O SINTOMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA DO ANO 2000

Maria Cristina Ocariz

 

Qual é o estado geral da Psicanálise em 1999, cem anos após seu nascimento ?

Qual é a prática clínica que podemos os psicanalistas desenvolver hoje? Qual é o estado dos desenvolvimentos metapsicológicos ?

Quais foram – se existiram - as mudanças estruturais na subjetividade dos humanos neste século e como a psicanálise acompanhou em seus desenvolvimentos teóricos as vicissitudes e singularidades da dor, angustia e sofrimento das pessoas que nos consultam ?

O conceito psicanalítico de sintoma

Vou fazer alguns desenvolvimentos sobre estas questões a partir do conceito psicanalítico de sintoma, que nos leva diretamente a nossa clínica cotidiana .

A Psicanálise, desde seus inícios, se configurou com uma clínica não centrada no sintoma; o trabalho analítico não visa a supressão de sintomas. Mas o conceito de sintoma e seu lugar no processo analítico foi sofrendo algumas modificações no percurso deste século. A Psicanálise surge, no final do século XIX, de um movimento de Sigmund Freud que rompe com o discurso da Neurologia de sua época no tratamento da histeria. A concepção freudiana de sintoma marca o início da Psicanálise.

Freud investigava o que fazer e como fazer para modificar o padecimento histérico e descobre que é a partir da palavra, da interpretação que se pode aliviar o sofrimento do sintoma. Freud se preocupa com o sofrimento singular dos enfermos. A Psicanálise oferece a palavra ás histéricas; só isso já tem um efeito terapêutico. Se se deixa a histérica falar, os sintomas tendem a desaparecer, abandonam o corpo, não necessitam mais de uma maneira tão espetacular para serem escutados. Na medida em que o analista reconhece no sintoma histérico a dimensão significante, ele se expressa na relação com o médico falando. O sintoma passa do corpo a uma demanda dirigida ao analista.

Com que concepção de sintoma trabalhamos hoje , 105 anos depois das Observações sobre as Neuropsicoses de Defesa (1894) ?

Em Freud, o sintoma surgiu como uma formação do inconsciente, como um retorno do recalcado na forma de uma mensagem, que tem um sentido, que pode ser decifrado. Mas, a partir de sua clínica constatou que a produção de sentido não é suficiente para trabalhar o sintoma. Em Inibição, Sintoma e Angustia (1926) o sintoma aparece como uma modalidade de satisfação pulsional. A partir dos fenômenos da reação terapêutica negativa e da compulsão a repetição, ligada a pulsão de morte e ao masoquismo primário, especulou sobre aquilo que se satisfaz, de uma maneira fechada, no sintoma. Falou de ganho primário e secundário do sintoma.

Existem dois momentos de conceptualização do sintoma na obra freudiana : (a) o sintoma relacionado com o saber inconsciente e (b) o sintoma como satisfação pulsional, a vertente da fixação libidinal relacionada com a sexualidade infantil perversa polimorfa. Para Freud o sintoma só é patológico quando o sujeito insiste compulsivamente em um tipo de modalidade de satisfação que exige exclusividade no objeto e na fixação libidinal.

Desde o ponto de vista lacaniano, os sintomas são sempre criados para retirar o eu de uma situação de perigo. Não é mais a libido recalcada que vai determinar o sintoma. O perigo é relacionado à instancia do real. O acento é colocado sobre a falta ou o impossível da satisfação absoluta (que é o último significante da castração). A castração freudiana designa esse gozo impossível que o sintoma assinala ao fingir substituí-lo.

Curiosamente, Lacan em seu percurso repete o de Freud : nos começos de sua obra o sintoma é abordado como uma mensagem (Função e Campo da Palavra e da Linguagem, 1953); a partir de seu seminário R.S.I. (1974) situa o sintoma como uma maneira de gozar.

A sexualidade infantil na formação dos sintomas

Freud postulou a etiologia sexual da histeria. Depois de uma breve passagem pela teoria das neuroses atuais determinadas por perturbações na vida sexual dos neuróticos (abstinência, coitus interruptus, masturbação), começou a elaborar seu postulado sobre a existência de uma sexualidade infantil, com caracteres de perversão polimorfa.

A afirmação de que a pulsão sexual humana não tem um objeto naturalmente determinado é a grande revolução inovadora da Psicanálise. O que torna a sexualidade humana complexa e complicada é o saber sobre o objeto. A relação que une o sujeito a seus objetos sexuais é lábil; o objeto é o que mais pode variar; e o fim buscado pode ser outro e distinto do coito considerado normal.

A realidade do inconsciente é sexual e essa sexualidade recalcada está na etiologia das neuroses. Estas afirmações levantam uma série de questões : por que o reprimido tem que ser reprimido; por que a sexualidade pode se tornar intolerável e produzir efeitos patôgenos; o que determina a escolha de objeto e as condições e modalidades do gozo .

O desenvolvimento do corpo pulsional , cada experiência vivida no nível das diferentes zonas erógenas (boca, anus,pele, olhos ) na infância tem o valor de um trauma. A sexualidade infantil sempre nasce mal, por ser exorbitante, extremada, inevitavelmente prematura, e encontrar o sujeito despreparado para administrar a tensão que aflora em seu corpo. Essa tensão libidinal é intensa demais para uma criança nascida sem defesas próprias e, por entanto, totalmente dependente do outro como semelhante e do Outro na sua dimensão simbólica.

Fonte dos sintomas futuros, a sexualidade infantil é traumática e patogênica, por ser excessiva e trasbordante. O desejo infantil acredita na possibilidade de uma realização absoluta de suas demandas.

Lacan vai chamar gozo do Outro a essa suposição da satisfação absoluta do desejo. O desejo não será jamais satisfeito; no entanto estamos imersos num mundo onde tudo significa algo e mil coisas mais, jamais poderemos chegar a satisfação plena do desejo. Se realizamos um desejo, o caminho para satisfação se voltará a abrir. O gozo é o ponto de máxima tensão, o ponto máximo em que o corpo é colocado em situação de prova. O gozo é insuportável para o sujeito porque o gozo coloca em perigo a integridade de seu ser. O prazer é a diminuição da tensão, aquilo que atenua a tensão e que põe barreira ao gozo.

A questão psicanalitica do sujeito frente a seu gozo é diferente na atualidade que nas épocas do nascimento da Psicanálise. É uma questão crucial neste final de século. A sexuação humana é traumática, cheia de dificuldades e armadilhas. O ser humano vive a vida toda procurando soluções. Os sintomas são essas tentativas de solução. O ideal terapêutico da psicanálise é que o sujeito possa fazer algo produtivo e criativo com seu sintoma. Se o sintoma é uma satisfação substitutiva de uma satisfação impossível, isto cria a possibilidade de abrir caminho para novas substituições não cristalizadas na inércia de um gozo repetitivo e compulsivo, um caminho desejante de criação sintomática e abandono de sintomas cristalizados, improdutivos. Não se trata de que o gozo do sintoma desapareça, isso seria a morte. Mas existem diferentes modalidades de gozo. A repetição nunca cessa. No final de uma análise o sujeito estará colocado em relação à repetição de um modo diferente.

Função mãe – Função pai - na formação de sintomas

O sintoma é para a psicanálise uma interseção entre a palavra e o gozo do corpo. O analista se ocupa do corpo. O sujeito do inconsciente é um sujeito indissoluvelmente ligado a um corpo : é um sujeito que desfruta e que padece de um corpo. O importante para uma análise é o sintoma, o padecimento do corpo, e o desejo que se joga nesse gozo do sintoma, em relação ao corpo.

O corpo erógeno humano é um corpo resultado de uma experiência de vida, de um aprendizado num lugar muito singular : como corpo erógeno se originou no contato com o corpo da mãe. Falar de complexo de Edipo na teoria psicanalítica, hoje, significa nos referirmos as relações mais precoces da criança com o objeto primordial, a mãe, o objeto dos primeiros cuidados maternais.

A teoria do desenvolvimento da libido é a história da sexualização do corpo em um mal lugar. A criança aprende os duros e claros esboços do que será sua condição amorosa com aqueles com que essa sexualidade lhe será proibida. Se aprende com quem o aprendido não poderá ser utilizado. O lugar edípico das relações do sujeito infantil com seus pais é o lugar onde a proibição do incesto incidirá de fato. A erogenização do corpo tem sua origem e história na relação primitiva do recém nascido com o objeto primordial, a mãe.

Neste ponto não existe discrepância nos diversos desenvolvimentos psicanalíticos pós-freudianos. Nesse lugar se organiza um dos conflitos fundamentais do ser humano, entre a força da primeira sedução exercida pela mãe e o corte necessário para virar sujeito e sexuado.

O sujeito deverá recuperar o positivo da relação com sua mãe para se dar um destino de ser sexuado. Mas esse movimento de retenção do aprendido deve ser simultâneo de um ato de desprendimento. (Operações de alienação e separação na constituição do sujeito).

A função mãe determina a história do corpo erógeno. No começo é o idilio de amor entre mãe e filho. É um idilio em um mal lugar, onde o imediato da relação de dois corpos está atravessada pela proibição. Na relação entre a mãe e o filho se organizam, precocemente, os gestos de sedução recíproca cujo conteúdo ilusório significa certa transgressão da proibição. Nesse momento importa a neurose da mãe, sua capacidade de emitir mensagens de sedução, de cuja interpretação pelo filho dependerão as determinações de base de seu futuro como sujeito e de sua modalidade de sexuação. Os acidentes desse idílio não carecem de importância para a clínica. Muitos dos sintomas que apresentam as pessoas que nos consultam hoje tem a ver com esse tipo de fixações primárias, com as vicissitudes dessa alienação primordial e sua saída dela (Sintomas de angustia desintegradora, pánico, anorexia).

A função pai tem a ver com o efeito do corte, com a perda obrigatória do objeto primordial e suas seqüelas. O Edipo é o lugar onde se historiza, na primeira infância, o corte na relação entre mãe e filho. A função do corte pretende dinamizar, fazer andar, o conflito fundamental, evitar as fixações do sujeito a esse mal lugar onde se constitui e erogeniza seu corpo. Muito tem se escrito na Psicanálise na segunda metade do século sobre esta função (que no precisa de um pai real, de um pai forte o de um pai débil). Se trata do pai como polo ou lugar capaz de exercer uma função de corte, de assegurar uma cisão, uma separação.

Os sintomas são históricos. O mundo da neurose tem hoje novos elementos, mas os pacientes continuam se perguntando sobre sua existência, sobre sua sexualidade, sobre a diferença dos sexos; sofrendo pela ignorância humana sobre os enigmas da vida, do amor e da morte; se respondendo através dos fantasmas, que não alcançam, vacilam, falham e produzem sintomas .

A neurose é a melhor saída para se organizar e defender desse conflito constitutivo do ser humano. O mundo da neurose, povoado de pesadelos, obstáculos e conflitos, torna-se assim a única barreira protetora contra o perigo absoluto do gozo. O sintoma neurótico é uma maneira de se defender, é uma montagem para substituir um gozo inconsciente, perigoso e irredutível por um sofrimento consciente, suportável e, em última instância, redutível. Existem modalidades do eu se defender do gozo, modos particulares de lidar com o gozo.

A separação da mãe (a proibição do incesto com a mãe; qualquer seja o sexo anatômico da criança) é estruturante do corpo erôgeno. Neste momento histórico, em que a função paterna oferece falhas, os desgastes do corpo erôgeno, esse corpo sustentado no fio de uma contradição e uma transgressão, são hoje muito freqüentes. Os sintomas colocam o corpo a prova. São sintomas relacionados com um amor narcísico exagerado; sintomas que aparecem na violência nos grupos sociais, no corpo atacado (anorexia, bulimia, drogadição), o na falta de ideais do eu da depressão.

A ética da clínica psicanalítica

A clinica psicanalitica depende estritamente de uma ética. O que pode a psicanálise dizer hoje respeito das possibilidades terapêuticas da neurose ? Nesta era de ressurgimento das ciências cognitivas, empiristas, e de uma economia de mercado que exige o máximo dos indivíduos, uma parte do neurótico pode se adaptar a esse modelo imposto pela sociedade em Ocidente hoje. O Outro de hoje exige das pessoas mostrar suas capacidades permanentemente, ser eficientes no trabalho e ter dinheiro para o consumo. O fantasma adapta o neurótico quase automaticamente às reglas do mercado, segundo as quais todo é intercambiável. O neurótico pode se adaptar a esta sociedade; a neurose se caracteriza porque nela todos os objetos podem ser substituídos. (Recursos e êxito da publicidade).

Mas tem outra metade do sujeito que se rebela, se desadapta. Surge então um sintoma, uma queixa que é uma pergunta angustiada sobre seu desejo, sobre sua posição como desejante, como ser sexuado. Não é muito freqüente que o neurótico se decida a fazer valer seu desejo fora dos caminhos instituídos . O hábito é a debilidade do neurótico. Em geral nossa sociedade chama normalidade a coexistência dessas duas metades do sujeito, quando à interrogação do sujeito responde o conforto do fantasma. Quanto melhor constituído esteja o fantasma , tanto mais normal será o sujeito. O sintoma poder vir a ser egosintónico. Mas tem situações na vida que destroem essa harmonia. Se configuram sintomas barulhentos, o sujeito os reconhece como insuportáveis, pede ajuda.

A Psicanálise trabalha com a divisão do sujeito O fantasma oferece respostas apaziguadoras; oferece sentidos. No momento em que as respostas sofrem uma vacilação, quando alguma coisa se sacode, o fantasma não alcança. O sintoma é um paliativo para representar o sujeito num momento de fracasso do fantasma, para cobrir a verdade de sua divisão, que vivida como uma fratura exposta é muito angustiante. Essas respostas, os sentidos que nos damos na cotidianidade, intentam tamponar o traumático, o que não tem explicação e angustia : os enigmas da sexualidade, o imprevisível do amor e da morte, o não saber sobre o outro sexo.

O fantasma proporciona um objeto que de alguma maneira tampona o sem sentido, estabiliza as respostas do sujeito. O fantasma vacila quando em termos de Lacan, se da um encontro com o real. O sintoma responde a esse ponto onde as palavras não chegam. Freud considera traumático o que não pode ser ligado, esse excedente de quantidade que se não é processado numa cadeia significante que lhe permita encontrar certo sentido em relação a outro significante, produz desprazer, angustia, ou produz dores no corpo adjudicados a sofisticadas doenças inventadas para o caso....

O eixo da clínica psicanalítica é o próprio sujeito; o sintoma é aquele que o sujeito reconhece como tal; a doença é aquela que o sujeito relata, não aquela que o médico diz que padece.

Para que seja possível a entrada em análise é necessário que o sujeito tenha razões para ir ao analista. Essas razões se definem em termos de sintoma. Nem sempre se pode dizer que existe um sintoma na entrada em análise. Mas é preciso que na entrada esteja presente a divisão do sujeito que faz transferência. O sintoma estabilizado satisfaz o sujeito, se trata de uma mensagem congelada, substraida da comunicação e do intercâmbio com o outro, porque condensa gozo, não pede nada a ninguém, não leva ao analista. É um sintoma que não se dirige ao Outro e se satisfaz na sua própria repetição. O sujeito em perfeita homeostase é aquele que logra tampar sua divisão, para fazé-la suportável. Para que o sintoma leve á análise é necessário que esteja descompensado. Esse movimento se manifesta sob a forma de uma queixa, de um sofrimento. O sintoma da entrada em análise é um sintoma com perda de gozo. O sintoma com perda de gozo está sempre predisposto a buscar um complemento, quer dizer, a se dirigir a outro.

Não há análise sem sintoma. Analisar-se significa sair do trancamento passivo nas redes imaginárias do fantasma, escolher o sintoma, se angustiar, seguir os labirintos do desejo para criar outro estado menos passivo, mais atuante, criativo e transformador.

A questão que a ética da clínica psicanalítica se planteia hoje, é como conseguir para o sujeito um novo acordo com o gozo. O como Freud dizia como aprender a administrar o conflito entre o universo pulsional anárquico e indomesticado e as exigências da consciência moral e da vida comunitária.

Este caminho para o amo do capitalismo neo-liberal é muito largo , ineficiente e pouco interessante.

Que acontece com os sintomas no final do século 20? Muito se repete que a nervosidade contemporânea mudou em relação á clínica que permitiu a especulação e teorização freudianas. Muito se questiona se os mesmos operadores teóricos podem dar conta dos fenômenos psicopatológicos atuais. Muito nos indagamos cotidianamente sobre o que temos os psicanalistas a oferecer as pessoas que sofrem transtornos da alma hoje . O processo analítico exige paciência e não pode prometer resultados imediatos. Como trabalhar com a demanda peremptória de não suportar o vazio, de não conseguir lidar com a angustia (nem sequer frente a morte de um ser querido) , o que fazer com o pedido de medicamentos que obturem essa falta , são os desafios dos psicanalistas, hoje.

A pulsão goza em seu excesso, em sua sem medida, em sua tentativa insensata de fechar a fenda. A angustia aparece pelo vazio, ou pela impotência de fazer possível o impossível.

O desejo neurótico é uma defesa, uma proibição de rebasar um limite no gozo. Existe um limite na satisfação, algo de impossível na satisfação. Aquilo que aparece como gozo sem freio, irrenunciável vontade de gozo , se transforma num perigo para o neurótico: o perigo de viver a satisfação de um gozo máximo, um gozo que se fosse vivido o faria enlouquecer, dissolver-se ou morrer.

Já que a satisfação plena só pode se lograr ao preço da morte, para que um sujeito esteja constituído a satisfação plena, o gozo deve se perder. Mal-estar radical que questiona e desestabiliza o império do prazer. Mal-estar que testemunha o fracasso do intento. A diferença entre o buscado e o encontrado diz que algo falta. Existirá outra tentativa, e outra. Essa diferença assinala o objeto como o que falta. O objeto será buscado no campo do Outro, arrancado se necessário (como por exemplo a droga).

Que acontece quando esse Outro da cultura do ano 2000 oferece de maneira incessante objetos para preencher essa falta?.

O ideal cultural alienado ao consumo propõe a obturação da falta. O objeto de consumo se oferece como primeiro objeto de satisfação. Como promessa de presença sem corte. A proposta imaginária é oferecer todo tipo de objetos para obturar os buracos de sentido, seja psicofármacos, objetos de consumo, sexo via Internet, amor narcisico incondicional para as crianças. O objeto oferecido promete satisfação e consistência ontológica. Será que só os velhos espíritos românticos, existencialistas, continuam amando as perguntas sobre a existência, o sexo e a morte...se angustiando e procurando os psicanalistas ?

Em contraposição, que acontece com aqueles tratamentos psicanalíticos que não conseguem finalizar, com aqueles analisandos que não saram da transferência, com aqueles analistas que não param de oferecer sentidos para seus pacientes ?

Mudanças no laço erótico no século XX

Que aconteceu com a vida sexual desde Os três ensaios sobre a sexualidade (1905) e A moral sexual "cultural" e a nervosidade moderna (1908) ? Em cada momento histórico se estruturam diferentes modalidades sexuais que são sintomas da época. Com a liberação sexual e consequentemente moral dos últimos 30 anos (sexo, droga e rock and roll) os sintomas mudaram .

Quais são as modalidades de condução dos tratamentos psicanalíticos ? Como os psicanalistas escutamos as chamadas neo-sexualidades de nossos analisandos , as novas criações eróticas deste século ? Pode se usar o termo perversão para essas modalidades sexuais ? (Joyce Mc Dougalll : a única forma perversa é aquela onde o desejo do outro não conta ). Quais são as conseqüências psiquicas das intervenções, interpretações e atos dos analistas sobre os neuróticos que se debatem em análise com a pergunta respeito a qual é sua modalidade de gozo?

Freud escrevia em 1927 na Conferência 27 : "Sobre o tratamento analítico cai a sombra de uma suspeita : não estaria ao serviço da moralidade geral...Mas , senhoras e senhores , quem lhes há informado tão falsamente ?...Posso assegura-lhes que estão mal informados se supõem que conselho e guia nos assuntos da vida seriam parte integrante da influência analítica. Pelo contrário, evitamos dentro do possível semelhante papel de mentores; o que mais ansiamos é que o paciente adote suas decisões de maneira autônoma...

Não somos reformadores, mas não podemos deixar de observar com olhos críticos a maneira em que a sociedade procura ordenar na prática os problemas da vida sexual. E não deixamos de comunicar esta critica a nossos pacientes; os acostumamos a apreciar sem preconceitos os assuntos sexuais assim como todos os outros... Aquele que depois de haver lutado contra si mesmo (no percurso de uma análise), consegue encontrar sua própria verdade, encontra-se ao abrigo de todo perigo de imoralidade, e pode se permitir para seu uso particular uma escala de valores morais que se desvie de algum modo da admitida pela sociedade".

Não será que muitos psicanalistas esqueceram ou desconhecem estas palavras subversivas , que marcaram uma ruptura ética fundamental com a Psiquiatria e as Psicologias pre-freudianas, e determinam, hoje, diferenças fundamentais com outras práticas clínicas.

Formação de psicanalistas

Aqui se abre uma nova questão em nosso balanço científico do século. Qual é a relação dos jovens analistas em formação com a tradição psicanalítica ? Como professora do Curso do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae recebo por vezes comentários que questionam a consistência de um estudo rigoroso da obra de Freud por considerá-lo anacrônico e pouco interessante para nossos tempos. Me pergunto quase quotidianamente se será possível transmitir Psicanálise, se formar como psicanalista sem ter a paciência de se debruçar, com amor, sobre o texto teórico, para retrabalho-lo, e sobre o texto de nossa alma e de nosso corpo, com o prazer de desejar participar ativamente na mudança, embora seja mínima, da combinatória de nossos elementos químicos, pulsionais, desejantes... A teoria psicanalítica está nos textos de Freud. Mas, que significa ler Freud , hoje em 1999 ? Entre outras coisas : se entusiasmar com as palavras, devolver as palavras a capacidade de assombrar.

Que acontece com os novos conceitos psicanalíticos, com a proliferação de invenção de conceitos? Qual é o limite que um conceito não pode franquear sem destruir os fundamentos da teoria psicanalítica ?

A psicanálise nasce a partir de uma reflexão sobre a sexualidade humana, a histeria tem a ver com coisas sexuais (História Movimento Psicanalítico: toujors,toujors,toujors....) A teoria psicanalítica se propõe relacionar o sofrimento psíquico com a sexualidade. Desde então, a sexualidade passa a ser algo diferente : os seres humanos adoecem porque existe algo enigmático no sexo. Quando se recalca é porque não se quer saber nada sobre algo que exige ser reconhecido. O que exige ser reconhecido é que não existe saber ...unido ao sexo.

A afirmação da existência de uma sexualidade infantil é a linha que demarca para Freud o que está dentro ou fora do campo psicanalítico, ( História do Movimento Psicanalítico, 1914). Este é um marco histórico que provoca controvérsias imediatas dentro e fora do campo psicanalítico.

Quais são os fundamentos e conseqüências da tentativa de desexualização constante que a teoria tem padecido durante todo este século?

São Paulo, novembro de 1999

Maria Cristina Ocariz
E-mail :
cristinaocariz@uol.com.br

BIBLIOGRAFIA

- FREUD, Sigmund. Tratamento psíquico, tratamento da alma. In : Obras Completas, Amorrortou Editores, Buenos Aires, 1985, V.2 .

Conferência 23. Os caminhos da formação do sintoma .In: AE, V.16

Além do princípio do prazer. In : AE, V.18

Inibição,Sintoma e Angustia. In : AE, V.20

Análise Terminável e Interminável. In : AE, V.23

- LACAN, Jacques. O Seminário, livro 7, A ética da Psicanálise, Jorge Zahar, 1988.

O Seminário, livro 20. Aún. Barcelona, Editorial Paidós, 1981.

- MASSOTA, Oscar. Lecciones de Introducción al Psicoanálisis. Gedisa Editorial, Barcelona, 1978.

- SILVESTRE, Michel. La neurosis infantil según Freud. In : Mañana el Psicoanálisis, Manantial, Buenos Aires, 1987.

- COTTET, Serge. Os benefícios do sintoma e a segunda tópica. In : O sintoma charlatão. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998.

- NASIO, Juan David. El magnífico niño del Psicoanálisis. Gedisa, Barcelona, 1986.


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