O SINTOMA, PARA ALÉM DA SIGNIFICAÇÃO.1

Maria Cristina Ocariz

Vou desenvolver a questão do sintoma a partir das vicissitudes do sofrimento humano e suas relações com a neurose e a repetição doentia, mas também com a neurose e suas relações com a criatividade e a produção.

O sintoma já de início nos coloca no campo da clínica psicanalítica: é aquilo que molesta, incomoda, provoca desprazer e dor, razão pela qual as pessoas consultam os psicanalistas. Para que seja possível a entrada em análise, é necessário que o sujeito tenha razões para ir ao analista: o sintoma é sinal de que algo não está funcionando. Mas o sintoma não é só patológico; não é apenas fonte de sofrimento; pode ser uma saída na saúde que garanta certa ordem no sujeito. Sua constituição é inevitável e necessária para o funcionamento do psiquismo humano . Isto já estava esboçado em Freud - em estado prático, como dizia Althusser - porem pouco desenvolvido teoricamente. Lacan, a partir dos impasses deixados por Freud, chegou a desenvolver esta idéia quase no final de sua vida e de sua obra.

O objetivo do tratamento analítico seria, assim, um trabalho sobre a autonomia com a qual o sujeito possa vir a se relacionar com seus sintomas. Em um artigo de 1912, Sobre os tipos de aquisição da neurose, Freud afirma : "Não existe nenhuma diferença qualitativa entre as condições de saúde e a neurose. As pessoas sadias enfrentam a mesma luta para dominar a libido, porem são apenas melhor sucedidas." Mas atenção... "dominar" a libido: a libido é a carga energética da pulsão.

Conforme Freud afirmou tantas vezes, o ser humano é um ser de conflito. E segundo Lacan, a divisão do sujeito (Spaltung) é condição de sua estrutura. Assim sendo, é inevitável estruturar um sintoma para que se possa vir a ser, existir, viver.

O que diferencia a normalidade da patologia é o modo com que o aparelho psíquico se constitui; como ele consegue, em seu processo de constituição e desenvolvimento, montar uma maquinaria defensiva que lhe possibilite administrar o universo pulsional e desejante, que é complexo.

Neste ponto é importante esclarecer o modo pelo qual utilizo o termo "defesa": o sujeito se constitui em uma operação de defesa. Mas defesa contra que? Neste sentido são diferentes as posições das teorias freudianas e pós-freudianas. De acordo com Freud, o eu teria que se defender de dois grandes inimigos: as idéias (representações) intoleráveis para a consciência moral 2 e as intensidades pulsionais que o eu tem que domesticar (Bandigung).3 Em termos de pensamento lacaniano, Contardo Calligaris afirma : "Qualquer tipo de estruturação do sujeito, seja neurótica ou psicótica, é uma estruturação de defesa, no sentido em que Freud falava de neuropsicose de defesa. Existir como sujeito (barrado pela castração na neurose, e não- barrado na psicose), sair da posição de objeto, obter algum estatuto simbólico, obter alguma significação, exige uma operação de defesa. De defesa contra que? Contra o que seria imaginariamente o seu destino se ele não se defendesse se estruturando como sujeito: seria reduzido a um corpo, objeto de uma demanda imaginária do Outro, se perderia como objeto de gozo do Outro".4

Dito de outra forma, a defesa não é patológica; é fundamental para que o sujeito possa se estruturar. Reiterando mais uma vez a idéia do sintoma como operação de defesa, podemos considerá-lo a partir de duas perspectivas: a partir de sua vertente de mensagem, portador do saber do inconsciente recalcado, e como defesa frente às intensidades pulsionais excessivas, à dimensão do traumático - de acordo com Freud -, ou do gozo - com Lacan. Segundo meu ponto de vista, serão as vicissitudes da constituição do aparelho psíquico e do repertório de mecanismos e recursos defensivos que virão a possibilitar a construção de sintomas mais ou menos saudáveis ou doentios.

Os seres humanos nascem indefesos ( sem defesas), e dependentes do outro. Assim afirmava Freud explicitamente, desde o Projeto de 1895 até o Mal-estar na Civilização. Os percalços do processo de alienação e do processo de separação deste outro (segundo terminologia lacaniana), o descolamento do lugar de objeto no qual nascemos, são fundamentais na determinação das diferentes organizações psíquicas. O que acontece com o recalque primário seria uma outra via de entrada para tentar compreender tais diferenças. Retomarei esta questão mais adiante.

O sintoma como formação do inconsciente

A concepção freudiana de sintoma marca o início da psicanálise e sua ruptura com a clínica psiquiátrica. Em sua propedêutica a medicina trabalha com sinais e sintomas. Os sinais são signos objetivos e mensuráveis, como por exemplo, a febre. O sintoma, por sua vez, implica uma dimensão subjetiva, o paciente que fala ao médico, relata seu padecimento. Esta dimensão subjetiva no entanto é problemática, porque faz surgir o equívoco, o engano, a simulação, a mentira: a psicanálise irá considerar todas estas variáveis.

Para Freud, o sintoma está articulado a uma verdade. E é neste ponto que separa claramente a idéia da histeria como mentira e simulação: acreditou na verdade do sintoma neurótico. Esta crença foi produto de uma descoberta, de um trabalho. E foi através do trabalho clínico que se convenceu de que o sintoma é portador de uma verdade - que o sujeito desconhece. Freud se preocupou com o sofrimento singular dos enfermos. A psicanálise oferece a palavra às histéricas; só isso já tem um efeito terapêutico.5 Se se deixa a histérica falar, seus sintomas tendem a desaparecer, abandonam o corpo, não mais necessitando de uma maneira tão espetacular para serem escutados. Na medida em que o analista reconhece no sintoma histérico a dimensão significante, ele pode se expressar na relação com o médico falando. O sintoma passa do corpo a uma demanda dirigida ao analista.

O dispositivo analítico, fundado na regra fundamental, permite deslocar os sintomas para a transferência: toda a produção nova da doença se concentra na relação imaginária com o analista, onde se repetem as modalidades pulsionais, desejantes e de vínculo intersubjetivo mais genuínas e primárias do analisando. Esta neurose de transferência que se cria e recria durante o tratamento analítico é a doença atualizada, colocada em ato no encontro analítico. O sintoma adquire assim, um novo significado, transferencial. Segundo terminologia lacaniana os sintomas neuróticos se transformam em sintoma analítico - dirigido ao analista, do qual ele é complemento.

Tudo isto vai gerar uma clínica totalmente nova em alguns pontos: o eixo aqui é o próprio sujeito. O sintoma é aquele que o sujeito reconhece como tal; a doença é aquela que o sujeito relata, não a que o médico diz padecer. É necessário que o paciente deseje fazer algum tipo de transformação em si mesmo (não simplesmente "nos outros") para que o tratamento psicanalítico possa acontecer: o desejo é fundamental. É indispensável que uma parte do sujeito deseje parar de sofrer com seus sintomas; mas que saiba que é um trabalho que vai exigir de sua parte uma posição ativa, um compromisso, uma responsabilidade com seus atos. Este é um dos princípios éticos da psicanálise.6 Para a psicanálise , o sintoma é um fenômeno subjetivo que se constitui não como sinal de uma doença, mas como expressão de um conflito inconsciente: é uma formação do inconsciente, assim como o sonho e o ato falho, que expressam um sentido mascarado. O sintoma não é contingente; possui um motivo, e um propósito desconhecidos pela pessoa que o porta.7 Com o termo "sentido" Freud se refere ao fato de que não ocorrem por acaso, que têm uma causa, são determinados, têm sua raiz na história do sujeito, e uma direção. O sonho da pessoas normais é um sintoma; é uma realização deformada de desejos infantis, censurados pela consciência moral do sujeito; um sintoma operativo, útil, que possibilita que o sujeito não acorde angustiado com suas fantasias proibidas - o sonho é o guardião do sono.

Esta concepção corresponde aos desenvolvimentos metapsicológicos da Primeira Tópica e da Primeira Teoria das Pulsões. Freud trabalhou com essa concepção desde 1894.8 A partir da fala dos pacientes, do relato de suas fantasias, o psicanalista descobre que existem desejos que são intoleráveis para a consciência do sujeito. Esses desejos são desejos de natureza sexual, incestuosa, que entram em conflito com o eu e a consciência moral das pessoas. O sujeito procura modos de se defender dessas pulsões, desejos, idéias; procura desalojá-las de sua consciência. Esse mecanismo foi chamado por Freud repressão ou recalque.9 Através dele os neuróticos se defendem, tentam se desfazer dessas idéias intoleráveis. As representações são recalcadas tornam-se inconscientes, mas no entanto continuam produzindo efeitos.

Sendo assim, podemos ter acesso ao inconsciente a partir de seus efeitos. O sintoma é um produto do recalque, é um retorno do recalcado. Por esta razão Freud afirmou que o sintoma é uma satisfação de desejo, uma forma substitutiva de satisfação do desejo sexual infantil recalcado. Mas que está também a serviço da defesa; é uma formação de compromisso que amalgama na sua rede a defesa (o agente do recalque) e o recalcado.10 Utiliza-se dos mesmos mecanismos de qualquer formação do inconsciente: condensação, deslocamento e figurabilidade. "Como o sonho, o sintoma figura algo como cumprido: uma satisfação ao modo infantil, mas por meio da condensação esta satisfação pode se comprimir em uma sensação ou inervação únicas; e por meio de um extremo deslocamento pode se circunscrever a um pequeno detalhe de todo o complexo libidinoso".11 No entanto para a clínica, embora a estrutura seja a mesma, é fundamental a diferença. Uma análise só é possível a partir do sintoma e não a partir de um lapsus ou de um sonho, muito embora os sonhos e os atos falhos sejam analisáveis. Os pacientes consultam os psicanalistas quando se produz algum tipo de quebra da harmonia, da homeostase, do ponto de equilíbrio de sua vida, uma ruptura que produz sofrimento. A procura seria um pedido ao analista a fazer algo com este sofrimento.

Esta é uma das vertentes: o sintoma como mensagem cifrada, um hieróglifo, que pode ser interpretado. Um retorno do recalcado, mais ou menos travestido e disfarçado, a ser decifrado. Trata-se aqui do que é recalcado secundariamente, que corresponde ao inconsciente freudiano da Primeira Tópica.

Desta perspectiva, nos deparamos com um primeiro limite para as possibilidades de significação dos sintomas : o recalque primário. É um mecanismo fundante do sujeito. A repressão primária nunca poderá ser levantada, nunca poderá ser suprimida. Isto supõe um sujeito que tem em si uma informação, um saber que desconhece e sempre desconhecerá. Ora, como participam esses acontecimentos, essas vivências, essas experiências, na formação dos sintomas neuróticos ?12 O recalque primário não é uma contingência da biografia, mas sim o que funda o aparelho psíquico. A conseqüência fundamental deste tipo de fundação é a não existência de uma autoconsciência completa, de um completo saber sobre si mesmo – não existe unificação possível do sujeito. Este universo de saber particular que é o inconsciente, nunca poderá ser recuperado em sua totalidade. E no entanto, esta é uma das tentativas e funções dos sintomas. Como afirma Lacan : "A repressão ou recalque primário leva a um ponto de carência na cadeia associativa, recupera o umbigo do sonho, o que não pode ser dito, e marca um limite à rememoração".13, 14

O sintoma como satisfação pulsional

Uma caraterística que diferencia sonho e sintoma é a persistência. O lapsus, o chiste, o sonho são fugazes, instantâneos. O sintoma, por sua vez, não é instantâneo; tem certa inércia, certa durabilidade. É muito difícil desfazer um sintoma. Isto indica que é algo mais que uma formação do inconsciente. Esta inércia provém da pulsão, desta exigência que o alimenta de forma constante. É este o circuito pulsional: a vertente da satisfação, da fixação libidinal, da escolha narcísica do objeto e a modalidade narcisista de satisfação pulsional. Diz Freud: "É raríssimo que a frustração seja tão onimoda e absoluta. Para que possa produzir efeitos patogênicos ela tem que recair sobre a forma de satisfação que a pessoa quer com exclusividade, a única de que é capaz. Em geral existem muitas maneiras de suportar a privação da satisfação libidinal sem por isso adoecer. Existem pessoas capazes de aceitar a privação, sem se deteriorar; é verdade que não são felizes, padecem de nostalgias, mas não adoecem".15 Desde muito cedo Freud afirmava que os sintomas constituíam uma satisfação sexual substitutiva. "Os sintomas são a prática sexual dos enfermos".16

A questão da satisfação no sintoma é fundamental na clínica psicanalítica. É a vertente que se relaciona com a existência de uma sexualidade infantil, com o caráter perverso da sexualidade , e com a característica traumática própria do processo de constituição subjetiva e do processo de sexuação . A sexuação humana é complexa : o corpo se erogeniza com a mãe (quer dizer em lugar paradoxal, e portanto traumático, pois a posteriori esse primeiro objeto de amor vai ser interditado pela ordem cultural), os enigmas da sexualidade, da diferença dos sexos , o não saber sobre o outro sexo. Eis a questão do sintoma em relação a castração: o muito cedo, ou o muito tarde da sexuação humana.

Algo se satisfaz no próprio sintoma. Essa foi outra grande descoberta de Freud. O sintoma não é uma metáfora de satisfação. Como herdeiro do conflito primitivo com a natureza sexual do montante de afeto, o sintoma se apresenta como formação substitutiva da satisfação que falta. O montante de afeto tem a ver com o quantum pulsional.

O que Freud descobre essencialmente nos sintomas - sejam eles patológicos ou aqueles que se apresentam na vida normal (atos falhos, chistes, sonhos) - é sempre um desejo.17 No sintoma patológico, porém, existe algo mais complicado : é uma tentativa de satisfação pulsional que insiste e se repete, produzindo sofrimento. Mas também produz algo que se assemelha a uma satisfação. A isto Freud chamou de adesividade, viscosidade, inércia da libido. Lacan lhe deu o nome de gozo.

Diz Freud : "A modalidade de satisfação do sintoma é estranha. Reconhecer este modo de satisfação libidinal, não é fácil para o paciente. Ele sente apenas sofrimento e dele se queixa; não reconhece nenhuma satisfação, porque o sujeito desta satisfação nada sabe".18

O sintoma repete, de algum modo, a modalidade de satisfação pulsional constituída na infância, não aceita a posteriori pela consciência moral devido a seu caráter de satisfação perversa. Acaba por ser desfigurada pela censura que nasce do conflito entre essa modalidade de satisfação pulsional e o eu e supereu, e por via de regra é acompanhada por uma sensação de sofrimento, mesclada a elementos provenientes da circunstância que levou a adquirir a doença .19 No entanto esta satisfação é de caráter problemático. Trata-se de uma satisfação paradoxal, que produz sofrimento. Em quase todas as análises estas dificuldades aparecem; pois, devido a função de satisfação paradoxal que os sintomas cumprem no psiquismo humano, eles podem ficar ancorados, de maneira anacrônica, à subjetividade, que por sua vez deles necessita para que possa continuar estruturada. Assim, a questão da satisfação pulsional vai além do sentido dos sintomas, de sua significação. Ela diz respeito à pulsão e à sexualidade. Existe uma satisfação no padecer que não se esgota no deciframento.

O sintoma para além do princípio do prazer

Nos primórdios de sua clínica, Freud julgava que decodificando o sentido dos sintomas, estes poderiam se dissolver. Pouco a pouco foi percebendo que a decifração dos significados não era suficiente. Na neurose de transferência, o sujeito repetia situações sintomáticas que o faziam padecer. Por que o sujeito em análise repete na transferência as situações dolorosas da vida? O que impede que possa elaborar, parar de repetir? 20 O que faz com que a neurose de transferência, a relação com o analista, se transforme em sintoma ?

Foram estas inquietações da clínica que levaram Freud a produzir as grandes mudanças em sua teoria. Cria a Segunda Tópica e produz uma modificação na sua Teoria das Pulsões. O ponto de vista econômico adquire uma grande força, a fim de dar conta de alguns enigmas metapsicológicos e alguns impasses da clínica. É neste ponto que a idéia de trauma reaparece com grande força, mas com diferenças em relação a que fora formulada em 1890: "As neuroses traumáticas apresentam claros indícios de que têm em sua base uma fixação ao momento do acidente traumático. Este tipo de neurose nos aponta o caminho em direção a uma consideração econômica dos processos anímicos. A expressão traumática não teria outro sentido que este, o econômico. Podemos reeditá-la a uma vivência que, em um breve lapso, provoca um excesso na intensidade de estímulo na vida anímica, que sua tramitação ou extinção (Aufarbeitung) pelas vias habituais e normais fracassa, resultando, inevitavelmente em transtornos duradouros para a economia energética. A neurose seria uma enfermidade traumática e nasceria da incapacidade de tramitar uma vivência tingida por um afeto hiperintenso".21 Freud considera traumático o que não pode ser simbolizado, o que de alguma maneira não pode ser ligado, esse excedente de quantidade, que não é processado numa cadeia significante que lhe permita encontrar certo sentido. Esse excesso, essa intensidade é um sem sentido, que produz desprazer, angustia, dores no corpo e na alma. Quando encontramos o sentido de algo nos apaziguamos. Mas que acontece quando esse sentido é impossível de ser atingido ou construído?

No capítulo 3 de Mais Além do Principio do Prazer, Freud diz : " Considerando as observações relativas à conduta durante a transferência e ao destino fatal dos seres humanos, nos atreveremos a supor que na vida anímica existe realmente uma compulsão a repetição que se instaura mais além do princípio do prazer... Os fenômenos da transferência estão a serviço das resistências do eu; o eu está obstinado na repressão; a compulsão a repetição é convocada pelo eu, que quer se aferrar ao princípio do prazer". O capítulo finaliza : "...a compulsão à repetição é mais originária, mais elementar, mais pulsional que o princípio do prazer..."

As pulsões mais primárias, primitivas não se inscrevem como representações no aparelho psíquico. Lembremos do recalque primário. Existem pulsões sem representação; existe um quantum pulsional que tem outro tipo de inscrição, fundamentalmente no corpo. Este pulsional não representado emerge na formação de sintomas como um resto que não se articula à palavra, e portanto não pode se ligar a um sentido. Em termos lacanianos, este resto não teria sentido; apareceria o sem-sentido do sintoma. Nestes sintomas a técnica psicanalítica da interpretação enquanto decifradora fracassa. Podemos construir várias hipóteses de sentidos possíveis que o sintoma estaria exprimindo, mas o sintoma não se dissolve, persiste. Existe um núcleo de gozo não elaborável no sintoma.

Existe uma resistência do sintoma. Em Inibição, Sintoma e Angustia, Freud assinala que existem cinco formas de resistência. As resistências do eu, que são três: a) a resistência própria, em termos da economia freudiana, carga-contracarga, catexis-contracatexis do recalque; b) a resistência da transferência; c) o ganho primário e secundário da doença.

Introduz ainda um outro tipo de resistência: a resistência do isso ou do inconsciente. Esta é por excelência a resistência vinculada à compulsão a repetição. Nos primórdios da conceitualização freudiana, quando tudo se identificava ao funcionamento do processo primário, segundo o princípio do prazer, a resistência do isso não era considerada.

A quinta resistência, nova também, está em estreita relação com a anterior: é a resistência do supereu, e tem a ver com o sentimento inconsciente de culpa e a necessidade de castigo, que funda, especificamente, a reação terapêutica negativa.

Todos estes temas são desenvolvidos em vários textos: O eu e o isso (1923) O problema econômico do masoquismo (1924), O Mal-estar na Civilização (1930), entre outros. No final do capítulo 5 de Mais Além do Princípio do Prazer , Freud diz : A pulsão recalcada nunca cessa de aspirar a sua satisfação plena, que consistiria em uma repetição de uma experiência primária de satisfação. Todas as formações substitutivas e reativas, e todas as sublimações são insuficientes para cancelar sua tensão persistente, e a diferença entre o prazer de satisfação encontrado e o pretendido, engendra o fator pulsionante, que não admite se apegar a nenhuma situação estabelecida, a não ser como nas palavras do poeta: "Pressiona sempre para frente, indomado".22 A satisfação pulsional tem uma dupla impossibilidade: a de alcançar a satisfação e a de deixar de buscá-la.

Freud vai enfatizar a relação entre sofrimento, sintoma e masoquismo primário. E este é o ponto do qual vai partir Lacan a fim de desenvolver a questão do gozo.

Em Análise Terminável e Interminável (1937), Freud irá considerar os limites da terapia analítica, estudar os obstáculos que se apresentam na clínica, qual o lugar do analista, e alguns princípios éticos da condução de uma cura. Irá analisar a fixação ao sintoma considerando a intensidade pulsional (o poder do fator quantitativo na causação e na persistência da enfermidade), as alterações do eu, a resistência do isso (as duas pulsões), e a função da resistência na transferência.

Freud fala das servidões do eu e do alto preço que paga por suas limitações. O caminho analítico se dirige, para Freud, no sentido de colocar a libido a disposição do eu, de tornar possível que o sintoma perca gozo e a satisfação transite por outros lugares. Uma das conclusões de Freud, em "O mal-estar na civilização": "Assim, de nenhum modo tem se renunciado o propósito da satisfação, não obstante se consegue certa proteção do sofrimento , pelo fato que a insatisfação das pulsões domesticadas pelo eu, não será tão dolorosa como a das não inibidas. Em troco de isso é inegável que acontece uma redução das possibilidades de gozo".23

A concepção lacaniana do sintoma como gozo

Lacan chama de gozo o que é intolerável ao organismo, quer por falta ou por excesso de estimulação. O gozo é sentido como um sofrimento intolerável. Paradoxalmente, esta é uma das maneiras pelas quais a pulsão se satisfaz.

O gozo é real, algo que está fora da simbolização. O real para Lacan é "o que não cessa de não se inscrever". A direção é constante e volta sempre ao mesmo lugar para provocar sofrimento.

Lacan faz uma relação da compulsão à repetição dos seres humanos com o gozo - este masoquismo que tem satisfação no sofrimento. Masoquismo primordial é o nome mais freudiano do gozo em Lacan. Ele abordou este problema conceitualmente de diversas maneiras. Por exemplo, a afirmação "o inconsciente está estruturado como uma linguagem" é um postulado que data da época em que Lacan trabalhava o sintoma como uma formação do inconsciente. Com os avanços de sua clínica e de suas teorizações, descobre que o campo da psicanálise não estaria ocupado apenas pela linguagem. O real, alheio ao sentido e à significação, teria um papel central na formação de sintomas.

A sexualidade humana é traumática. O traumático é um excesso de quantidade que não encontra representação, que não encontra significação, que não pode se enlaçar com a cadeia significante, que insiste em ser simbolizado, ser elaborado, ligado de alguma forma. Neste sentido, a sexualidade é traumática pois chega a um ponto em que não há significante que lhe dê conta. Segundo a terminologia lacaniana, existe um hiato entre o corpo e a linguagem - existe um gozo impossível enquanto seres falantes. Isto é o que quer dizer Lacan ao afirmar : "não há relação sexual", "não existe saber sobre o outro sexo".

O sintoma é uma primeira maneira que o sujeito tem de interpretar, de responder a um encontro com o real - diria Lacan - que o leva, a confrontar-se com o sem sentido, com esse ponto onde as palavras não chegam, onde as palavras não alcançam. Toda a temática do gozo se apoia nos obstáculos que a própria teoria freudiana colocava para Freud . Lacan vai diferenciar prazer de gozo . Reservará o termo prazer para algo mais ligado à homeostase; e o gozo para algo ligado ao mais além do prazer, ao que escapa a simbolização.

Com a idéia do encontro fracassado, daquilo que volta sempre ao mesmo lugar, Lacan formaliza, teoriza um conceito que em Freud se manteve a um nível econômico geral e que muitas vezes remeteu a fatores constitucionais: a adesividade, viscosidade da libido e a inércia psíquica. A lógica do real do gozo irá substituir a energética freudiana. Tudo o que for relacionado com o além do princípio do prazer, estará centrado no problema do gozo e no problema do real, como aquilo que resiste ao simbólico.

No Seminário X, Lacan afirma que o que a satisfação da pulsão tem de problemática para o sujeito, o trabalho que o sujeito faz para obtê-la, justifica nossa intervenção como analistas; isto é, algo da ordem da satisfação deve ser retificado a nível da pulsão.

Em Lacan o tema do gozo está relacionado não com o desejo, mas sim com a pulsão, com o que excede a simbolização, com o objeto a. A pulsão nunca cessa de aspirar... propõe um movimento que não fecha nunca, movimento que implica a tentativa de repetir, de alcançar uma primeira experiência de satisfação. A própria essência desse movimento é que não alcance seu fim, ou que o alcance só pela metade. Satisfação nunca alcançada, nunca renunciada....

Comentários finais

A psicanálise não é uma clínica centrada no sintoma; não visa a sua supressão. Mas é expectativa do psicanalista atingir o sintoma mediante a interpretação ou algum outro tipo de intervenção, a fim de transformá-lo, levantá-lo, deslocá-lo, torná-lo mais suportável. Muitas vezes, o trabalho é árduo, pois para o paciente é difícil, e mesmo perigoso abandonar seu companheiro, o sintoma, pois teria que construir uma nova economia libidinal 24, renunciando os ganhos de sua condição de doente. A meu ver, a proposta do tratamento psicanalítico seria a de construir uma nova homeostase, um novo equilíbrio pulsional, um novo sintoma mais produtivo e que produza menos sofrimento. O ideal terapêutico da psicanálise é que o sujeito possa fazer algo de produtivo e criativo com seu sintoma.

Se, como vimos, o sintoma é uma satisfação substitutiva de uma satisfação impossível, isto cria a possibilidade de abrir caminho para novas substituições não cristalizadas na inércia de um gozo repetitivo e compulsivo, um caminho desejante de criação sintomática e o abandono de sintomas cristalizados improdutivos.

Neste ponto abre-se uma interessante possibilidade de investigação, que é a relação entre dois destinos da pulsão: o recalque e a sublimação. O destino da pulsão é a maneira pela qual a pulsão organiza o fracasso da satisfação. (Ter um talento, ter um sintoma).

O único critério de saúde que Freud enuncia é a capacidade de ter prazer e de produzir: "O neurótico é incapaz de gozar e de produzir". Ele gasta uma quantidade exagerada de energia psíquica a fim de sustentar seus sintomas. Esta perturbação está relacionada com as defesas inadequadas utilizadas para lidar com os conflitos, com a estruturação de sintomas neuróticos ineficazes que consomem uma quantidade exagerada de energia psíquica, desviada das atividades produtivas, que levam ao prazer. A partir de Lacan o gozo se diferenciou do prazer. Segundo ele, não se trata de que o gozo desapareça; isso seria a morte. Existem, porém, diferentes modalidades de gozo. Trata-se de conseguir um circuito diferente, um reordenamento da engrenagem pulsional, a procura de uma nova derivação. É diferente um gozo sem limites de um gozo limitado, barrado, que circula por caminhos diferentes. A repetição nunca cessa. No final de uma análise o sujeito estará colocado em relação à repetição de um modo diferente.

Todas estas questões que muito sucintamente desenvolvi, tem a ver com o que esperamos de um processo psicanalítico nos dias de hoje.

Concluo minha intervenção com umas palavras de Freud, pronunciadas em 1900, que inspiraram toda minha fala, assim como me acompanham em meus encontros cotidianos com meus analisantes :

"E. concluiu, por fim, sua carreira como meu paciente com um convite para jantar em minha casa. Seu enigma está quase totalmente resolvido; sente-se perfeitamente bem e seu modo de ser tem mudado por completo; dos sintomas subsiste ainda um resto.

Começo a compreender que o caráter em aparência interminável da cura é algo de acordo com a lei e depende da transferência. Espero que esse resto não prejudique o êxito prático. Estava em minhas mãos - continuar a cura, mas vislumbrei que esse é um compromisso entre saúde e doença, compromisso que os próprios enfermos desejam, e por isso mesmo o médico não deve entrar nele. A conclusão assintótica da cura decepciona aos profanos; a mim resulta, em essência, indiferente.

Em todo caso manterei um olho atento sobre este homem...."

Carta 133 a Wilhelm Fliess - 16 de abril de 1900.25

 NOTAS

(1) Conferência pronunciada no Ciclo de Debates do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no dia 29 de abril de 1999.

(2) Freud, S. As Neuropsicoses de Defesa(1894). In: Sigmund Freud. Obras Completas. Amorrortou Editores, Buenos Aires, 1985, (doravante abreviada AE), v. 2.

(3) Freud, S. Análise Terminável e Interminável(1938) . In AE, v. 23, p.227.

Em português : dominar, amansar, domar. Colocar algo selvagem sob certo controle.

(4) Calligaris, C. Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses - Porto Alegre,Artes Médicas, 1989.

(5) Freud, S. Tratamento psíquico (tratamento da alma) (1890). In AE, v. 1.

(6) Calligaris,Contardo. Introdução a uma clínica psicanalítica –Salvador, Cooperativa Cultural Jacques Lacan,1986.

(7) Freud, S. Conferências de Introdução à Psicanálise -Conferência 17 - In AE, v. 16, p. 235.

(8) Freud, S. As neuropsicoses de defesa (1894). In AE , v. 3, p. 49

(9) Neste trabalho utilizarei indistintamente os termos "repressão" ou "recalque" para traduzir o termo alemão "Verdrangung", utilizado por Freud.

(10) Freud, S. Conferência 19. In AE , v. 16, p. 275

(11) Freud, S. Conferência 23. In AE, v. 16, p.334.

(12) Freud em Inibição,Sintoma e Angustia, vai trabalhar o sintoma considerando o desamparo primordial do ser humano e a angustia da criança que se separa da mãe e que nesse processo está se fundando como sujeito. O sujeito se funda se discriminando do objeto, o qual é um processo angustiante. In AE, v. 20.

(13) Lacan, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Buenos Aires, Paidós. Pag.62-63.

(14) Freud diz no artigo sobre "O recalque" de 1914 : " O recalque primário é a primeira fase do recalque. A representação da pulsão não acede a consciência. Se produz fixação. O traço permanece inalterável e a pulsão ligada a ele". Fixação (Nieder schrift) quer dizer neste caso inscrição de traços em séries de sistemas mnêmicos, marcas que podem se traduzir de um sistema a outro. In AE, v.14.

(15) Freud, S. Conferência 22. In AE, v. 16, p.314.

( 16) Freud,S. Três Ensaios sobre a sexualidade. In AE, v. 7, p.148. Epílogo do Caso Dora. v.7, p.100).

(17) Em termos lacanianos, o conceito de desejo sofre alterações com respeito ao Wunsch freudiano : o desejo tem a ver com o Outro; é a margem que separa , devido a linguagem, o sujeito de um objeto supostamente perdido. Esse objeto é a causa do desejo e é o suporte do fantasma do sujeito.

(18) Freud,S. Conferência 23. In AE, v. 16, p.333.

(19) Em Inibição, Sintoma e Angustia (1926), Freud diz que o sintoma é "indício (signo) e substituto de uma satisfação pulsional interceptada como resultado do processo repressivo... A repressão parte do eu que, eventualmente por encargo do supereu, não quer acatar, obedecer, um investimento pulsional ativado no isso" . In AE,v.20,p.87.

(20) Freud, S. Além do principio do prazer (1920). In AE ,v. 18, Capítulo 3, p.19

(21) Freud,S. In AE, Conferência 19, v.16 , p. 251.

(22) "Üngebandigt immer vorvarts dringt"- Mefistófeles em Fausto, parte I, Cena 4.

(23) Freud, S. O mal-estar na civilização (1929). In AE, v. 21.

(24) Freud, S. Inibição, Sintoma e Angustia (1925). In AE : v.20, p.95.

(25) Freud, Sigmund. Fragmentos da correspondência com Fliess - In: Sigmund Freud. Obras Completas. Amorrortou Editores , v. 1.

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BIBLIOGRAFIA GERAL

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LACAN, Jacques. - Escritos 1 e 2 – México, Editorial Siglo XXI, 1976.

LACAN, J. - Seminário 11. Los cuatro conceptos fundamentales del Psicoanálisis (1964)- España, Barral Editores, 1977.

- Seminário 20. Aún (1972-73) – Barcelona, Editorial Paidós, 1981.

- Seminário 22 . RSI (1974-75) . Versão inédita.

- Conferência em Ginebra sobre el Sintoma. In : Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires, Manantial, 1988.

-La Tercera. Congreso de 1974 em Roma. In : Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires, Manantial, 1988.

-Psicoanálisis. Radiofonia e Televisión (1970)- Barcelona, Editorial Anagrama, 1977.

Outros autores :

BRAUNSTEIN, Néstor A. Goce. Siglo XXI Editores, 1990.

CALLIGARIS, Contardo - A hipótese sobre o Fantasma – Porto Alegre, Artes Médicas, 1988

CALLIGARIS,C. - Perversão, um laço social ? Introdução uma Clinica Psicanalítica. Salvador, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, 1986.

CALLIGARIS, C. -Sobre uma Clinica Diferencial da Psicoses. Porto Alegre, Artes Médicas,1989.

CHEMAMA, Roland (Org.) – Dicionário de Psicanálise, Porto Alegre, Artes Medicas, 1995.

FOUCAULT, Michel – O nascimento da Clínica – Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1977.

LAZNIK, Marie Christine – A construção do conceito de gozo em Lacan. Percurso Revista de Psicanálise, No.8 e No.9. São Paulo, 1992.

SIMPOSIO DO CAMPO FREUDIANO – Lo Real y la Enseñanza de Lacan . Buenos Aires, 1988.

SOLER, Colette – Finales de Análisis . Buenos Aires, Manantial, 1988.

SOLER, Colette - Variáveis do fim da análise – Campinas, Papirus, 1988.


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