O
estilo, o analista e a Escola
Antonio
Quinet
O termo estilo se
origina do grego stylus: um instrumento pontudo de metal, punção
que serve para furar ou gravar. Esse aspecto presente em sua
etimologia nos indica sua característica de marca, corte, furo,
e nos servirá para situar o estilo do analista.
A estilística, que
pretende ser uma ciência dos registros das línguas, desenvolveu-se
sob a égide da lingüística. Ela se esforça para definir o
estilo como conceito operatório e dele nos fornece ao menos dois
significados: i) o estilo como instrumento de generalização; o
estilo designa aqui um sistema de meios e regras prescritos ou
inventados, e utilizados na produção de uma obra, por exemplo,
o estilo barroco, o estilo colonial, o estilo art nouveau etc.;
ii) o estilo como instrumento de singularização, definindo uma
propriedade ou qualidade de alguém, em geral um artista de quem
se pode dizer ele tem um estilo.
Na estilística, há
os que têm o estilo e os que não o têm. Se nesta o estilo é
considerado uma virtude singular e um índice de reconhecimento,
na psicanálise a proposta é outra: a psicanálise admite a
vertente do estilo como instrumento de singularização, porém
dele não faz um instrumento de segregação entre talentosos e não
talentosos.
Dito de outro modo,
o estilo na estilística é diferenciado segundo o acordo ou
desacordo com um sistema de regras e valores: o acento é posto
na anterioridade do sistema. Quando um sujeito se adapta e segue
o sistema organizado que constitui um determinado estilo, ele se
encaixa na generalização deste estilo. Em relação à
singularidade, pode haver uma antecipação de um estilo, como é
o caso de alguém que rompe com o sistema de regras e meios de
expressão de um determinado estilo a partir de seu estilo próprio,
inventando um novo estilo que outros seguirão. Neste sentido, o
que se chama de singularização é a ênfase na transgressão do
sistema, ou seja, em sua ruptura e a conseqüente inovação. Em
outras palavras, o estilo é pessoal e transgride o sistema de
normas do estilo generalizado.
Esse aspecto nos
permite evocar a contribuição de Marie-Jean Sauret, (Sauret,
1996) que define o Analista da Escola - aquele que demonstrou no
dispositivo do passe ter efetuado a passagem de analisante a
analista - como uma objeção ao saber ao saber do
Outro (o Outro da teoria o Outro da psicanálise, o Outra da
instituição), ou seja, como singularidade que rompe com o saber
universal. Um analista que se constitui como objeção ao saber
é aquele que põe algo de si na elaboração do saber psicanalítico,
contribuindo com seu estilo próprio para uma inovação de saber.
No poeta, quebra-se o elo da transmissão: o indivíduo,
por instantes, opõe-se à sociedade consciente ou
inconscientemente e, com os mesmos processos da língua-social
também consciente ou inconscientemente cria seus
valores individuais, sua língua-indivíduo: estilo (Houaiss,
1948). Contra a opinião corrente, Lacan propôs que essa língua-indivíduo
é precisamente, como o estilo na poesia, o que se
transmite em psicanálise.
Buffon e Lacan
O estilo é o
próprio homem, diz Buffon. O estilo é o homem a quem me
endereço, corrige Lacan. (Lacan, 1998 [1966]: 9).Melhor dizendo,
o estilo é o Outro: o Outro a quem eu me endereço como lugar é
o mesmo Outro de que recebo minha própria mensagem de forma
invertida. Que Outro é esse senão o Outro do pacto da palavra,
o Outro da fala que também é o Outro do comando?
Podemos desdobrar a
afirmação de que o estilo é o Outro em pelo menos duas acepções:
na primeira, pode-se considerar que o Outro social, por exemplo,
o Outro da comunidade dos analistas comanda meu estilo, o que
corresponde ao estilo generalizável não muito longe da moda; na
segunda, que se trata do Outro do Inconsciente, pois o
Inconsciente é o discurso do grande Outro. O estilo é
efetivamente tributário das leis do inconsciente: não há
forma de estilo, por mais elaborado que seja, em que o
inconsciente não abunde (Lacan, 1998[1966]:469).
Assim, o primeiro
passo para corrigir Buffon é colocar o Outro lá onde ele coloca
o próprio homem. Buffon situa o estilo tributário do pequeno
outro e Lacan inicialmente o situa articulado ao grande Outro do
Inconsciente. No esquema L (Lacan, 1987[1954-5]: 284), a mensagem
que o sujeito envia ao outro, ao pequeno outro, é na verdade uma
mensagem que lhe vem do inconsciente como discurso do Outro. Mas
como situar o estilo como estilo do Outro quando nós sabemos que
o Outro não existe?
Quando o sujeito
chega no final de análise, ele se depara com o ponto de
inconsistência do Outro, lá onde o Outro não responde,
deixando o sujeito sem recurso, pois sabe que do Outro não virá
qualquer salvação. O Outro não responde porque não existe e o
sujeito se vê diante da solidão originária, do desamparo.
Nesse ponto de inconsistência do Outro, em que o sentido se
perde, e o apelo se esgota, o sintoma perde também o seu endereçamento
ao Outro e aí se reduz a um toco de real.
Por outro lado, o
Outro o Outro da demanda e o Outro do comando com sua exigência
superegóica se desvanece. O final de análise coloca em
questão a identificação do estilo do sujeito com o estilo do
Outro, ou seja, ele suspeita se o estilo provém mesmo do Outro.
Podemos inferir que é esta a razão de Lacan concluir no texto
de Abertura dos Escritos que não é o Outro e sim o objeto a o
que responde pela questão do estilo:
É o objeto
que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída.
A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos
de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo,
como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte
do sujeito entre verdade e saber (Lacan, 1998, [1966]:11)
O estilo não é o
próprio homem. O estilo não é o Outro. O estilo é o objeto a,
causa de desejo. Se é possível remeter o estilo ao Outro da
linguagem, isto se deve à articulação entre o gozo e o
significante, como veremos adiante. Em psicanálise, a questão
do estilo se articula tanto com a verdade quanto com o saber.
Se o estilo que advém
numa análise é o estilo relativo ao Outro, na condição de
barrado, então o matema que corresponde a esse estilo é
correlativo ao matema S(A): há uma falta no Outro. Ora, o ponto
de falta no Outro é o correlato topológico do objeto a, causa
de desejo, que o sujeito encontra no final da análise a partir
da travessia da fantasia, uma vez que era esta que sustentava a
suposição da existência do Outro.
A travessia da
fantasia é a condição para que haja esse encontro com a
inconsistência do Outro, todavia este não é absolutamente
necessário. Ele pode ocorrer ou não, e quando ocorre é sempre
ocasional, contingente, por acaso. É por acaso que o sujeito
tropeça, se depara com a falta do Outro e experimenta esse sem
recurso do apelo ao Outro.
Se o estilo advém
do sem recurso, como se dá em uma análise esse processo em que
advém o estilo? E qual sua relação com o sintoma?
A identificação
com o sintoma no final de análise (Lacan, 1976) não nos diz
nada da operação analítica, pois não é com seu sintoma que o
analista opera. Uma teoria do estilo merece ser elaborada para
que se articulem final de análise, ato analítico e transmissão
da psicanálise.
Bem dizer o
sintoma
Antes da análise,
o sintoma é um dizer que ainda não encontrou seu dito. A
passagem para o sintoma bem-dito é o que constitui o termo do
processo analítico que se alinha na ética do bem dizer. Neste
sentido, a ética da psicanálise é a ética de bem dizer o
sintoma.
Na entrada em análise,
para que o sintoma do sujeito se transforme em um sintoma analítico
é preciso que ele seja considerado pelo sujeito como um parceiro
de verdade, nos dois sentidos da expressão. O sujeito precisa não
só dar crédito ao sintoma (y croire), como também acreditar
nele (le croire)(Lacan 1974-75: 110). Ele precisa considerar que
o sintoma seja verdadeiro e não falso e, por outro lado,
considerá-lo em uma parceria com a verdade, isto é, é preciso
que ele considere que o sintoma detém algo de sua verdade, que o
sintoma subjetiva sua verdade. Portanto, para que uma análise se
inicie, é necessário que o sujeito considere seu sintoma
estruturado como a verdade, isto é, como um enigma em que algo
está velado e que ao mesmo tempo desvela algo da verdade.
O sintoma como
verdade é alethos: ele vela e desvela algo que o
sujeito considera como uma mensagem endereçada a ele e fazendo
parte de sua verdade. Por fazer parte da estrutura da verdade, o
sintoma não pode ser dito por inteiro, ou seja, o sintoma é um
semi-dizer porque participa do enigma da verdade. Um sintoma,
mesmo quando é decifrado, contém algo que continua velado ao
sujeito. Isso muitas vezes é uma frustração que ocorre na análise,
pois o sujeito que esperava uma grande revelação de sua verdade,
ao decifrar seus sintomas, verifica que a verdade sobre seu ser não
é totalmente desvelada.
A operação da
psicanálise vai portanto do semi-dizer da verdade do sintoma ao
bem dizer o sintoma. O que não quer dizer que o sintoma desapareça,
pois, como indicamos, ele não se diz por inteiro. Se o sintoma
no início da análise é um semi-dizer que ainda não encontrou
seu dito, no final da análise o sujeito chega a um bem dizer o
sintoma apesar de não fazê-lo totalmente. O sintoma fica
reduzido, por assim dizer, a um real bem dito.
O que é um sintoma
como um real bem dito? Não seria um paradoxo falarmos de um real
dito, se o real se caracteriza pelo impossível?
O bem dizer do
sintoma é um dizer de verdade que toca o real, um dizer sobre o
núcleo do real do sintoma, que é irredutível. Eis a dimensão
ética (e inédita) do sintoma em psicanálise. Diferentemente da
medicina, em que se tenta abolir o sintoma, a psicanálise
considera o sintoma como um signo do sujeito. Por outro lado, bem
dizer o sintoma equivoca com abençoar o seu sintoma, apontando
para a conciliação com este. Todavia trata-se de uma conciliação
diferente do compromisso neurótico de recalcar a verdade da
castração do sujeito. Segundo Lacan, recalcamos a verdade, e
nos habituamos ao real.
A conciliação com
o sintoma no final da análise implica, por um lado, não
recalcar a verdade do sintoma, mas sim bem dizê-la, e, por outro,
habituar-se com seu real, reduzido a um caroço ou núcleo
irredutível. Mas qual é o efeito dessa redução? Este é um
efeito sobre o mal-estar que o sintoma provocava. Neste sentido,
bem dizer o sintoma é a condição para aquilo que Lacan propôs
referindo-se à relação do sujeito com seu sintoma no final de
análise: savoir y faire, saber lidar com o sintoma (Lacan, 1976).
Em resumo, o bem dizer do sintoma a que leva uma análise
conduzida até seu final é a condição de saber lidar com ele,
ponto a partir do qual podemos introduzir a questão do estilo.
As vias do gozo
A passagem do semi-dizer
do sintoma ao bem dizer o sintoma que constitui o próprio
processo analítico implica num efeito na enunciação do sujeito,
muitas vezes constatado pelos mais próximos ao comentarem algo
como: Há algo que mudou em você, eu não sei direito o
que é... isso deve ser efeito da análise. Amigos,
parentes, colegas notam uma mudança verdadeira na maneira, no
jeito de ser, de viver, de falar e de escrever da pessoa. Trata-se
de um efeito sobre o estilo que a psicanálise deve considerar e
tentar justificar, pois trata-se de um efeito na enunciação que
corresponde a uma mudança operada na economia do gozo.
Essa mudança
incide na relação entre significante e gozo, que é uma relação
de causalidade: o significante é a causa do gozo (Lacan,
1982 [1972-3]: 36). O que isso quer dizer?
Lacan desdobrou
essa causalidade a partir das quatro causas de Aristóteles
descritas no livro II da Física. O exemplo utilizado por Aristóteles
para abordar as quatro causas é o do artista escultor que faz de
um bloco de mármore uma estátua. A causa material é aquilo de
que a coisa é feita, ou seja, é a própria matéria, no caso, o
bloco de mármore. A causa eficiente é o agente, ou seja, o
escultor que utiliza seus músculos e o instrumento, a espátula,
por exemplo, para fazer a estátua. Em outras palavras, o agente
que atua sobre a matéria com seus próprios movimentos e a
transforma em um objeto estético. A causa formal é a idéia, o
modelo que o escultor tem da estátua, a idéia que está
na alma do artesão, diz Aristóteles. A causa formal não
está no corpo como a causa eficiente, porém na idéia do agente.
Por último, a causa final é aquilo em vistas do que toda a
operação é realizada. A causa final é chegar-se a um efeito
de belo, ou seja, é para atingir o Belo que a estátua foi feita.
Segundo Lacan, para
os seres falantes. a essência aristotélica (ousia, a substância)
é da ordem do gozo. Desdobrando o axioma o significante é
a causa do gozo de acordo com as quatro causas de Aristóteles,
teremos: como causa material, o significante é o material para
se chegar ao gozo, para abordá-lo. Sem o significante não há
gozo do corpo. O corpo gozante tem como material o significante.
Como causa eficiente, o significante é o projeto com o qual se
limita o gozo. É o caminho que o gozo efetua, comparado por
Lacan com o trajeto da abelha que transporta o pólen da flor-macho
para a flor-fêmea. Isso indica que o significante é o escultor
das vias de gozo, é ele que traça as ruas, os canais por meio
dos quais o corpo goza. Como causa formal, ele é o estreitamento,
o aperto ao qual o gozo é submetido. É o modelo do
gozo que Lacan encontra na gramática. O significante estreita,
aperta o gozo na gramática. A causa formal promovida pelo
significante produz uma gramática do gozo cuja melhor ilustração
encontramos no verbo.. A gramatização do gozo como causa formal
não deixa de evocar a gramática pulsional promovida por Freud
em sua metapsicologia. E como causa final, o significante é o
freio do gozo, um alto lá ao gozo. A causa final do
gozo não é o Belo nem qualquer outro ideal, pois o significante
como causa final é a barreira ao gozo, um limite interno a ele.
Segundo Lacan, ela se encontra na origem do vocativo do
comando, o comando do supereu goza!
desvelando a estrutura do significante provocando o gozo.
Como causa de gozo,
o significante nos mostra que a linguagem traça as vias do gozo;
ela promove seus caminhos, ruas e avenidas, seus compartimentos e
comportas favorecendo umas, dificultando outras ou
impossibilitando ainda outras. O significante fabrica os
circuitos de gozo para o sujeito. Nesses circuitos, situam-se
tanto o sintoma como a fala própria ao sujeito, pois ambos são
tecidos de linguagem e de gozo.
Ora, é nisso que a
análise opera: nas vias de gozo do significante, nessas vias da
economia libidinal promovidas pelos significantes. Se há limites
intransponíveis, pois nem todos os compartimentos podem ser
abertos, outros são transpostos ao serem desatados alguns nós
de significação do sintoma. E como o sintoma é do mesmo tecido
da linguagem, ao se desfazerem os nós de gozo do sintoma,
algumas comportas se abrem para o dizer, para o bem dizer. A
modificação das vias significantes de gozo é correlata à
passagem do semi-dizer do sintoma a seu bem dizer, que se
acompanha necessariamente de uma mudança na enunciação, ou
seja, no jeito de lidar com a linguagem, incidindo sobre o estilo
do sujeito.
O estilo não é
o sintoma
O estilo é a via
da manifestação da verdade; o sintoma é outra, só que em
momentos diferentes. Na análise, o sintoma como verdade
participa de um processo que comporta dois destinos. No final, o
sujeito não acredita no seu sintoma e não lhe dá mais crédito,
pois ele foi reduzido a um real irredutível e o sujeito
considera que não tem mais nada de verdade em seu sintoma. A
verdade não é mais função do sintoma. Terá ela desaparecido?
Não. Ela se encontra na via do estilo em que a verdade toca o
real através do bem dizer.
A enunciação é o
modo de dizer de cada um, o modo de manejar os enunciados e as
proposições, aquilo que vem a mais no enunciado por onde
circula o mais-de-gozar, esse suplemento do enunciado. A verdade
como tal, por sua estrutura de semi-dizer, que não se encontra
toda no dito, participa da enunciação. Como afirma Lacan,
o verdadeiro só depende de minha enunciação (Lacan,
1992[1969-70]:68). Ele não está na preposição. O semi-dizer
da verdade do sintoma passa, em uma análise, para a enunciação
de enunciados aos quais o sujeito chega sobre o próprio sintoma,
enunciados verdadeiros que constituem o bem dizer próprio à ética
da psicanálise. No sintoma, não encontramos propriamente la
verité mas la varité, não a verdade mas a varidade
(Lacan, 1976), equívoco que Lacan faz entre verdade e variedade,
indicando-nos a passagem do sintoma-verdade à variedade do
sintoma de cada um, à singularidade do seu sintoma.
Em suma, o sintoma-verdade
comporta dois destinos: o estilo, que é da ordem da enunciação
por onde circula a verdade, e o sintoma como real. A verdade se
desvincula do sintoma para estar a serviço do estilo.
Um ensino digno de
Freud só se produzirá pela via mediante a qual a verdade
mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é
a única formação que podemos transmitir àqueles que nos
seguem, ela se chama: um estilo (Lacan, 1998[1966]:460).
Transmissão de verdade que provém do real.
A distinção entre
o sintoma e o estilo é fundamental para abordarmos a transmissão
da psicanálise e a maneira pela qual o analista opera. Se todo
analista passou por uma análise, cada um certamente tem um
sintoma, pois o sintoma não termina para ninguém (1). Mas será
que o analista opera com o seu sintoma? Não. O analista não
opera com seu sintoma, ele opera a partir de seu estilo, que é o
estilo de cada um, através do qual ele sustenta aquilo que Lacan
denomina desejo do analista, o operador lógico de
todo processo analítico. Para o analista, saber lidar com o seu
sintoma para conduzir uma análise corresponde a fazer calar o
sintoma e operar com o desejo do analista, o que inclusive é de
grande importância para se pensar a transmissão da psicanálise,
pois não se transmite o sintoma; podemos identificarmo-nos ao
sintoma, mas não transmiti-lo.
A transmissão pela
via do estilo pode ser pensada a partir dessa frase paradoxal de
Lacan: Façam como eu, não me imitem. Podemos
interpretá-la da seguinte forma: Façam como eu, saibam
lidar com seu sintoma, e inventem um estilo que lhes seja próprio.
E mais: Ponham algo de si na Psicanálise, não se
identifiquem comigo. Poderíamos formular que o não
me imitem está do lado do sintoma, e o façam como
eu, do lado do estilo, podendo então ser traduzido por:
Tenham [cada um] seu estilo próprio, pois eu tenho o meu.
Transmitir um
estilo parece ser um paradoxo. Não se trata de herança paterna,
como se dá na tranmissão da castração de pai para filho. Nem
de passar o bastão ou a tocha ardente, como nas Olimpíadas. O
que se transmite no estilo é algo da enunciação de cada um,
por onde circula, no caso da análise, o x do desejo
do analista. Ora, um estilo, por não ser um traço significante,
não se presta à identificação. Quando se vê uma pessoa
tentando imitar o estilo de outra, surgem as coisas mais ridículas.
Aparece um macaquear, um traço de inautenticidade bizarra
revelando uma tentativa fracassada de identificação. (2)
O estilo, presente
na enunciação, no modo de falar, escrever e mesmo viver, é o
que Lacan propõe quando ele situa no preâmbulo à Ata de
fundação da Escola que a Escola pode ser o lugar de
discutir o estilo de vida ao qual uma análise leva,
pois o estilo é a forma, o jeito, a maneira, que cada uma
escolhe viver, sabendo lidar com seu sintoma. O estilo pode
portanto ser considerado como a maneira que o sujeito lida com o
seu sintoma, essa maneira passando pelo bem dizer.
O
estilo e o discurso do analista
Na
teoria lacaniana dos discursos, o estilo aparece definido como a
forma de imposição de um discurso (Lacan, 1992 [1969-70]:39).
A forma aí tem todo o seu peso: é a maneira pela qual um
discurso se impõe como um laço social. Se tomamos o estilo como
algo da ordem da enunciação, podemos verificar como se dá a
enunciação em cada discurso. O discurso como laço social é o
âmbito em que se inscrevem nossa conduta e nossos atos, sendo
constituído por certos enunciados primordiais. Os enunciados
podem ser desvelados a partir daquilo que se encontra no lugar do
agente de cada discurso: no discurso do mestre é a lei; no
discurso da histérica, o sintoma; no discurso do universitário,
o saber; no discurso do analista, o rechaço do discurso. Cada
discurso vai se impor com um estilo que lhe é próprio: o que
confere o estilo de cada discurso está vinculado ao que se
encontra no lugar da verdade que habita a enunciação.
No discurso do
analista, encontramos o saber no lugar da verdade, indicando-nos
que o estilo do analista é um estilo marcado pelo saber. O
estilo do analista presente no ato analítico é suportado pelo saber
lidar com o sintoma, expressão utilizada por Lacan pra
definir o final de análise (Lacan1976), saber lidar com a castração.
Esse saber lidar (savoir y faire) se articula com o saber
inconsciente: tanto o saber sobre seu inconsciente quanto o saber
sobre o inconsciente do analisante. Trata-se de um estilo
vinculado ao desejo do analista que, segundo Lacan, não é um
desejo puro, mas sim o desejo de se obter a pura diferença
absoluta (Lacan, 1979 [1964]: 260), que corresponde ao S1,
produto de uma análise. Podemos acrescentar que o desejo do
analista é um desejo impuro porque ele é vinculado ao saber, ou
seja, ele não é um puro desejo sexual, mas sim desejo de saber.
Dito de outro modo, o desejo do analista, que corresponde à sua
enunciação, é o desejo veiculado por seu estilo: desejo imiscuído
de uma episteme, a episteme analítica, que pode ser resumida
como saber que não há relação sexual que possa ser escrita na
estrutura.
Neste sentido, o
estilo é a grife, a marca que o analista faz incidir em seu ato
e em sua interpretação; a maneira pela qual toma corpo o x do
desejo do analista. Trata-se da modulação particular através
da qual ele envia não a sua própria mensagem ao Outro, porém
ao sujeito analisante envia a própria mensagem deste, de forma
interpretativa. Mensagem equívoca que longe de pontificar,
divide.
Somente no discurso
do analista o estilo é desvelado como propriamente tributário
do objeto a (no lugar do agente do discurso), pois é aqui que o
estilo vinculado ao laço social é agenciado por aquilo que é o
mais particular do sujeito. No matema do discurso do analista
aparece a depuração máxima do estilo, pois ele aparece como
pura enunciação, sem sentido, e até sem significante, no rechaço
do discurso (a) que tentamos apreender com o jeito, a maneira.
Lacan e seu
estilo
Na concepção do
estilo de Lacan há uma virada do estilo vinculado ao Outro do
inconsciente para o estilo vinculado ao objeto a e, podemos dizer,
ao S(A). Ele se refere a seu próprio estilo em dois momentos
diferentes. O primeiro em 1956: não há forma de estilo,
por mais elaborado que seja, em que o inconsciente não abunde,
sem excetuar as erudiditas, as concettistas e as preciosas, que
ele [Quintiliano] despreza tão pouco quanto o faz o autor destas
linhas, o Góngora da Psicanálise, segundo se diz, para servi-los
(1998[1956b]:469). Vemos aqui como Lacan aproxima seu estilo de
escrever ao de Góngora, situando-se como um autor em relação
ao estilo de um outro autor. O para servi-los indica
o endereçamento ao leitor e que o estilo faz laço entre o autor
e o leitor. Já em 1973 ele qualifica o seu estilo aproximando-o
do estilo barroco. Ele não diz que seu estilo é o barroco, mas
sim que eu me alinho, de preferência, para o lado do
barroco (3). O de preferência e o para o
lado introduzem uma certa nuança em relação ao estilo em
sua vertente generalizada. O que interessa do estilo barroco a
Lacan são as esculturas sacras, engendradas pelo cristianismo:
tudo é a exibição de corpos evocando o gozo (Lacan,
1982[1972-3]:102). Para Lacan, nesses anos 1970, após retornar
de uma viagem à Itália em que visitara inúmeras igrejas
barrocas e encontrara a estátua de Santa Tereza de Bernini, que
lhe servirá de ilustração do gozo feminino, o que interessa é
menos a linguagem, como nos anos 1950, do que o gozo implicado no
estilo barroco. Há um mais-de-gozar do estilo que é desvelado
pelo barroco, ou seja, o estilo é uma forma de manifestação do
mais-de-gozar.
Como dissemos,
Lacan situa o objeto a lá onde Bufon situa o homem. O final
deste pequeno texto de abertura aos Escritos termina dizendo:
queremos com o percurso de que esses textos são o marco e
com o estilo que seu endereçamento impõe, levar à uma conseqüência
em que ele, o leitor, precise colocar algo de si. O estilo
que seu endereçamento impõe mostra que este tem sempre um
endereçamento, que, todavia, não é um endereçamento ao grande
Outro. Tributário do objeto a, o estilo não deixa de constituir
laço social, pois tem um endereçamento. Não existe um estilo
autista, por exemplo, que seja um endereçamento para si. Nesse
trecho, Lacan se endereça ao leitor com o seu estilo, o que pode
ser escrito assim: estilo ® leitor. Sendo o estilo correlato ao
objeto a e o leitor um sujeito dividido que deve colocar algo de
si, podemos formalizar a via do estilo na transmissão escrevendo:
a ® $ (parte superior do discurso do analista).
A transmissão
do estilo
O estilo como a
única formação que podemos transmitir àqueles que nos
seguem nos faz definir a transmissão em psicanálise como
endereçamento do estilo do analista. Cada ato do analista traz a
marca ou o estilo do que Lacan considera o protótipo do ato analítico,
ou seja, o ato da passagem de analisante a analista, realizado no
interior de uma análise. Se isso é verdadeiro, o passe é o
dispositivo em que se pode efetivamente verificar o estilo
daquele analista, pois é ele que poderá acolher, recolher e até
mesmo fazer a seriação da variedade dos finais de análise dos
analistas, assim como o que de sua enunciação chega até o júri
do passe.
No preâmbulo da
Ata de fundação da Escola freudiana de Paris (Lacan
1964), Lacan diz que o termo Escola deve ser tomado no
sentido em que, nos tempos antigos, queria dizer certos lugares
de refúgio e até mesmo bases de operação contra o que já se
podia chamar de mal-estar na civilização. Para nos atermos ao
mal-estar na psicanálise, a Escola entende oferecer seu campo não
apenas a um trabalho de crítica, mas à abertura do fundamento
da experiência, à colocação em causa [discussão, debate] do
estilo de vida no qual ela desemboca.. A própria definição
de Escola de Lacan implica a avaliação do estilo de vida a que
uma psicanálise leva. O estilo de vida aqui se distingue
radicalmente das normas e dos modelos: não é possível se
normatizar, nem se prever o estilo que o sujeito adotará ao término
de uma análise.
Por mais duvidosos
que sejam os resultados de uma análise, eles se encontram para
além das flutuações de moda e das premissas cegas a que se
fiam tantas terapias, continua Lacan nesse texto. É
importante salientar aqui essa diferença que apreendemos entre o
estilo e a moda. Apesar de quem faz moda se chamar estilista, há
toda uma diferença entre o que é da ordem do estilo em sua
singularidade e a moda que tenta ditar um estilo generalizável (4).
Lacan situa os
resultados da psicanálise em oposição às flutuações da moda.
Podemos, entretanto, nos perguntar se também não existe moda na
psicanálise, uma moda que acaba se opondo ao estilo singular
como resultado de uma psicanálise. A Associação Mundial de
Psicanálise é mestre em lançar a moda de temas, termos e
frases que todos saem repetindo. Antes era o um por um,
agora a Escola Una. O desconhecimento e o descaso da
questão do estilo chegaria às raias do ridículo se não fosse
grave e seu testemunho pode ser lido, por exemplo, no Correio da
Escola Brasileira de Psicanálise de junho de 1998 em que seu
presidente escreve: O analista não deve ser um escravo do
estilo [...]. Redizer que o estilo é o homem a quem nos endereçamos
é equiparar o analista ao homem pronto a todas as circunstâncias
[...]. O analista pronto a todas as circunstâncias destacará em
cada tempo: presente, passado e futuro a permanência da causa.
Sustentará um estilo marcado pelo seu endereçamento. É o que
propicia a conversação como um método pedagógico da causa
psicanalítica. Esta pérola do desvio da psicanálise,
resvalando explicitamente para a pedagogia, indica o que está
implícito no método da conversação: fazer os analistas
entrarem no discurso universitário, educando a causa analítica
para melhor atenuá-la. Se o objetivo explicito de conversação
é a pedagogia da causa analítica, ela se revelou na prática um
processo stalinista de expurgo dos contestadores (5). É o método
de uma nova psicanálise de massa que mal escamoteia
a psicologia das massas descrita por Freud antecipando o nazismo
e o fascismo. Por outro lado, um estilo marcado pelo endereçamento
é o oposto de um endereçamento marcado pelo estilo. Um estilo
marcado pelo seu endereçamento é um estilo que é sempre do
Outro, modulado e determinado pelo Outro. Se há algo que não
pode ser uniformizado e que não pode ser marcado pelo endereçamento
é justamente o estilo da singularidade que é o estilo do
analista. O estilo de cada analista não pode ser marcado pelo
Outro a quem ele endereça sua mensagem.
Uma Escola que
determine um estilo a seus membros, uma Escola que imponha um
estilo é aquela que funcionará como Outro. Consequentemente, as
pessoas terão seu estilo marcado a partir desse endereçamento,
o que vai contra o discurso do analista, pois o estilo é tributário
do objeto a, causa de desejo. O estilo do analista, como já tínhamos
acentuado, é vinculado a essa singularidade do objeto a e à
incompletude do Outro [S(A)]; não há portanto o Outro completo,
garante para o qual se possa endereçar seu ato, o que não quer
dizer que o estilo não esteja no laço social.
A transferência de
trabalho, como Lacan desenvolve na Ata de fundação,
é a transferência que se dá de um sujeito a um outro sujeito.
Quando se endereça uma mensagem, uma fala, não se pode cair na
ilusão que se está falando para o Outro, o coletivo. Na verdade,
a transmissão da psicanálise, através da transferência de
trabalho, ocorre de um para cada um individualmente, na transferência
de trabalho com quem transmite. Em outras palavras, o conceito de
transferência de trabalho indica que não se transmite para o público,
como Outro do coletivo, pois ela é um conceito que aponta para S
(A): a inexistência do Outro. O estilo do analista na transmissão
de seu ensino é um estilo sem Outro.
Em uma psicanálise,
o analista não se dirige ao Outro mas ao sujeito, e o seu estilo
em seu ato é da ordem do eu não penso. É um estilo
separado da cadeia do pensamento inconsciente, ao sabor da
contingência, ou seja, que não se prepara nem se planeja. Nessa
acepção, estilo de contingência significa que de repente a
transmissão cessa de não se escrever e o estilo se transmite,
produz encontro. O estilo do analista faz aparecer que a verdade
provém do real (Lacan, 1993[1974]:11). Como um estilete, stylus,
ele fura, penetra, corta; ele rompe com a repetição da cadeia
significante e, no ato, aparece como um puro dizer. Vinculado
portanto ao desejo do analista e a seu ato, o estilo do analista
é um estilo de passe, momento do ato analítico produzido como
resposta do sujeito ao encontro com o real no final de análise:
estilo que provoca a passagem e a partir do qual não é impossível
que desta algo se transmita. Eis o desafio do dispositivo do
passe inventado por Lacan: verificar que é possível depreender
um estilo que implique uma passagem, a passagem a analista, ou
seja, o passe. E seus atos trarão essa marca. É um etilo pas
sans acte, passe en acte. (Nguyen, 1998).
A emergência de um
estilo para cada analista se dá no momento do passe. O estilo é,
portanto, inventado, criado na passagem de analisante a analista.
Por consegüinte, ele não se apoia na fantasia, tampouco no
sintoma. Ele é o resultado da travessia da fantasia para ser um
estilo novo, ex-nihilo, correlato ao desejo novo como desejo do
analista, desejo epistêmico, desejo de saber. Eis a operação
da transmissão pela via do estilo: transmissão de passe
causando passe.
Antonio
Quinet
Notas
1. O analista
também se identifica com seu sintoma, diz Lacan na Abertura
da Seção Clínica.
2. Há pouco tempo,
em um restaurante, ouvi um cantor em Curitiba que tinha em seu
repertório desde blues, jazz, até música sertaneja, passando
por bossa nova, rock e chorinho; a cada vez que ele cantava uma música
parecia que era outro cantor que a estava cantando. Podíamos até
reconhecer o cantor que ele estava imitando, ou seja, aquele com
cujo estilo ele estava se identificando. Diante deste fato, Jorge
Sezarino propôs uma comparação, uma diferença entre o intérprete
e o cantor. O intérprete é aquele que tenta imitar o estilo de
um cantor conhecido e o cantor é o que canta cada música à sua
maneira com o estilo que lhe é próprio.
3. Em francês:
Je me range plutôt du côté du barroque
4. Também existe a
moda no âmbito psi: a moda da síndrome do pânico,
a moda da depressão e a última moda do TOC (transtorno
obsessivo-compulsivo), cujo tratamento medicamentoso foi a grande
estrela do Congresso Brasileiro de Psiquiatria em São Paulo de
1998, junto com a prevenção da depressão.
5. Cf. Os
desenvolvimentos que apresento em meu texto Pacto, que
pacto sobre os processos stalinistas em que as Conversações
da AMP se transformaram (Quinet, 1998d).
Bibliografia
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Antonio,
Poesia e
estilo de Carlos Drumond de Andrade, Rio de Janeiro, Ministério
da Educação e Cultura, Serviço de documentos, 1948.
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Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1987.
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de fundação da Escola Freudiana de Paris, Opção
Lacaniana, n. 17, 1996.
(1964), O Seminário,
livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1979.
(1966) Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
(1969-70) O
Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992.
(1972-3) O
Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1982.
(1974) Televisão,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
(1974-75) Le
Séminaire, RSI, (21 de Janeiro de 1975), Ornicar ? n.3,
Paris, 1975.
(1976) Ouverture
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(1976) Seminário,
Linsu que sait de lune-bévue saile à mourre
(18 de novembro de 1976) , Ornicar?, n. 12/13, Paris, 1977.
NGUYEN,
Albert
Le
style de lAutre à lacte: de lx au nom, Le
style, 6-4-2-, Bulletin de lACF- Toulouse - Midi-Pyrénées,
n. 7, 1998.
QUINET,
Antonio
(1998)
Pacto, que pacto?, in A cisão de 1998 da Escola
brasileira de Psicanálise, de Maria Anita Carneiro Ribeiro, Rio
de Janeiro, Marca dAgua Editora (Palea), 1998, pp.
123-133.
SAURET,
Marie-Jean,
(1996) "L'interpretation après la passe : entre logique et poesie", Seminaire d'A.E., Toulouse, ACF-TMP 1997.
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