FICÇÃO E ATO NOS MOMENTOS DE PASSAGEM

Ana Maria Medeiros da Costa

Como comunicar a incomunicabilidade? A universalidade dessa questão, que afeta as línguas, culturas, gerações, sexos, provavelmente adquira seus matizes mais extremos na adolescência. É então que se estipula territórios e se escrevem legislações: o adolescente fecha a porta de seu quarto, registra seu diário, reivindicando privacidade e segredo. Os pais passam à proliferação de normas exangues, ou à tentativa da cumplicidade ineficiente, procurando recuperar um domínio impossível, de circulação entre territórios distintos. Sem perceberem, perderam a bússola e a língua. É uma incomunicabilidade barulhenta. Pelo ruído, mantém-se a necessidade de comunicação. A colocação em ato da incomunicabilidade na adolescência é uma coisa muito curiosa. É clássico pensar-se nesses momentos como anti-sociais. No entanto, todo mundo se entende, porque as reações, entre pais e filhos, são sempre complementares. É dos momentos que melhor se testemunha que entendimento e comunicabilidade são coisas distintas.

Ligado a isso, o tema que nos ocupa - o suicídio – demonstra todo seu paradoxo, porque talvez seja o ato mais social de que dispomos. Aparentemente, é para um indivíduo reduzido à sua máxima solidão e reclusão, que uma tal situação se apresenta. No entanto, como não há um eu que possa testemunhar seu ato, nada mais resta aos outros que tomarem-se como portadores de seu endereço, precisando, por seu turno, suportarem as conseqüências. E aqui eu encontro uma ponte com um tema que tem me ocupado bastante – o da escrita – podendo situá-los mesmo como verso e reverso de uma mesma questão: a necessidade de inscrição decorrente dos momentos de passagem. É por essa via – inscrição, registro – que se transpõe a incomunicabilidade. Assim, tentarei descrever primeiro o que considero próprio a momentos de passagem – onde se caracteriza o trânsito de um lugar a outro. A adolescência já é em si um momento de passagem, mas eu não faria distinção, em relação ao que ora nos ocupa, de outros momentos da vida. Esse trânsito entre campos distintos, podemos situá-lo de pelo menos duas maneiras: o que nos representa nas nossas relações, onde somos tomados numa polaridade ativo-passivo, na qual buscamos uma definição de fronteiras eu-outro. Fronteiras, estas, que têm como única consistência a fantasia, mas que, de qualquer maneira, preserva um certo princípio de separação, do qual a fantasia é tributária. Uma outra maneira de situar campos distintos diz respeito às fronteiras sujeito-objeto, que se estabelece pela produção de nossos atos no mundo. Então, de um lado a ficção, de outro, os atos.

Para me orientar aqui numa construção em comum, retomarei os exemplos que têm me servido para pensar a matriz desses dois princípios. São dois exemplos clássicos freudianos, que todos conhecem suficientemente, e cujo mérito está na sua simplicidade. A matriz da ficção vamos encontrar nessa abordagem de Freud das fantasias sexuais infantis: à pergunta sobre de onde vêm os bebês - que seria uma representação do corpo da mãe – a criança responde a partir da experiência de seu próprio corpo, daquilo que recorta seus orifícios pulsionais (boca, ânus, etc.). Esse corpo de ficção, expresso na fala da criança, é o único corpo do incesto que conhecemos. Resulta de um engano mútuo (mãe-criança), na medida em que a mãe também se engana sobre seu corpo, quando precisa tomar seu filho como um representante do falo. Assim, esse primeiro corpo social, ficcional, constitui em si mesmo uma passagem. Essa passagem nunca é finalizada completamente, apesar das versões que a ela se acrescente, como a versão do édipo, por exemplo. Tomo, aqui, passagem como a impossibilidade de tradução entre registros heterogêneos. De alguma maneira, nossos orifícios sempre vão se constituir nesse umbral de retorno do corpo ficcional do incesto: passagem nunca concluída, garantia da circulação social entre as línguas. A ficção é esse salto entre registros heterogêneos, que ao mesmo tempo aliena e separa. Costuma-se pensar exclusivamente na sua face de alienação, mas eu queria ressaltar sua face de separação: ou seja, a manutenção das passagens.

O outro exemplo que queria mencionar, se refere ao jogo do neto do Freud com o carretel, como matriz da produção de nossos atos no mundo. Enquanto fundamento, responde aos mesmos princípios da construção ficcional, só que acrescenta um elemento a mais: a necessidade do recorte de um objeto como suporte e registro do significante. Esse recorte produz-se no ato – no exemplo, o jogo do carretel. Partindo desse ato, os objetos constituem-se em elementos privilegiados para o suporte de nossa memória, bordeando nossa realidade e permitindo nosso deslocamento. No jogo do carretel, o ato se confunde com a criação do objeto, que é esse elemento, em princípio indiferente, mas que pelo jogo se torna memória do que nunca existiu, resto de uma operação nunca concluída, que é a separação. É dessa matriz que deriva nossa compulsão a criar (ou repetir) e, como no jogo do carretel, cada vez que produzimos esse objeto, nós o perdemos. Nesse sentido, também o ato é um elemento de passagem entre registros heterogêneos.

Não sei se há muito mais o que se dizer sobre o suicídio, senão essa condição de passagem a ato, definida por Lacan, onde alguém não encontra outro suporte para o significante, que não tomando-se pelo carretel e jogando-se no espaço, construindo uma borda, na falta de uma ficção. Nesse sentido, não é surpreendente que este tema surja ligado à adolescência, na medida em que é o momento de uma convocação muito particular, a que se mostre o sucesso ou fracasso de uma versão fálica. Não vou me deter nas razões do suicídio, nem gostaria de contribuir para erotizá-lo demais. Tratar disso interessa-me num ponto que é ao mesmo tempo banal e irresolvível: a incomunicabilidade entre nossa legitimidade social e nossa demanda de amor. No fim das contas, se nos detemos a pensar sobre a adolescência é porque esta tematiza essa irresolução, com toda tensão que a passagem de um lugar a outro – de uma língua a outra - contém. No início da produção freudiana, a adolescência tinha um estatuto privilegiado, que é perdido no decorrer de sua obra. Ali vemos muito claramente, pela introdução dessa estranha temporalidade, que é o a posteriori, a adolescência como a passagem ao lugar que interpreta o sexual (o clássico caso Emma, descrito no "Projeto de uma Psicologia para Neurólogos", exemplifica muito bem). Com os desenvolvimentos sobre a sexualidade infantil e o édipo, esse vislumbre de momentos diferenciais na interpretação do sexo acaba se perdendo.

Assim, pensar na adolescência, na maternidade ou paternidade, na menopausa ou perda de funções corporais, implica em pensar em momentos diferenciais na interpretação do corpo ficcional, enquanto corpo social, ou seja, a interpretação do sexual. Essas passagens sempre têm um duplo sentido: um que se orienta ao passado, como fracasso da versão ficcional; e outro que relança a demanda ao Outro, constituindo o duplo sentido da obsessão de repetição. Pode-se perceber que a convivência da diferença das gerações está sempre colocando em cheque as versões ficcionais, quase como se fossem diferenças de línguas. Freud vislumbrou o único ponto em comum na diferença geracional, ao dizer que o supereu da criança é o de seus avós. O supereu, então, constitui uma espécie de língua única, que amarra as gerações, que problematiza as mudanças do endereço discursivo, tanto quanto o reconhecimento da diferença, que a convivência das gerações instala.

Devo dizer que o termo passagem tem, para mim, uma contextualização muito específica neste momento, porque me vem inspirado na leitura de Walter Benjamin. Talvez por aí não seja casual que eu tenha me decidido por esta mesa, porque Benjamin se suicidou. As circunstâncias de seu ato foram muito particulares: fugindo do nazismo, viu-se bloqueado na fronteira e preferiu matar-se do que ser capturado. No entanto, já pensara em fazê-lo em outro momento, ocasião em que escreveu belíssimas memórias de sua infância, como uma espécie de herança para seu filho. Benjamin talvez tenha se constituído numa passagem ele mesmo, num sentido mais forte do que o somos todos neste mundo: não foi reconhecido como um verdadeiro filósofo, nem escritor, nem judeu religioso, nem verdadeiro marxista, sendo todos ao mesmo tempo. A grande criatividade da produção benjaminiana está em que ele não resolve as contradições de seu pensamento, deixando-nos a convivência desconfortável de um messianismo judaico, com um marxismo revolucionário; de uma nostalgia da tradição, com a esperança e confiança nos avanços da técnica. Interessa-se pelas passagens de Paris, justamente no seu declínio, ali onde a figura do flaneur – em Baudelaire – tinha-lhe dado o charme de um hino à modernidade. Tomo Benjamin, então, como uma passagem – como representante de uma fratura na nossa forma de representação ocidental – da tradição, ao reconhecimento individual. Essa fratura perdeu seu elo com a segunda guerra. Talvez por não tentar solucionar, por não ter constituído uma língua única, possamos encontrar na sua produção uma maior sensibilidade em relação a passagens de um registro a outro.

Foi na leitura desse autor que me ocorreu desenvolver algumas questões, relativas a alguns impasses, e que dizem respeito a essa incomunicabilidade entre a legitimidade social e a demanda de amor: entre o público e o privado. O fim de análise freudiano, por exemplo, esbarra na impossibilidade de renúncia da demanda de amor. Lacan parece ter resolvido o artifício dessa separação, propondo o inconsciente como social e legando-nos as formulações sobre o Outro. No entanto, muitos passos ainda estão por ser dados, porque se enlaçam a nossos paradoxos cotidianos. Interessa-me particularmente o que Benjamin desenvolveu sobre a tradução, na proposta de que a mesma afeta tanto a língua de onde se parte, quanto aquela para a qual se produz a versão. Isso se fundamenta no que ele propõe sobre as duas funções da língua: uma, instrumental – que a faz ser um objeto de comunicação – e outra que contém sua função nomeante – de simplesmente nomear, sem que a comunicação de um sentido esteja em causa. Esta última função talvez só possa ser pensada como saídas puntuais, porque estar na língua – ser veículo dela – implica numa significação que nos ampara o corpo. De qualquer maneira, uma saída possível para a incomunicabilidade entre registros heterogêneos poderia ser o encontro com esta função. Penso que aqui há uma proximidade com a proposta lacaniana de nomear os registros como Nomes do Pai.

Queria retomar a formulação dos dois princípios – ficcional e dos atos – tentando pensá-los nas passagens da adolescência. Para isso, tentarei avançar no que suicídio e escrita poderiam ser equivalentes, como, no limite, verso e reverso de uma mesma questão. Como todos sabem, a escrita na adolescência é orientada pelos diários, que não perderam vigência, apesar da internet. Poderíamos pensá-los até mesmo como precursores dessa compulsão autobiográfica, que o mercado editorial literário nos brinda. Compõem um lugar curioso, numa junção do que seria o mais íntimo, com o encontro dos códigos sociais compartilhados com os pares – ou seja, o privado e o público. Ao mesmo tempo, é um lugar de segredo que se instaura no cerne da casa parental. A quem se dirige essa escrita? Isso não é fácil decidir. Aparentemente a ninguém, porque se trataria de exercitar o que é mais singular na passagem de um código a outro: da casa parental à identidade entre os pares. Nesse sentido, os diários são essa espécie de inscrição de um umbral entre línguas, como o carretel que transpõe o abismo mantendo bem amarrado seu fio. O que os orienta é precisar escrever o que não pode ser dito: seja o que se transmite como segredo na família, seja o que se mantém como inibição entre os iguais. Assim, o segredo acaba por constituir esse campo do privado, como uma espécie de subtração de saber ao Outro, enquanto exercício e domínio disso que não se sabe. O paradoxo é de que a escrita socializa, mostrando onde seria de ocultar. É aqui que se decide a questão do endereço, porque só se escreve quando se muda de lugar: escrever é reconhecer uma distância.

Há um tempo atrás, assisti a um filme que me fez pensar bastante nos endereços da escrita, denominado "O livro de cabeceira", de Peter Greenaway. Esse autor-diretor (o roteiro é escrito por ele) persegue, nos seus filmes, a conjunção perfeita entre o corpo e a letra (são dele: "A barriga do arquiteto", "Zoo, um Z e dois O", e outros). São filmes completamente oníricos e talvez a maior captura do espectador esteja na estética. "O livro de cabeceira" tem, ao mesmo tempo, uma temática múltipla e única. Apresenta, constantemente, lugares duplicados por uma incomunicabilidade estrutural. Não me deterei na análise do filme e trarei somente alguns elementos que compõem as passagens, onde escrever se situa numa vertente particular, no que diz respeito a essa duplicação de lugares, no eixo: assassinato, reconhecimento, interpretação. O filme começa na realização de um ritual muito tocante: no aniversário de sua filha, o pai escreve no rosto dela uma história sobre Deus criando os humanos. No final esse toque: se Deus aprova sua criação, escreve na obra seu nome – e o pai assina nas costas da filha. Na cena seguinte, o pai escritor passa para a habitação ao lado, para receber seu editor. A menina espia pela fresta seu pai sendo sodomizado, em troca da publicação de seus livros. Ao mesmo tempo, no quarto em que ela está, sua tia, de costas, sem querer saber sobre a outra cena, apresenta-lhe o livro das mulheres: a escrita milenar dos diários – o livro de cabeceira – onde as mulheres descrevem seu cotidiano. Dois mundos incomunicáveis, mas com um elemento em comum: a escrita. A menina, ao abrir a fresta, torna-se veículo de uma conjugação impossível: pai-Deus e pai-corpo; pai sublime e pai humilhado. Quando adulta, vai buscar amantes-escribas de seu corpo, para repetir o ritual, sendo que os que melhor escrevem são os piores amantes. Até que topa com um estrangeiro, tradutor que circula por muitas línguas – alusão também à bissexualidade dele, porque acaba se revelando ser o amante do antigo editor do pai da personagem. Tentarei resumir a história, porque a sobreposição de elementos oníricos torna difícil a narração. Como o tradutor não se mostra um bom escriba, ele a convida a que ela escreva nele. Assim ela passa para o outro lado da escrita: o da autoria e do reconhecimento: dos diários privados, à circulação pública. Ela precisa fazer isso, como ela diz, para honrar seu pai. Busca então o editor de seu pai, mas é recusada porque seu corpo não o seduz. Seu amante tradutor se oferece como mensageiro e começa, então, a série de livros-mensageiros, nos corpos masculinos, até que o último mata o editor. Apaziguada, ela fecha a fresta de sua infância, torna-se mãe e retorna ao livro de cabeceira.

No fim das contas, pode-se dizer que a versão de Greenaway, sobre o destino das mulheres, é bem freudiana: decepção com o pai, atividade fálica bissexual, recuperação do valor paterno na maternidade. Independente dessa versão mais genérica, queria me deter em alguns elementos. No filme tem um suicídio: o do amante perfeito tradutor de muitas línguas. Com ele, a personagem encontrara a satisfação tão buscada, no encontro entre o corpo e a letra: "...ele me escrevia em tantos idiomas que eu parecia um sinalizador... tive sapatos em alemão, meias em francês, luvas em hebraico... ele só me deixou nua onde eu costumava usar roupas". Mas, como ele é escravo do corpo, quando leva a mensagem da personagem ao editor, ele se deixa ficar. Com a decepção, ela resolve mandar outros mensageiros, que desbancam o amante, conseguindo fascinar o editor pela escrita. Como o amante mensageiro fica sem lugar, se suicida. Esse cinema onírico, evidentemente, não agrada a todos, mas eu encontro riqueza na proliferação de metáforas e, como cinema, me encanta a estética. Além do mais, tratar da morte sem a injunção superegóica é sempre um achado. No tema tratado aqui, o suicídio está do lado do corpo e o assassinato do lado da inscrição da letra. No limite, eles se eqüivalem. É isso que nos diz a psicose, quando, num determinado momento, é o mesmo matar-se ou matar o outro. O que decide por suicídio ou assassinato, no caso da psicose, são desses acidentes da vida, onde Freud situou o suporte de nossas escolhas sintomáticas.

Outra questão que esse filme traz, é uma ambigüidade em relação à palavra "escritor". O bom "escritor" é o que sabe desenhar a letra, não diz respeito ao escrever histórias. Isso porque a personagem é japonesa e a escrita é próxima do desenho. No entanto, a ambigüidade se mantém, porque não está ausente o campo ficcional. Penso que o autor escolhe a escrita japonesa, para trazer essa proximidade entre o escrever e o ato como impressão, como registro de um traço. Na nossa escrita não reconhecemos essa proximidade, só a recuperando no ritmo da poesia, ou na experiência que uma narrativa nos desperta. São momentos em que conseguimos compartilhar o ato criativo do autor, na medida em que algo desse registro se transmite. Assim, a ficção torna-se somente veículo desse traço, que recorta um objeto como ausência, fazendo-nos gozar nesse transporte.

No campo das artes, tanto quanto da literatura, esse ato é perseguido sem descanso. Não é inusual que adquira a vertente compulsiva da obsessão de repetição. Temos exemplos corriqueiros, mas um que sempre me impressiona é o de Van Gogh. Nos seus últimos dias, este autor pintou setenta quadros em setenta dias, o que dá essa matemática impressionante de um quadro por dia. E isso com aquela complexidade toda de seus quadros. Aparentemente, essa atividade incansável de Van Gogh dizia respeito àquilo que obstaculizava a circulação de sua obra, e que se colocava na relação com seu irmão Theo, que não conseguiu vender nenhum de seus quadros. Nunca saberemos se a aceitação pública seria suficiente para evitar o suicídio de Van Gogh, porque não evitou o de outros autores. Por essa via, vemos o quanto Freud era excessivamente otimista em relação à sublimação, na medida em que ele nos apresenta como uma resolução de conflito. No entanto, o ato criativo pode entrar no mesmo rumo da obsessão de repetição, como qualquer ato sintomático.

As considerações acima servem-me para introduzir mais um elemento nesse tema da incomunicabilidade: as condições de circulação. Essas condições são decididas pelo endereço. A experiência no acompanhamento de análises nos ensina que o reconhecimento fálico, social, não é suficiente para amparar uma circulação, ou seja, que as pessoas consigam legitimar os atos que produzem. Na neurose esbarra-se normalmente com a anulação: seja no recuo histérico e o tema do falso; seja no recuo obsessivo e o tema da transgressão. Aliás, essas duas neuroses imprimem temporalidades distintas, no que diz respeito à referência de seus atos. Essa referência, evidentemente, é suporte do ideal: a histeria como uma projeção ao futuro e a obsessão como uma projeção ao passado. Quando Freud interpreta a obsessão como uma religião privada, talvez pudéssemos deduzir daí não somente uma analogia de estrutura, de que os elementos que estão em causa na obsessão, seriam os mesmos que estão em causa na religião. Talvez, mais do que isso, o acento recaia no "privada", lembrando-nos que a obsessão não é comunicável e a religião o é. Perdoem-me se trago questões que todo mundo já sabe, porque é evidente que se a obsessão fosse comunicável não precisaria de um intérprete: não procuraria um analista. No entanto, não é surpreendente que as neuroses não sejam comunicáveis? Como Freud demonstrou tantas vezes, a língua das neuroses é a mesma da cultura, seja nas religiões, artes, literatura, ciência, ou tantas outras formas relacionais. O que provocaria então o impedimento?

Sobre isso, poder-se-ia pensar no corriqueiro: dificuldades pessoais, inibição, etc. Mas, como se sabe, não é isso que decide. A comunicabilidade – condições de circulação social – não depende prioritariamente do entendimento ou adequação. Ela depende daquilo que as produções (sejam de sintomas ou artísticas) provocam nos outros, esses parceiros-suportes que "destravam" o endereço superegóico, vamos dizer assim. Tinha referido que o supereu produz essa espécie de língua única, transpondo tanto a diferença geracional, quanto a diferença de sexo, produzindo a ilusão de que todos se entendem. Pois bem, o supereu como língua única, tem também um endereço único: o lugar parental: esse que se mantém como representante de um ato originário incomunicável.

Uma das indagações mais interessantes que já encontrei sobre o supereu, está colocada num exemplo analisado por Alain Didier-Weill, onde seu analisante se pergunta por quê um lapso que ele cometeu não era um chiste. No relato, o analisante refere que estava numa estação e viu uma mulher atraente, atrapalhada com uma mala pesada. Ele se oferece para ajudá-la, dizendo: "Permita-me ajudá-la pois você parece tão ‘embrassée’." [do francês embrassée – beijada, no lugar de embarrassée – embaraçada, atrapalhada]. Didier-Weill refere que o que decide por um lapso foi o efeito provocado pela palavra, tanto no sujeito, quanto na sua interlocutora: se houvesse o riso, seria autorizado como chiste; mas ao invés disso, o sujeito encontrou um olhar de desprezo que lhe provocou um "enrubescimento envergonhado". O rubor testemunha a queda da palavra que, não legitimada pelo outro, produz efeitos corporais.

A propriedade desse exemplo está na sua simplicidade, que permite explicitar relações bastante complexas. Primeiro, que o campo do inconsciente é um precipitado relacional. Ou seja, não é suficiente pensar que o analisante do exemplo tinha problemas com sua virilidade e que quando viu revelado seu desejo pelo lapso, não o sustenta (como se o olhar da mulher denunciasse sua virilidade como uma imagem corporal da infância: "muito pequenininho"). Isso é verdadeiro, mas o que provoca a reação da mulher? Por quê o supereu é sempre encontrado como destinatário, mesmo na multidão de uma estação de trens, produzindo o demônio da repetição? Didier-Weill argumenta que a reação da mulher é determinada pelo lugar desde onde seu analisante fala, o que exclui a responsabilidade dela. No entanto, é possível pensar que também do lado dela há um consentimento da interpelação superegóica. Ela também escolhe escutar o supereu e não a brincadeira simbólica das palavras, das quais somos joguetes. Podemos, até mesmo, imaginá-la com seu analista, onde estariam examinando a responsabilidade dela, de provocar reações superegóicas a uma abordagem de desejo. Invariavelmente, há sempre uma dimensão de "resposta" no outro, a tal ponto de que muitas vezes não se sabe quem provoca e o quê provoca. Sabe-se a grande dificuldade quando a neurose encontra a reclusão de seu par perfeito.

Como comunicar a incomunicabilidade? Quando abordei a questão da legitimidade, que implica nas condições de circulação social, deixei entrever que mesmo o ato criativo precisa de uma passagem, da superação do endereço único. Não depende da superioridade de um saber, ou da reclusão de um artista na sua genialidade. Depende da sensibilidade às fraturas do universal da cultura, que seu ato duplica ou mesmo cria para os outros. Ele se dirige ao testemunho de seus pares. René Passeron, em "O nascimento de Ícaro", traz uma afirmação que acho muito bonita: "De fato, o nihil da criação não está atrás, ele está na frente... Criar é sempre criar um futuro. Isso não implica, de modo algum, que uma criação seja sem passado".(1) Esse "criar um futuro" pode ser pensado no sentido de que
nomear e interpretar não se coloca no lugar do "pai" da obra, na medida em
que ele, em si, não "fala", porque está alienado a seu ato. Esse "criar um
futuro" dirige-se aos outros, seus pares (seria "destravar" o endereço de seu próprio pai). Assim, é no testemunho transitório desse ato que se supera a diferença de línguas – a impossibilidade de traduzir – e onde criar pode eqüivaler-se nomear: ou seja, não conter seu sentido.

REFERÊNCIAS

Freud, S. – Mas allá del principio del placer. In: Obras Completas, Biblioteca Nueva, Madrid, 1974.

Lacan, J. – A lógica do fantasma. Seminário livro XIV (1966-67), inédito.

Benjamin, W. – Rua de mão única. In: Obras Escolhidas, Ed. Brasiliense, SP, 1997.

Gagnebin, J.M. – História e narração em W. Benjamin. Perspectiva, Campinas, 1994.

Didier-Weill, A – Les trois temps de la loi. Seuil, Paris, 1995.

Passeron, R. – La naissance d’Icare. ae2cg Éditions, Paris, 1996.

(1) Devo a Edson de Sousa e Lúcia Pereira a possibilidade de avançar no desenvolvimento destas idéias sobre criação e nomeação, que surgiram de debates e trabalhos conjuntos na elaboração de um seminário sobre "Memórias...". É também deste trabalho que cada vez mais reconheço a importância da função dos pares na minha produção.

Ana Maria Medeiros da Costa
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