O "SHIBBOLET" DA PSICANÁLISE

Augusta G. Heller*

Cesar Augusto Antunes**

Joyce Goldstein***

DIFERENTES DIALETOS

Este trabalho é fruto do esforço conjunto de candidatos de duas Instituições Psicanalíticas de Porto Alegre. Desta maneira, pode apresentar as possíveis imperfeições resultantes da união de diferentes formas de pensar, mas traz consigo também a tentativa de encontrar uma linguagem comum.

Durante o tempo que constitui o que se conhece por formação analítica fomos apresentados a várias concepções teóricas e cada um de nós sentiu-se atraído pelos conceitos psicanalíticos deste ou daquele autor. Percebemos que não havia divergências somente entre os agrupamentos teóricos, motivados da mesma maneira pelas idéias de diferentes escritores, as instituições psicanalíticas carregam conflitos que transformam o diálogo entre elas em uma árdua tarefa.

Thomas Kuhn em sua obra " A Estrutura das Revoluções Científicas" comenta que durante o período que denomina pré-paradigmático várias escolas competem pelo domínio de um saber determinado, mais tarde, após a ruptura de verdades até então aceitas, estas escolas se reduzem, podendo chegar a se constituir em uma só forma de pensar teórico. Diz que começa então um tipo mais eficiente de prática científica.

" Somente aqueles que retiram encorajamento da constatação de que seu campo de estudos ( ou escola) possui paradigma estão aptos a perceber que algo importante é sacrificado nessa mudança." (16, p.223) Entretanto, não é possível haver mudança e crescimento, seja de uma teoria, de uma ciência ou de um ser, sem a ocorrência de uma crise anterior e o sacrifício de aspectos que até aquele momento pareciam vitais e inegociáveis.

Ao ingressarmos em uma instituição, assistimos debates acirrados entre nossos mestres e somos instados a tomar partido, nos filiarmos a alguma corrente de pensamento teórico. " Assim o candidato corre o risco de cair na armadilha de uma teorização cujo valor parecer-lhe-á estar demonstrado pela importância numérica dos membros da sociedade que o anuncia. Ainda virgem de toda possibilidade de julgamento fundado, ele corre o risco de ser ipso facto metabolizado em "aluno" de uma sociedade cujos interesses será chamado a defender ( ou da qual acreditará ser advogado) , antes mesmo que possa se pronunciar sobre o que está em jogo." (3, p.27)

Sentimo-nos como condenados no mito da Torre de Babel, a falar diferentes idiomas psicanalíticos. Por outro lado, este castigo exige a busca de um possível entendimento e pode conduzir na direção do saber. Tentamos , como seres deste mito, encontrar as palavras que expressem nossos anseios e nos aproxime da compreensão da teoria psicanalítica.

Talvez não seja necessário buscar em autores, como Thomas Kuhn , as estruturas que expliquem os processos que descrevemos acima. O próprio fundador da psicanálise legou várias obras que podem ser usadas na busca das raízes deste funcionamento.

Habita o fundo da alma de cada um e o coração de todos nós, vivências impossíveis de serem resgatadas, lutas eternas entre o ser primitivo que somos e o ser em sociedade que aspiramos nos transformar. Mesmo a psicanálise não consegue atingir locais tão sombrios e profundos, somente podemos ter acesso a eles através de histórias, mitos que por terem sidos contados e recontados carregam um pouco de cada um sem ser alguém em particular.

Freud, em Totem e Tabu e, mais tarde, em Moisés e o Monoteísmo lança a hipótese de ter havido, nos primórdios da humanidade, um chefe da horda primitiva que era o proprietário de todos os bens e de todas as fêmeas, e que foi posteriormente assassinado pelos filhos e erigido como um deus. Durante um longo período, vários deuses foram constituídos mas nenhum com o poder do pai primevo. " Esses deuses masculinos do politeísmo refletem as condições existentes durante a era patriarcal. São numerosos, mutuamente restritivos, e ocasionalmente subordinados a um deus superior."(12)

Freud, ao longo de sua vida, defendeu arduamente a teoria Psicanalítica dos ataques de todo aquele que colocava em dúvida à consistência de suas hipóteses. Porém, com a morte do criador, ocorreu uma disputa entre os seus seguidores para ver quem seria o verdadeiro herdeiro da teoria freudiana. As semelhanças aqui não são meras coincidências.

Como Freud havia assinalado em Totem e Tabu, com o desaparecimento do líder, ocorre um confronto entre seus sucessores, todos dizendo-se portador do seu legado. Somos lacanianos, kleinianos, winnicottianos, etc. Lutamos para defender a idéia de quem é o representante do verdadeiro "dialeto" Psicanalítico. Talvez o próximo passo para podermos nos afastar da religiosidade de nossas posições e nos aproximarmos da ética da ciência, seja a renúncia ao politeísmo dogmático, ao polidogmatismo e nos acercarmos de uma integração teórica, onde as diferentes contribuições Psicanalíticas se transformem no que Piera Aulagnier denominou "teorização flutuante" .(2)

Devemos ter em mente que buscando a compreensão de um fato ou de um fenômeno, muitas vezes falsos caminhos surgem a nossa frente.

A ciência, como outras atividades humanas, não poderia ficar isenta destas conseqüências. Em nossos dias nos deparamos com teorias pseudo científicas, com exigências sociais próprias de uma sociedade marcadamente capitalista, onde a solução imediata e o baixo custo - o tal custo/ benefício - é quase uma imposição social.

Como não nos deixarmos seduzir por promessas de curas rápidas, pílulas que prometem a felicidade eterna, terapias condutivistas, um tratamento do tipo "fast food"?

Em um trabalho póstumo, "Esquema de Psicoanálisis", Freud comentava que:

"Talvez o futuro nos ensine a influir de forma direta, por meio de substâncias químicas específicas, sobre os volumes de energia e suas distribuições dentro do aparelho psíquico. Pode que se abram para a terapia outras insuspeitadas possibilidades; por agora não possuímos nada melhor que a técnica psicanalítica, razão pela qual não deveríamos depreciá-la apesar de suas limitações." (13) (Tradução livre dos autores)

Até o início do século, o desenvolvimento científico dobrava a cada cinqüenta anos, passando a partir da década de 40 a avançar a cada dez anos e no final do século a cada três anos. Vivemos, então, em uma época em que a rapidez com que a tecnologia de um ano para o outro se torna obsoleta, nos leva a questionar se não estamos próximos do futuro apregoado por Freud.

A cada dia a industria farmacêutica divulga uma nova descoberta, tentam nos fazer acreditar que é possível tratar a alma humana com algo colorido. Recentemente uma pílula azul foi propagandeada como a solução para o "medo da castração", não haveria mais impotência entre os homens. Pouco depois se soube que, para poder fazer efeito o homem não poderia ser impotente, mas, neste caso, para que uma pílula? Geralmente, quase todo o avanço tecnológico serve para potencializar alguma capacidade humana, entretanto, não conseguimos superar nossas deficiências emocionais. Desta maneira, repetimos: "não possuímos nada melhor que a técnica psicanalítica, razão pela qual não deveríamos depreciá-la apesar de suas limitações".(13)

Não podemos afirmar ainda que as terapias condutivistas possuam base científica suficientemente sólidas para que possamos abrir mão da técnica psicanalítica e a neurociência e os psicofármacos não se mostraram, apesar de alguns êxitos, mais eficazes na erradicação das doenças emocionais.

Talvez, mais do que nos perdermos debatendo qual o " grande herdeiro", quem realmente contribui para o avanço da teoria psicanalítica, será podermos encarar outras ciências que tentam desvalorizar a psicanálise, ou, em situações mais dramáticas, se apropriar do pensamento psicanalítico para usa-lo como melhor lhes convém.

Não temos a pretensão de querer ou poder definir o que é Psicanálise. Pensamos que em uma época onde os conceitos científicos e a própria ciência são alvos de contestação e desencanto, acreditamos na necessidade de nos apoiarmos em alguns referenciais para defender nossa ciência e nossa formação.

Se a Psicanálise se constitui por uma teoria, uma prática e uma transmissão, caberia aqui então pensar quais são os pontos norteadores de cada um desses alicerces.

Por isto, fomos buscar no fundador da Psicanálise as raízes dialetais desta possível linguagem comum.

O SHIBBOLET

Freud, em vários trabalhos e algumas correspondências, utiliza a palavra "Shibbolet" para designar aquilo que em seu entendimento seriam os princípios norteadores da teoria Psicanalítica. Este termo Freud toma emprestado de seus estudos da Torá. Refere-se ao trecho do Antigo Testamento, livro dos Juízes (12, 5-6), que relata uma luta fratricida entre duas tribos israelitas.

No país de Galaad viviam duas tribos israelitas, uma chefiada por Jefté e outra por Efraim. Estas duas tribos travaram uma guerra por território. Como possuíam uma origem comum tinham dificuldades de distinguir quem era o inimigo. Quando um judeu desconhecido descia das terras de Galaad buscando a margem oposta, os soldados de jefté o prendiam. Seria aquele homem um agressor inimigo que abandonava Galaad ou um aliado fiel que retornava a sua aldeia?

Para apurar a verdade fazia-se pronunciar a palavra shibbolet (espiga). Os partidários de Jefté pronunciavam shibbolet enquanto os partidários de Efraim diziam sibbolet. A primeira sílaba denunciava a diferença.

E tudo ali, no mesmo instante, se decidia. Se o interrogado falseava na pronúncia, era logo degolado." (8)

Uma curiosidade que talvez possa ter sido o desencadeante de tomarmos esta palavra como fio condutor de nosso pensamento, é o fato de que não se encontra este termo na edição brasileira das Obras Completas de Freud. Se fez necessário recorrermos a edição argentina, da Amorrortu, para encontrarmos a palavra tantas vezes citada por Freud.

A primeira referência que Freud faz ao termo encontra-se nas "Contribuições a História da Psicanálise", de 1914, e diz respeito aos sonhos e a sua interpretação. Comentava ele: "Igualmente lamentable y vacío es todo lo que Adler há expresado sobre el sueño, esse shibbólet del psicoanálisis" (8, p.55)

A seguinte é numa carta a Pfister, de 1919, na qual diz que é a sexualidade o "shibbolet" da Psicanálise. (18, p. 187)

A terceira referência é numa nota de 1920, nos três ensaios sobre a teoria da Sexualidade: Diz ele que: "El progreso del trabajo psicoanalitico há destacado com trazos cada vez más nítidos esta importancia del complejo de Edipo; su reconocimiento há pasado a ser el shibbólet que separa a los partidarios del análisis de sus oponentes." (6, p. 206)

Em O Ego e o Id utiliza este termo para dizer que é na distinção psíquica entre consciência e inconsciente que se encontra "Si me estuviera permitido creer que todos los interesados en la psicologia leerán este escrito, esperaría que ya en este punto una parte de los lectores suspendiera la lectura y no quisiera proseguirla, pues aquí está el primer shibbólet del psicoanálisis." (9, p.15).

A última menção se encontra na 29a. das Novas Conferências, em 1933. Freud refere que: "La extrañeza de las aseveraciones que se vio precisada a formular le há conferido el papel de un shibbólet cuya aplicación decidió quien pudo convertirse en partidario del psicoanálisis y quién, definitivamente, no consguió aprehenderlo." (10, p.7)

Desta maneira, Freud vai, pouco a pouco, estabelecendo conceitos fundamentais da Psicanálise. São eles:

O INCONSCIENTE

A REPRESSÃO

SEXUALIDADE

COMPLEXO DE ÉDIPO

O SIGNIFICADO DO SONHO

Não pretendemos definir aqui, de forma mais profunda, cada um destes conceitos, pois isto fugiria do objetivo do nosso trabalho.

EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM COMUM

Retomando o fio condutor que nos guia na busca de uma compreensão possível, como aprendizes desta ciência, que dialeto empregaremos? Como não correr o risco de sermos degolados?

Na presença de múltiplos caminhos a nossa frente, somos atravessados por teorias que as vezes encontram-se instaladas pela força da ideologia ou da ilusão. Apoiados na tentativa de capturar explicações e desvendar enigmas, encontramo-nos envolvidos nos mistérios da Psicanálise. Percebemos que buscar uma visão de mundo explicativa e definitiva (weltanschauung), que poderia nos conduzir a uma esterilização da criatividade, estaríamos assim, repetindo ideologias e não idéias novas e criativas.

Pensamos no esforço que deve ser empreendido para resgatar nossa ciência deste torvelinho que ameaça colocá-la no mesmo patamar de misticismos, falsas promessas e curas milagrosas. Vivendo numa época de respostas rápidas e superficiais, acreditamos ser a Psicanálise a voz que chama o homem a resposta emocional.

Uma crítica constantemente escutada é que ela não preenche ainda os critérios paradigmáticos que a possa definir como ciência. Encontramos no posfácio da obra de Kuhn o comentário que serve como resposta a esta crítica. Fala ele em "matriz disciplinar", disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; matriz porque é composta de elementos ordenados de várias espécies cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada". (O grifo é nosso). ( 16, p. 226)

Por isto, nos preocupamos em determinar os termos que definem para Freud as bases de sua teoria, esta é a nossa "matriz disciplinar".

Entendemos ter sido este um motivo que levou Freud a tirar da bíblia a expressão "shibbólet", também para representar um sinal de reunião, a marca distintiva dos psicanalistas. "...em torno deste símbolo,...ela reunirá sua tribo".(18)

Outra crítica que muitas vezes nos defrontamos é de que a Psicanálise possa ser somente um mito engenhoso sobre a forma de funcionar da mente humana. Em uma carta a Einstein em 1932, Freud escreveu: " Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia... Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?".(11)

A Psicanálise se constitui como uma teoria, uma técnica ou praxis e uma transmissão ou formação e, se iniciamos nossos pontos de vista definindo os conceitos básicos da teoria, caberia então definirmos quais os critérios norteadores da técnica e da transmissão Psicanalítica.

Sabemos que existem alguns procedimentos que são básicos, estruturantes de nossa prática clínica, são os " shibbolet" da técnica.

ASSOCIAÇÃO LIVRE

ATENÇÃO FLUTUANTE

ABSTINÊNCIA

Caberia, agora, estabelecer quais os "shibbolet" da transmissão.

O que levaria alguém a uma formação demorada e dispendiosa, quando encontramos pelos jornais anúncios de Instituições que prometem em cursos de fim de semana o título de psicanalista?

Por que procurar Instituições Psicanalíticas quando assistimos nos últimos anos ao crescimento de inumeráveis formas de terapias psíquicas?

"Tal como a condição de um atleta está baseada no treino e a de um violinista na prática, assim, a condição de um analista depende de um esquema de atividades diárias, semanais, periódicas e anuais, que são calculadas a fim de constituírem um suporte direto e imediato para sua performance analítica. (17, p.133)

Desde o congresso de Hombourg, em 1925, foi definido que a formação psicanalítica se sustentaria em três critérios básicos, seminários clínicos, supervisão ou análise de controle e análise pessoal do candidato, também conhecida por análise didática. Portanto, a transmissão vai abarcar algo mais complexo dentro de um continente a ser definido, cabendo as Instituições a sua aplicação.

A clareza dos critérios formativos, o respeito ao pensamento científico, o amor a ética e a verdade devem ser mantidos em cada Instituto, como balisadores na formação. Estes possuem uma função organizadora e tranquilizadora para nós, candidatos, servindo como continente para nossas angústias e nos encaminhando assim, para a criação de uma identidade profissional.

Sustentada pela idéia de que o analisando nos faz analista, o mestre nos faz candidato, o encontro através da verdade promove a legitimação e o crescimento pessoal de ambos.

Segundo Piera Aulagnier, o candidato ao formular sua demanda faz uma dupla eleição. Elege um analista e um modelo de formação e de sociedade. Um risco é que o modelo de transmissão fique aderido a esta ou aquela teoria, neste caso "...a didática se transforma em doutrinação, a doutrina torna-se dogma e o analista messias." (3)

Se ficarmos aprisionados a modelos doutrinários, teremos que repetir um modelo já antigo e retrógrado que o tempo levou, que está aquém dos supostos básicos que sustentam a prática clínica. Seria uma expressão da imitação mimética que nos torna todos iguais.

Desta maneira, a Psicanálise correria o risco de sucumbir ao que Freud chama de narcisismo das pequenas diferenças.

Lembramos aqui as palavras do Dr Horácio Etchegoyen no último congresso psicanalítico em Barcelona, em1997, quando declarou a necessidade da Psicanálise resgatar autores desgarrados do movimento psicanalítico cujas contribuições científicas não podem mais ser ignoradas.

Quando a renúncia ao instinto der lugar a Instituição, a ideologia poderá ceder lugar a ética. Só então sentaremos para debater a questão do desejo.

A formação analítica em nossos dias deverá então prescindir dos modelos ideológicos que durante muito tempo serviu como objeto totêmico que definia o clã ao qual aquela Instituição pertencia. O psicanalista do próximo milênio deverá buscar o seu saber além dos modelos marcadamente psicanalíticos, evitando o aprisionamento neste ou naquele autor. Deverá ser um sujeito da cultura, buscando em outras expressões humanas a contribuição necessária para evitar a saturação de referenciais psicanalíticos desgastados pelas transformações sociais.

 

* Psicóloga, do Instituto da SBP de PA

** Médico, do Instituto da SBP de PA

*** Psicóloga, do Instituto da SPPA

César Antunes
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Augusta G. Heller
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