TRANSFERÊNCIAS CRUZADAS, TRANSFERÊNCIAS NÔMADES

Sobre a Transmissão da Psicanálise e as Instituições Psicanalíticas

Daniel Kupermann

- Membro do Comitê Brasileiro dos Estados Gerais da Psicanálise -

Esse ensaio apresenta, de forma resumida, as idéias trabalhadas no livro Transferências Cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições, publicado em setembro de 1996 no Rio de Janeiro. O problema principal nele tratado, o dos destinos da transmissão da psicanálise desde Freud até os dias de hoje, vem cada vez mais ganhando a atenção dos psicanalistas, e não é gratuito o fato de que será um dos eixos de discussão dos Estados Gerais da Psicanálise. Na opinião de muitos de nós, nos aproximamos de um impasse que parece colocar em risco a própria efetividade da psicanálise no mundo, que diz respeito, entre outros fatores, à maneira como se entende e se faz a formação dos analistas, à relação destes com seus mestres, suas teorias, seus pares, e o distanciamento que a clínica "endogâmica" que se pratica nas Associações e Escolas de psicanálise cria em relação às questões e urgências contemporâneas (1).

I. Constituição e impasses da Formação Psicanalítica

Sigfried Bernfeld (1962) conta que, na segunda década do século, interessou-se pela psicanálise e quis saber junto a Freud como faria para se tornar psicanalista. O conselho foi de que começasse a praticar e quando sentisse dificuldades, procurasse uma análise para si próprio. Foi assim com todos os pioneiros. O sentido de uma análise "didática" para Freud era o de convencer o candidato a analista, a partir da experiência pessoal, de que o inconsciente existe.

É claro que se tratava de uma disciplina nascente, e que a partir da difusão da psicanálise era legítimo o cuidado em proteger sua prática dos abusos da popularidade. Mas é muito contrastante essa primeira concepção laissez-faire de formação com o que se encontra já em 1925, após o Congresso de Bad Homburg, quando foi criado o Comitê Internacional de Formação com o objetivo de homogeneizar o processo em todo o mundo (2). Esse modelo ainda é adotado nas sociedades vinculadas à IPA (International Psychoanalytical Association). Com pequenas variações regionais, atualmente o período mínimo de análise é de cinco anos, na razão de quatro vezes por semana, quarenta e cinco minutos por sessão... o que dá uma média de 800 horas de análise para obter o "diploma" de analista.

Pode-se considerar unânime a idéia de que a psicanálise freudiana é produto da teorização de uma prática, os impasses da clínica reformulando a teoria, e a teoria dando um sentido - direcionando - a prática. Não é assim, no entanto, no que concerne à questão da formação psicanalítica, sendo difícil encontrar atualmente na cultura uma fórmula institucional mais dogmática e superegóica. E dogmas têm a função, em psicanálise, de servir ao recalque, à "proibição do pensamento" (3) (cf.Freud,1925). É precisamente em torno da questão da formação que encontramos passagens (apontaremos duas) da obra freudiana marcadas pela hesitação e pelo equívoco, onde a prática contradiz sua teorização, e que assim persistem, o que aponta um ponto cego (uma proibição do pensamento) que não pode ser superado em funções dos afetos - e dos poderes - em jogo. Antes de apontá-las, porém, é necessário um desvio pela história no qual demonstramos que é possível pensar o processo de institucionalização da psicanálise a partir das transferências e resistências a Freud e de Freud, em um movimento em quatro tempos (cf. Kupermann,1996, cap.3).

II. Freud e o Movimento Psicanalítico

O primeiro tempo da institucionalização do Movimento Psicanalítico coincide com a criação, em 1902, da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, a partir de um convite de Freud. Considera-se que esse grupo primevo estava fundado tanto no interesse pela disciplina nascente quanto na transferência a Freud - seu criador - sendo assim um prolongamento "em ato" do convite à transferência formulado por Freud em A Interpretação de Sonhos (1900), ao introduzir seu sonho modelo, o sonho da injeção de Irma (4). A partir daí, e durante toda a primeira década do século, aproximaram-se de Freud os nomes que iriam escrever o primeiro capítulo da história do Movimento: Eitingon, Jung, Abraham, Ferenczi...

Em 1910, no Congresso de Nuremberg, é criada a IPA (cf. Ferenczi,1911). Freud diria que era necessário organizar o Movimento, criando uma instância que pudesse ditar o que é e o que não é psicanálise, quem é e quem não é psicanalista. Uma investigação mais apropriada mostra, porém, a intenção de reorganizar a economia e a dinâmica transferencial do universo psicanalítico, que girava em torno de si, o que o oprimia. Assim, a "sua" posição precisava ser "transferida" (übertragen) para um líder mais jovem (Freud,1914,p.56). A escolha estava feita, seu "príncipe herdeiro" era Jung, indicado como primeiro presidente da Internacional, e a sede seria em Zurique, configurando uma operação de transferência das transferências na psicanálise.

A escolha de Jung logo mostrou-se desacertada, e uma sucessão desgastante de mal-entendidos, que pode ser acompanhada em sua correspondência com Freud, culminou no rompimento tanto pessoal quanto teórico, cujo impacto afetivo sobre Freud e o Movimento Psicanalítico dificilmente poderia ser ilustrado em pouco espaço. É suficiente indicar que os historiadores da psicanálise referem-no como um trauma significativo nos rumos do Movimento (Balint,1948; Roustang,1987).

Inicia-se então um terceiro tempo, determinante para o nosso argumento, que pode ser definido como um movimento transferencial de retorno a Freud (5) realizado pelo próprio Freud. O que chama a sua atenção neste episódio é o fato de que pessoas que tinham avançado tanto na psicanálise, como Jung (e também Adler, que se afasta na mesma época), pudessem ser vítimas de resistências e de transferências negativas para consigo - é pelo prisma da resistência e da transferência, sua representante maior, que Freud interpreta os desvios do desenvolvimento interno da psicanálise (cf.Freud,1914;1917;1925). Neste caso, Jung sofreria de "rebeldia juvenil" e de uma tendência especulativa onde sua "pré-história teológica" teria papel predominante; e Adler de um "anseio desenfreado de prioridade"e da "influência socialista" (Freud,1914). Resumindo: ambos são infantis, têm resistência à psicanálise e querem tomar o lugar de Freud.

Em 1912 é adotada uma primeira medida para evitar que casos como o de Jung pudessem repetir-se - a criação do Comitê Secreto (cf.Grosskurth,1991): um grupo formado pelos discípulos mais próximos de Freud que decidia nos "bastidores" os caminhos do Movimento, exercendo de fato o poder do qual a IPA era a fachada de direito. O mais revelador desse dispositivo é que o Comitê derivou de uma sugestão de Ferenczi, que acreditava que um grupo de iniciados deveria ser analisado pessoalmente por Freud, de forma a preservar a "teoria pura não adulterada por complexos pessoais" (op.cit.,p.46), após o que esses homens de confiança estabelecer-se-iam em diferentes centros, onde ficariam responsáveis pela formação dos iniciantes. Esta proposta revela, in status nascendi e a um só tempo, o paradigma da formação psicanalítica e a origem de seu malogro: o saber psicanalítico é transmitido fundamentalmente a partir da experiência de análise pessoal, e portanto, sua transmissão é regulada pela transferência. A consequência derivada disso, na ocasião, é que a transferência a Freud, controlada em uma análise com o mestre, seria o melhor instrumento para evitar "adulterações teóricas", ou seja, descobria-se o poder da manipulação da transferência não apenas para o curso da análise, mas também para o bom andamento institucional - bom comportamento teórico dos iniciantes e manutenção do poderm (6). A transferência tornava-se assim um instrumento de controle, e a padronização da formação que se sucede a partir daí é marcada pela manipulação da transferência para esse fim. A ironia é ter sido justamente Ferenczi (1928,1933) - o primeiro e único, durante muito tempo, a perceber os efeitos perversos e denunciar o processo de mediocrização produzido pela formação psicanalítica - o mentor intelectual do Comitê. O "retorno transferencial a Freud" tem na publicação de A História do Movimento Psicanalítico (1914) seu segundo e último ato, no qual Freud reivindica o saber sobre a sua obra - "a psicanálise é criação minha...ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise" - e condena as usurpações - "e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer" (op.cit.,p.16).

O quarto tempo da institucionalização do Movimento Psicanalítico em seu período freudiano coincide com a saída de cena de Freud do universo das decisões centrais. A característica principal desse período será a de que, em um arranjo semelhante ao do assassinato do pai em Totem e Tabu, ninguém mais poderá ocupar o seu lugar, ou seja, a psicanálise ingressa na era burocrática, onde a lei é dura, mas é a lei, igual para todos. E o perfil do futuro psicanalista deverá enquadrar-se nesse esquema.

III. Duas Dificuldades em Freud

O último parágrafo de A Questão da Análise Leiga (Freud,1926), texto dedicado justamente à questão da formação, traz a primeira passagem na qual Freud decididamente se equivoca, a prática contradizendo-o. Escrito por ocasião de um processo acusando Theodor Reik, analista não-médico, de exercício ilegal da medicina, o argumento freudiano pretende distinguir a psicanálise do campo médico, reivindicando uma formação psicanalítica específica e independente. Freud acaba por menosprezar a questão da análise leiga, e conclui: "Isso poderá ter um efeito local. Mas as coisas que realmente importam - as possibilidades de desenvolvimento interno - jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições" (op.cit.,p.283).

Mostraremos adiante que o desenvolvimento interno da psicanálise foi severamente afetado, não apenas no que se refere à questão da análise leiga, mas principalmente pelos regulamentos e proibições relativos à análise didática. O que chama a atenção é que, em 1926, Freud já poderia fazer uma avaliação desses efeitos, preferindo, no entanto, poupar qualquer referência ao processo institucional de formação. Decerto não se trata de esquecimento, mas de uma impossibilidade em adotar um pensamento crítico sobre os rumos do processo institucional.

A segunda passagem em que teoria e prática entram em discordância, e na qual Freud mostra-se hesitante, é de Análise Terminável e Interminável (1937). Freud refere-se ao caso de um analista que, um longo período após o término satisfatório de sua análise pessoal, tornou-se antagonista daquele que o analisara, acusando-o de ter falhado em proporcionar uma análise completa por não ter dado atenção à transferência negativa. Sabemos tratar-se do caso de Ferenczi e de Freud, que foi seu analista. Freud argumenta: na época da análise não havia sinais de transferência negativa, e o analista não pode interferir em algo que não é presentemente ativo; ativá-la implicaria em um comportamento inamistoso por parte do analista, o que não é indicado; por fim, nem toda boa relação entre analista e analisando durante e após a análise deve ser considerada transferência, existem "relações amistosas" que se baseiam na realidade e mostram-se viáveis (Freud,1937,p.253).

Ao comentar essa passagem, Balint (1954), já em meados do século, aposta que qualquer iniciante seria questionado se relatasse ao supervisor não ter encontrado sinais de transferência negativa em algum caso. Essa passagem vai revelar, portanto, a dificuldade, desde a origem, do manejo da transferência negativa na formação psicanalítica, cujo efeito maior surge no pós-guerra, com o aparecimento de um tipo "mutante" de candidato a psicanalista (7).

IV. A Produção de Obediência

Em meados do século, a cena psicanalítica é bem diferente daquela vivida por Freud e os primeiros analistas. A difusão cultural da psicanálise é um fato consumado, bem como seu reconhecimento enquanto saber e prática. A psicanálise havia se tornado "respeitável e normal" (8) (Gitelson,1954), e os analistas adquirido status profissional, não estando mais sujeitos às dificuldades vividas pelos pioneiros, como o ceticismo e o ostracismo profissional. Ao mesmo tempo, o perfil do candidato a psicanalista também havia mudado radicalmente (cf.Hartmann,1954). Anna Freud (1968) observa que na primeira geração de analistas encontrava-se "personalidades não-conformistas", "questionadoras" e utópicas, que conheciam o sofrimento neurótico por tê-lo vivido. Porém, desde a institucionalização da formação psicanalítica o processo de seleção passou a excluir os mais "excêntricos" e "suspeitos de alterações mentais", os "autodidatas e imaginativos", em favor dos que, "acomodados e bem preparados", ambicionavam maior eficácia profissional.

Surgia assim uma nova problemática que vinha atraindo as atenções no campo psicanalítico - a questão do candidato "normal" (cf. Gitelson,1954; Heimann,1954; Nacht,1954). O perfil sociológico dos candidatos a analista passara a ser o de jovens médicos, bem adaptados ao american way of life, bem sucedidos profissionalmente, que buscavam a psicanálise como uma especialização a mais em seu currículo. Mais grave porém, para perplexidade dos didatas, era seu perfil psicopatológico: faziam análise porque era obrigatório como parte da formação, mas não apresentavam conflitos psíquicos que justificassem essa análise. Eram excessivamente "normais", sendo considerados pouco criativos, e suspeitava-se que, no fundo, não entendiam bem do que se trata em psicanálise.

As tentativas de entendimento desse fenômeno, porém, esbarraram sempre na impossibilidade de implicar a psicanálise na produção de suas dificuldades. Assim, por um lado, o candidato "normal" era visto como sintoma de uma cultura narcísica, que promoveria uma ausência de conflitos autoplásticos (cf. Gitelson,op.cit.). Por outro lado, intuitivamente, as críticas internas ao processo de formação psicanalítica que começavam a surgir sugerem uma tentativa de articulação. Vejamos.

Percebia-se que a análise didática era problemática principalmente pelo fato de que o analista intervinha na decisão final sobre a habilitação do candidato/analisando, ou seja, além de analista, era também representante institucional e juiz. Isso significa que o analista detinha um poder real, e não apenas fantasmático, sobre os destinos de seu analisando. Consequentemente, o componente de agressividade e hostilidade da transferência, ou seja, a esfera da transferência negativa ao analista, dificilmente poderia ser vivenciada e elaborada de forma satisfatória. As análises passavam assim a favorecer a identificação ao superego do analista, servindo a um reforço superegóico.

Um exemplo radical está na impossibilidade de se abandonar uma análise que é obrigatória, sob a pena de se ter que abandonar de vez o ofício psicanalítico. A dependência assim produzida é real, e não apenas imaginária, o que a aproxima da situação da criança em relação aos pais (9). Configura-se dessa maneira uma fórmula transferencial absolutista, semelhante a da propaganda veiculada pela ditadura militar nos anos 70, "Brasil: ame-o ou deixe-o", onde "deixá-lo" só é possível ao preço de toda e qualquer cidadania pátria (10). Em contrapartida à produção de transferência necessária em toda análise, assistia-se a uma produção de dependência e submissão.

Alguns analistas, porém, percebiam "vantagens" em uma análise desse tipo. Sacha Nacht considerava que a tarefa do analista poderia ser "facilitada". Se na análise "terapêutica" o analista precisa dosar cuidadosamente a frustração imposta de forma a preservá-la, isto é, de forma a evitar que o analisando a abandone, na análise didática poderia interpretar livremente sem correr esse risco. Mas se uma escuta é modulada justamente pelo tato do analista, e é isso que constitui uma análise como terapêutica, onde a "verdade inconsciente" tem que ser engolida inteira e à força não há análise. A questão não é preservar tratamentos, mas a própria experiência limite do inconsciente. Se não há escuta, a psicanálise se cristaliza enquanto teoria e técnica, porque nada de novo pode surgir.

Um olhar sobre as propostas ensaiadas como solução para esses problemas revela um verdadeiro anedotário da psicanálise. Encontramos a seguinte sugestão para contornar o efeito de "contaminação" transferencial da análise obrigatória (Nacht,op.cit.): obrigar o candidato aprovado como membro da sociedade a uma análise complementar, ou seja, uma segunda análise obrigatória...para curar os males da primeira! Fica apontado assim um ponto cego no qual a estrutura institucional e os modos de exercício de poder mantêm-se intocados, obrigando as reformas a girarem em um círculo vicioso no qual o "remédio" reforça o mal - a regulamentação da "boa análise".

Dentre os psicanalistas da época, foi Michael Balint quem deu um "passo além" nessa questão, deslocando-a para o interior da instituição psicanalítica, implicando a psicanálise nas suas produções. Ou seja, para Balint a grande interrogação recaía sobre a tendência geral dos candidatos a serem excessivamente respeitosos aos seus analistas. No lugar do candidato "normal", era problematizado o candidato "obediente". A diferença imprimida pelo argumento de Balint foi mostrar que o próprio sistema de formação psicanalítica era responsável pelo sintoma "obediência", obrigando o candidato a incorporar os ideais do analista sem questionamento. O processo de formação é comparado aos rituais primitivos de iniciação, cujo objetivo é "forçar o candidato a identificar-se com seu iniciador, a introjetar o iniciador e seus ideais, e a construir um superego forte que irá influenciá-lo por toda a sua vida" (Balint,1948,p.167).

Acompanhando seu raciocínio, mesmo que um candidato com o perfil "não-normal" dos pioneiros (excêntrico, autodidata, neurótico, criativo ou até rebelde) fosse selecionado para a formação, o que é improvável, seria submetido a uma "intropressão de um superego" (idem) tão violenta que, ou abandonaria a psicanálise - junto a uma parcela significativa de seus projetos - ou tornar-se-ia enfim "normal", isto é, obediente, conformado e adaptado socialmente. É portanto através de uma formação psicanalítica superegóica, na qual a manipulação da transferência tem como efeito maior uma produção de "obediência", que as formas instituídas de poder na psicanálise asseguraram seu conforto.

V. O Último Freudiano

É no calor desses questionamentos que Jacques Lacan, na trilha inaugurada por Ferenczi e retomada por Balint (de quem era um atento leitor), constrói sua crítica à instituição psicanalítica. Sua contribuição decisiva foi apontar uma relação intrínseca entre a concepção teórico-clínica predominante (psicologia do ego) e a estrutura institucional vigente (Lacan,1956;1957). Ou seja, não é por acaso que justamente no círculo dos didatas a cura, ou o final de análise, é teorizada como identificação ao ego do analista. Levando seu argumento às últimas consequências, entende-se que: para uma psicanálise adaptativa, uma estrutura institucional hierarquizada nos moldes da cultura vigente e uma formação psicanalítica padronizada de forma a evitar surpresas. E a sua recíproca: a partir desse processo de institucionalização e da constituição do modelo de formação vigente, cujo efeito maior é o "terror conformista" - silenciamento, desintelectualização e ignorância dos candidatos - a tendência é o predomínio de uma versão esterilizante da psicanálise.

A crítica às formas de exercício do poder tendo como ponto central a formação psicanalítica ganha portanto, com Lacan, uma importância ímpar, sendo apontada como determinante para os caminhos futuros da psicanálise. E é justamente a questão da formação o pivô de seu rompimento definitivo com a IPA, que culminou na fundação da Escola Freudiana de Paris (EFP) em 1964. Há mais de uma década Lacan encontrava dificuldades na adoção de uma técnica diferenciada, as sessões de "duração variável", que recebia críticas dos didatas. Como vimos, na era burocrática não podiam emergir diferenças, sendo que aqui as diferenças não eram apenas teórico-técnicas, mas também de influência - poder e pecúnia. Afinal, com as sessões de "duração variável", que logo se transformaram em sessões "curtas", Lacan podia analisar mais candidatos, que não deixavam de procurá-lo atraídos por seu carisma. Em 1953, analisava um terço dos candidatos da Sociedade Psicanalítica de Paris (Roudinesco,1988,p.357), mais do que suficiente para ameaçar o establishment. Numa carta a Lagache, Hartmann, então presidente da IPA, expressa essa preocupação: "...seus (de Lacan) ensinamentos têm um peso enorme sobre os estudantes. Em que se transformarão os analistas formados por ele?" (op.cit.,p.341).

Essa é questão. Explodindo os regulamentos técnicos padronizados nas análises que conduzia, Lacan criava uma situação que escapava ao controle transferencial exercido por quase trinta anos, e o receio dos didatas pode ser ilustrado como uma "síndrome de Golem" - "que Golem psicanalítico será criado?"(11). A estratégia adotada pela IPA foi privar Lacan do status de didata, o que implicava oficialmente que ele não mais analisaria candidatos a psicanalista. Ou seja, privando-o do poder da transferência, acreditou-se escapar ao seu carisma. Com o rompimento, a história mostrou que o efeito foi exatamente o oposto.

O movimento de "retorno a Freud" promovido por Lacan consistiu não apenas em uma leitura teórico-epistemológica da obra freudiana, mas também em um retorno mítico a um ato inaugural de fundação e a um mestre fundador, onde aquele que "retorna" passa a ocupar sua posição (cf. Enriquez & Enriquez,1971). Os termos usados por Lacan (1964) no ato de fundação da EFP - "Fundo tão sozinho como sempre estive na minha relação com a causa psicanalítica..." - reenviam diretamente à posição inaugural de Freud através do apelo à estrutura de solidão mítica do fundador. Lacan efetua assim um corte transferencial inédito na história da psicanálise, reivindicando o estatuto mítico de mestre fundador que era, até então, exclusivo de Freud.

Na EFP, as regras foram abolidas e um dispositivo - o "passe" - foi criado de forma a responder, "no funcionamento", à questão da didática. O princípio lógico adotado por Lacan é o de que se há uma didática, é porque no decorrer dessa análise ocorre uma passagem estrutural através da qual o analisando, do divã, passa à poltrona. Porém, em Lacan, essa passagem corresponderia justamente ao final de análise (cf. Lacan,1967;Safouan,1985). Em termos institucionais o "autorizar-se" do analista ganharia sentido quando de seu testemunho, pelo "passe", ao juri de aprovação da Escola, que por sua vez tinha a função de teorizar o final de análise a partir da escuta desses testemunhos voluntários. Dessa maneira, Lacan evitou a questão pragmática de uma regulamentação da formação, deslocando à questão para a do final de análise, cuja coincidência é discutível - principalmente se tomarmos Freud como interlocutor. Uma sutil estratégia, na qual um problema referente à organização institucional e à hierarquização dos poderes é traduzido para a esfera de uma ética transcendental.

Após treze anos de funcionamento, constatava-se o fracasso do dispositivo. O juri não havia cumprido sua função de teorização, e de um total de quase duzentos "passes", apenas dezessete foram aprovados. Considerando que o juri concluía negativamente nos casos em que: 1)não era detectado o "desejo" de testemunhar, transparecendo apenas razões "pragmáticas" para o "passe"; e 2)o testemunho revelava a identificação ao analista, ou seja, a candidatura como um acting-out da análise (Safouan,op.cit.); considerando-se também que a provável maioria dos candidatos ao passe analisara-se com Lacan, conclui-se que na Escola não se conseguiu escapar dos efeitos de grupo produzidos pela identificação ao analista, com o agravante da condensação em uma figura única - Lacan - de vários lugares aos quais a transferência é destinada: analista, mestre teórico, diretor da Escola.

As tentativas de elaboração que se sucederam durante o período crítico de crise e após a dissolução da EFP, em 1980, apontam como principal obstáculo para o funcionamento da Escola o lugar imaginário que Lacan ocupava na transferência do grupo (cf. Roudinesco,op.cit;Roustang,1976). Lacan não pôde evitá-lo. Em uma derradeira viagem a Caracas, Lacan dirige-se à platéia de sua conferência anunciando: "Venho aqui lançar minha causa freudiana. Vocês vêem que me atenho a esse adjetivo. Cabe a vocês serem lacanianos, se quiserem. Quanto a mim sou freudiano" (apud Roudinesco,op.cit.,p.720). Este chiste vem apontar que, no novo arranjo transferencial produzido a partir do "retorno a Freud", o destino de Lacan foi ser o último freudiano em sua Escola. O lacanismo posterior tratou de institucionalizar a nova ordem, transformando algumas das boas questões levantadas por Lacan em respostas inquestionáveis e em servidão voluntária à letra de um mestre que tem, decerto, seus representantes terrenos. O mérito maior da experiência institucional de Lacan foi o de ter sido ele o primeiro analista a constatar, de fato, que Freud havia morrido, e que a IPA não poderia mais sustentar ser a única herdeira legítima de seu legado.

VI. A Transferência Nômade na Transmissão da Psicanálise

Vivemos também na psicanálise um período "pós" - pós-freudiano, pós-kleiniano, pós-lacaniano - cuja característica principal é a diluição dos mitos criados em torno dos antigos mestres, acrescida da ausência de um grande mestre catalisador dos afetos e dos anseios de verdade do campo psicanalítico. Por um lado esta situação é motivadora de angústias, em função de um estado aparentemente caótico e desorientador onde é difícil encontrar uma "identidade psicanalítica" definida, e onde não se apresenta uma verdade última à qual recorrer. Em contrapartida, surgem possibilidades inéditas.

Desde a década de 70 assiste-se a uma abertura gradual para o pluralismo teórico-institucional que hoje marca a psicanálise em diversos centros. No registro teórico, o interesse por leituras de referencial distinto abordando temáticas comuns, junto ao resgate das obras de autores "proscritos", como Ferenczi, vêm ganhando expressão. No registro organizacional, a constituição de novos grupos impõe limites às tentativas de hegemonia, oferecendo uma opção heterogênea de aproximação da psicanálise e de formação psicanalítica. Além disso, as sociedades psicanalíticas começam a promover o intercâmbio de gente e de idéias.

Este Zeitgeist favorece a criação de formas organizacionais mais abertas e ventiladas, aliviando o sufocamento e a opressão de um convívio institucional superegóico vivido e exigido nas associações psicanalíticas. Vimos como os discursos teórico-técnicos se transmitiam já codificados pelos efeitos da transferência e pelas exigências de fidelidade "partidária" que devia ser adotada a priori. Para que o processo de formação psicanalítica possa manter alguma relação com a especificidade da psicanálise, é necessário que deixe de produzir uma transferência absoluta, endereçada a um lugar único, cujo efeito maior é a revolta ou a servidão, faces comuns da moeda da impotência.

A tendência ao pluralismo permite, assim, o trânsito por diferentes teorias, mestres e mesmo associações psicanalíticas, caracterizando uma espécie de nomadismo teórico-institucional no qual a fixidez dos lugares previamente estabelecidos é abalada. A condição afetiva para o surgimento deste novo arranjo institucional é a emergência de um arranjo transferencial inédito na história da psicanálise: a transferência nômade no campo psicanalítico (cf. Kupermann,1996, cap.8).

A transferência nômade é a possibilidade de transferir de forma múltipla no âmbito institucional da psicanálise, permitindo assim a preservação da singularidade da experiência analítica no processo de formação. Através de um "embaralhamento" dos códigos, dos contratos, e das redes de compromisso estabelecidas pelas certezas adquiridas, um movimento de "desterritorialização" (Deleuze,1985) é criado de modo a que se reexperimente a diferença e a angústia da incerteza que marcam a experiência psicanalítica em seu momento inaugural, e que devem marcar toda nova análise (12).

O fluxo pulsional não busca apenas a união erótica. É movido também por disjunções provocadas pela ação imperativa de Thanatos. A pulsão de morte não deve, no entanto, ser entendida como pura desagregação destruidora. Luta também para libertar o sujeito da ação de posse promovida pela atividade gregária e aglutinante de Eros, que exige a anulação de toda a alteridade (cf. Zaltzman, 1994). As tentativas de sufocamento da transferência negativa no processo de formação psicanalítica, de forma a perpetuar modos de poder, indicam a sua ameaça enquanto representante desta categoria pulsional.

A transferência nômade busca portanto incluir, no campo psicanalítico, a possibilidade de unir e separar, juntar e disjuntar, mover-se. Estabelecer novas e várias transferências e para elas buscar destinos adequados. Não será este o horizonte de toda análise?

Antes de concluir, é necessário diferenciar pluralismo de ecletismo. Freud combatia os ecléticos que, fazendo concessões em detrimento das verdades mais incomodativas, eram considerados uma camada amortecedora entre a psicanálise e seus adversários. Por outro lado, Freud sempre recusou a captura da psicanálise em um sistema totalizante e imóvel (que constitui uma Weltanschauung), buscando delimitar o campo psicanalítico por suas premissas fundamentais, deixando uma boa margem para a emergência de diferenças: "Qualquer linha que reconheça esses dois fatos (transferência e resistência) e os tome como ponto de partida de seu tabalho, tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus" (Freud,1914,p.26). Assim, entre a recusa do sistema totalizante e a recusa do ecletismo, encontra-se um amplo espaço de jogo para o desenvolvimento da psicanálise. Este é o espaço possível de trabalho da transferência nômade.

NOTAS

- Ver também Kupermann (1995), do qual esse ensaio deriva.

- A partir de então, o candidato a analista passava por entrevistas de seleção; uma vez aprovado era encaminhado a uma análise pessoal na qual o analista era escolhido pelo instituto de formação; também o instituto, junto ao analista, decidia pelo momento de participação nas outras atividades da formação - estudo teórico e supervisão - e pelo término da análise; o candidato comprometia-se por escrito a não se denominar psicanalista até que a sociedade psicanalítica o reconhecesse como tal.

- Balint (1948) e Safouan (1985), entre outros, mostram como o processo de institucionalização da psicanálise está fundado sobre tentativas de recalque.

- "Agora devo pedir ao leitor que faça dos meus interesses os seus próprios por um período bastante longo, e mergulhe, juntamente comigo, nos menores detalhes de minha vida, porquanto uma transferência (Übertragung) dessa natureza é peremptoriamente exigida por nosso interesse no significado oculto dos sonhos" (Freud,1900,p.113).

- A referência proposital ao projeto lacaniano vem ressaltar o caráter transferencial decisivo presente em qualquer movimento com pretensões de retorno a uma ortodoxia.

- Nosso interesse não é analisar as rupturas pelo prisma epistemológico das teorias, mas pela via dos afetos e dos poderes.

- Por outro lado, surge aqui uma via fértil para se pensar formas mais apropriadas de relação entre os analistas e de exercíco do poder na psicanálise - a questão da amizade (Kupermann,1996, cap.3.3.1).

- Essas formulações referem-se principalmente à situação norte-americana, na ocasião, mas são válidas para todos os centros nos quais a psicanálise teve grande difusão cultural, como o Brasil, guardando as defasagens de época.

- Jean Laplanche, em conferência pronunciada no Rio de Janeiro em 1993, comparou a análise a análise do candidato em formação psicanalítica à análise de crianças, onde a criança comparece segundo o desejo dos pais.

- A análise do caso Amílcar Lobo, médico candidato a psicanalista no Rio de Janeiro envolvido na prática de tortura durante a ditadura militar, é bastante ilustrativa das relações entre psicanálise e poder, e também das práticas de poder nas sociedades psicanalíticas (cf. Kupermann,1996,cap.7; cf. Vianna,1997).

- Sobre o mito do Golem, cf. Borges (1982); Wiesel (1986).

- A possibilidade histórica de uma "transferência nômade" na transmissão da psicanálise não nos parece se opor à fidelidade transferencial necessária à toda transmissão de saber (cf. Birman, 1996), mas à submissão transferencial produzida em determinados contextos.

Referências Bibliográficas

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Daniel Kupermann
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