diferentes arranjos que
constróem a masculinidade e feminilidade de forma muito mais matizada,
propiciando ao sujeito possibilidades de existência e expressão cada vez mais
singulares. E nesse contexto, as soluções que prevêem possibilidades únicas e
irrefutáveis tornam-se cada vez mais inviáveis e ineficazes para dar conta de
um sujeito marcado pelo desamparo, em que o previsível e o universal não têm
mais lugar.
Nesse sentido, Maria Rita Kehl,5 tomando como metáfora os personagens de Nora e Helmer em “Casa de bonecas”, de Ibsen, nos acena com possibilidades, a meu ver, bastante convincentes. Esta peça, escrita no final do século passado, passa-se em torno da história de Nora, uma dona de casa e esposa dedicada, que falsifica a assinatura do pai gravemente enfermo para conseguir com um agiota um empréstimo para levar o marido a uma viagem de cura. A peça se desdobra em torno do grande conflito que se instala entre os dois, quando Helmer descobre o crime cometido pela mulher. Neste momento, diz Maria Rita, o que parece acontecer é um confronto entre duas éticas, ou, entre dois aspectos complementares de uma mesma ética. Uma ética feminina – comprometida com o prazer, com o espaço privado, com a felicidade daqueles que se ama e com a realização de vidas felizes – e uma ética masculina, que prioriza o espaço público, o contrato social e o exercício da cidadania. A cada vez que Nora tentava justificar seu ato, apelando para motivos em que era a felicidade dos seres amados que estava em jogo, Helmer respondia com os motivos de obediência à lei, à justiça e ao contrato social. Em suma, estavam contrapostas uma ética do espaço privado, tipicamente feminina, e outra do espaço público, masculina. Se formularmos do ponto de vista das soluções de compromisso entre as instâncias psíquicas e suas demandas, poderíamos falar numa ética que prioriza o prazer contra outra que tenta evitar o desprazer a qualquer custo.
No final da peça tudo se esclarece e Helmer tenta se
recompor com Nora, mas ela não o quer mais. Diz a Helmer que precisa ganhar o
mundo e quer ver quem tem razão, a sociedade ou ela.
O que Maria Rita propõe afinal é que Nora e Helmer teriam muito o que aprender um com o outro. É evidente que Nora teria muito o que aprender sobre a vida em sociedade, sobre as leis que regem o pacto social, mas Helmer também teria muito o que aprender com Nora sobre o amor, a intimidade, o compromisso com o prazer e com a felicidade. Propõe assim que a ética feminina, com sua dimensão de um certo exagero, de uma certa desmesura, tem muito a dizer e pode dar, com certeza, uma grande contribuição para a civilização contemporânea.
Assim, podemos pensar na construção de um pacto civilizatório que, levando em conta as injunções das éticas masculina e feminina, seja mais comprometido com o prazer e a realização de vidas felizes. Implicaria, portanto, pensar a constituição do sujeito na injunção dessas duas dimensões, do excesso e do interdito, do público e do privado, do masculino e feminino, nas fronteiras pouco delimitadas desses campos que, quanto mais indiferenciados, mais abalam as nossas certezas narcísicas.
Algumas aproximações são possíveis entre essa posição e a de Birman6, quando ele propõe repensar o masculino/feminino e a constituição do sujeito pela via da feminilidade. Para ele, a feminilidade, colocada como originária da sexualidade, tal qual como o fez Freud no final de sua obra, seria a condição de possibilidade para homens e mulheres se afirmarem como seres de desejo. Derrubando as barreiras fálicas que encobrem defensivamente a condição de desamparo radical do sujeito, a assunção da feminilidade, em homens e mulheres, implica no reconhecimento da finitude e incompletude de seus corpos, permeados pelo excesso indomável e insubordinável a qualquer categoria da razão.
Enquanto Maria Rita toma a Nora, de Ibsen, como personagem metafórico das novas faces da feminilidade, Birman vai achar em Cármen, a construção operística de Bizet, sobretudo em suas versões contemporâneas, a expressão da feminilidade tal qual propõe.
Partindo de uma frase da Habanera – uma das árias mais conhecidas da ópera – “Se eu te amo, cuide-se”, Birman vai nos apresentando uma Cármen que é puro excesso e corporeidade. Corporeidade que aponta para uma finitude e uma insuficiência indeléveis. Que derruba as fronteiras entre mente e corpo e abole qualquer possibilidade de construir algo para além da physis. Uma Cármen que assume incorporar a atividade erótica a um estilo de ser, abrindo novas possibilidades para as figuras da mulher, da feminilidade e do amor, ao mesmo tempo que revela a insubordinação do erotismo e da entrega erótica, o que define a sua dimensão trágica. À necessidade de ter e possuir, contrapõe a necessidade de fruir o seu desejo, a partir do reconhecimento de sua corporeidade finita e fraturada. Impõe assim a idéia da feminilidade para o homem, desmontando a crença da evidência da mascutambém teria muito o que aprender com Nora sobre o amor, a intimidade, o compromisso com o prazer e com a felicidade. Propõe assim que a ética feminina, com sua dimensão de um certo exagero, de uma certa desmesura, tem muito a dizer e pode dar, com certeza, uma grande contribuição para a civilização contemporânea.
Assim, podemos pensar na construção de um pacto civilizatório que, levando em conta as injunções das éticas masculina e feminina, seja mais comprometido com o prazer e a realização de vidas felizes. Implicaria, portanto, pensar a constituição do sujeito na injunção dessas duas dimensões, do excesso e do interdito, do público e do privado, do masculino e feminino, nas fronteiras pouco delimitadas desses campos que, quanto mais indiferenciados, mais abalam as nossas certezas narcísicas.
Algumas aproximações são possíveis entre essa posição e a de Birman6, quando ele propõe repensar o masculino/feminino e a constituição do sujeito pela via da feminilidade. Para ele, a feminilidade, colocada como originária da sexualidade, tal qual como o fez Freud no final de sua obra, seria a condição de possibilidade para homens e mulheres se afirmarem como seres de desejo. Derrubando as barreiras fálicas que encobrem defensivamente a condição de desamparo radical do sujeito, a assunção da feminilidade, em homens e mulheres, implica no reconhecimento da finitude e incompletude de seus corpos, permeados pelo excesso indomável e insubordinável a qualquer categoria da razão.
Enquanto Maria Rita toma a Nora, de Ibsen, como personagem metafórico das novas faces da feminilidade, Birman vai achar em Cármen, a construção operística de Bizet, sobretudo em suas versões contemporâneas, a expressão da feminilidade tal qual propõe.
Partindo de uma frase da Habanera – uma das árias mais conhecidas da ópera – “Se eu te amo, cuide-se”, Birman vai nos apresentando uma Cármen que é puro excesso e corporeidade. Corporeidade que aponta para uma finitude e uma insuficiência indeléveis. Que derruba as fronteiras entre mente e corpo e abole qualquer possibilidade de construir algo para além da physis. Uma Cármen que assume incorporar a atividade erótica a um estilo de ser, abrindo novas possibilidades para as figuras da mulher, da feminilidade e do amor, ao mesmo tempo que revela a insubordinação do erotismo e da entrega erótica, o que define a sua dimensão trágica. À necessidade de ter e possuir, contrapõe a necessidade de fruir o seu desejo, a partir do reconhecimento de sua corporeidade finita e fraturada. Impõe assim a idéia da feminilidade para o homem, desmontando a crença da evidência da masculinidade e deslocando o enigma da feminilidade para a diferença sexual. Deixando cair a falicidade, valoriza alguns atributos femininos. Assim, a sedução e a sensualidade ganham novo estatuto, deixam de ser sinônimo da malevolência feminina, puro exercício de poder sobre o outro, para ser expressão de desejo, delineando dessa forma, novas possibilidades de ser mulher.
Negando as universalidades, a fixidez e a imobilidade
identificante, lança-se à multiplicidade, diversidade e pluralidade
identificante.
No que pesem as diferenças entre essas posições o que elas nos acenam é com um sujeito desprovido de certezas fálicas, constituído na dimensão de campos que, até então delimitados e contraditórios, se aproximam e se indiferenciam. Um sujeito que já não pode mais se definir pelas dualidades e pelos opostos: ativo/passivo; excesso/interdito; masculino/feminino; mas que se constitui no âmbito mesmo da indiferenciação desses campos que, paradoxalmente, longe de se complementarem e construírem certezas, o lançam frente à condição de desamparo radical. E vale nos indagar se a delimitação clara desses campos, sustentada até agora, não estaria a serviço de escamotear essa condição de desamparo radical do sujeito.
O que nos resta então? A miséria? Será que não foi esta a solução autista frente ao desamparo radical? O que nos cabe afinal? A meu ver, o sujeito que se inventa e é inventado. Pelo viés da injunção de uma ética masculina e feminina, diria Maria Rita, ou pelo viés da feminilidade que abre ao sujeito a possibilidade da construção de uma estilística da existência, diria Birman. Eu proponho o viés do brincar, da construção do espaço lúdico que, sustentado pela experiência de ilusão/desilusão, possibilite ao sujeito se inventar e reinventar, no estilo do “agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês”.
Winnicott nos ajuda a investigar uma solução por esta via. Para ele, e aí está sua contribuição, longe de expressar algo do mundo interno já constituído da criança, o brincar é um espaço de experiência. Uma singularíssima experiência em que as dimensões do tempo e espaço são absolutamente próprias, tornando-se uma via privilegiada de construção criativa do sujeito. Assim, o brincar deixa de ser uma atividade dentre outras pertencentes à vida na infância, para ganhar o estatuto de uma possibilidade humana de lidar com a tensão oriunda do confronto entre o que é subjetivamente criado e percebido e o que advém da realidade externa e compartilhada. Nesse sentido, tudo que se pode falar a respeito do brincar para a criança se estende também ao adulto.
É nessa direção que pretendo encaminhar minhas
investigações e, nesse sentido, a clínica do autismo tem muito a nos ensinar,
porque talvez o mais desconcertante e difícil dessa clínica, seja o confronto
com a ferida profunda de quem, frente ao desamparo radical, não se pôde iludir,
não pôde ser inventado nem se inventar. Não pôde brincar.
NOTAS
1 O CPPL
– Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, é um centro de atendimento
clínico, de ensino e pesquisa em psicanálise. O serviço de Terapia Intensiva
funciona há dezessete anos e foi estruturado para o atendimento de crianças
autistas e psicóticas.
2. André Green. “As paixões e suas vicissitudes”, in Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 249.
3 Ibidem, pp 250-251.
4 Sigmund Freud. “El malestar en la cultura” (1929-1930), in OC. Madrid, Biblioteca Nueva, 1976.
5. Maria Rita Kehl. “A mulher e a lei”. In A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
6. Joel Birman. “Se eu te amo, cuide-se”, in Manoel Tosta Berlinck (org). Histeria. São Paulo: Escuta, 1997.