REPETIÇÃO E
PULSÃO DE MORTE:
A psicanálise, como afirma Lacan no Seminário 11, é uma praxis orientada para aquilo que no coração da experiência é o núcleo do real. A importância que o conceito de Repetição assume na teoria psicanalítica está intimamente vinculada a esta demarcação do vetor de orientação do campo psicanalítico, na medida em que ela não pode ser pensada independentemente de uma praxis.
Foi justamente a partir de observações clínicas que Freud teve a sua atenção despertada para o fenômeno da Repetição. Desde a formulação da noção de uma representação coercitiva ( Zwangsvorstellungen) que apresenta em 1894 no texto “As psiconeuroses de defesa”(cf. Kaufmann,1996), ele já esboça o conceito de repetição como algo constituinte do funcionamento psíquico. Em 1914, ao se deter sobre os fenômenos da transferência na clínica, dá à noção de repetição o estatuto de um conceito, ao identificar a compulsão à repetição como uma maneira de recordar que se presentifica no tratamento. Nesse momento procura articular os conceitos de repetição, transferência e resistência, o que faz com que a força do conceito fique enfraquecida pela interseção com o conceito de transferência.
É em 1920, em “Além do
princípio do prazer”, que vai atribuir
ao fenômeno da compulsão à repetição o caráter de uma força demoníaca que
sobrepuja o princípio do prazer, o que o leva a formular o conceito de pulsão
de morte, como esta tendência a retornar que funda a orientação do sujeito humano
na busca do objeto. A partir desse
momento fica evidenciada a importância do conceito de repetição, que
pode ser considerado como constitutivo
do próprio conceito de inconsciente, na medida em que revela o movimento da
pulsão. Repetição, inconsciente e pulsão estão, assim, intimamente ligados e é
por isso que Lacan os considera, juntamente com o conceito de transferência,
como os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Ao dar destaque ao conceito
de repetição enquanto conceito fundamental, Lacan é sensível à ligação que Freud estabelece entre repetição e pulsão de morte
na medida em que ela denuncia o que há de essencial na repetição, que
Lacan designa como encontro do real. A repetição é esse trabalho fundamental da
pulsão de morte que relança insistentemente algo inassimilável, da ordem do
real. É esse encontro, essencialmente faltoso, que os sonhos traumáticos
insistem em trazer de volta, no movimento de retorno a uma impossível origem, a
um estado de repouso absoluto, com a eliminação de todas as tensões. No lugar
desse objeto impossível de encontrar, o que se encontra sempre é o real, o que
introduz a diferença no circuito da repetição. É este inassimilável à cadeia
simbólica, traumático, que determina o movimento do desejo, que é sempre desejo
de outra coisa.
Lacan se valeu do
vocabulário de Aristóteles para tratar as duas faces da repetição: tiquê e automaton.
Enquanto o automaton aponta para a repetição sintomática, como insistência dos
signos comandada pelo princípio do prazer, a tiquê indica esse encontro do real, que vige sempre por trás
do automaton, para além do princípio do prazer. Para Lacan, em toda pesquisa de
Freud fica evidente que é desse real que ele trata.
Para trabalhar melhor estas
formulações, em particular a relação entre repetição e pulsão de morte, nos
valeremos da narrativa trazida por um filme de Dariush Merjui (Irã,1997), que
apresenta de forma pungente o drama do desejo humano, através do destino de uma
mulher de classe média na sociedade
iraniana atual. O filme leva o seu nome: Leila e pode ser pensado como uma
história clínica.
Ele se desenvolve num
cenário de cenas repetidas: entre a primeira e a última, uma narrativa que vai
do drama à tragédia, em que a repetição, na sua face de automaton, traz em si
um real insuportável que evidencia a ação da pulsão de morte.
No primeiro tempo do filme, a ação tem início
numa refeição festiva, ao ar livre, em que é acertado o casamento de Leila. Seu
irmão traz um amigo que se tornará seu marido. Tudo já está previsto no contexto
dos arranjos familiares e não parece haver escolha para ela, nem
tampouco para ele. Apesar disso, o amor surge como um imprevisto e a vida em
comum desenvolve-se de forma apaixonada.
Neste percurso, entretanto, algo se interpõe como um sintoma, cujo
sentido, como diz Lacan, é o real, enquanto aquilo que se coloca em cruz para
impedir que as coisas andem bem.( Lacan, 1986:24). Após algum tempo de casados,
as famílias se inquietam pelo herdeiro que não chega e o jovem casal procura
especialistas para ver o que está ocorrendo. Esta situação preocupa
principalmente a mãe do rapaz, uma vez que este é seu único filho homem,
responsável, portanto, pela continuidade do nome da família. Ela aguarda
ansiosamente um neto que lhes assegure a imortalidade. Sintoma social, onde
estão traçados os papéis de homens e
mulheres numa sociedade patriarcal fortemente hierarquizada e
tradicional, em que o valor de uma mulher está ligado ao filho que pode dar a
um homem..
Nesse momento começa o drama
de Leila: tal como vaticinado por sua sogra, que não admite que o filho possa
falhar, ela constata que não poderá cumprir este papel, já que está
impossibilitada de gerar um filho. A princípio isto não parece incomodar seu
marido que reafirma o amor por ela e chega a sugerir que adotem uma criança.
Após algumas visitas a orfanatos, Leila se recusa a optar por esta solução,
assumindo a sua falha e dizendo ao marido que esta impossibilidade não o
atinge, uma vez que ele pode gerar um filho que seja sangue do seu sangue. Pesa
sobre ela a culpa por não cumprir o seu
papel social, assim como por não satisfazer a demanda do Outro que a intima a
produzir o falo enquanto potência imaginária e referência simbólica de uma
determinada ordem. As mulheres, como diz
Lacan, são falóforas, na medida em que produzem meninos.
O que move Leila ao assumir uma postura em que
recusa o amor de seu marido, reduzindo-se à função de procriadora, numa posição
marcada pelo real da privação? É sob a pressão da sogra, que não por acaso ela
chama de “A Mãe”, que surge como um
supereu insaciável, inscrição arcaica de uma imagem materna onipotente, que
Leila caminha, como Édipo, para a maldição consentida. É “A Mãe” quem insiste
em lembrar-lhe o desejo inconfesso de seu filho de ter um filho, exigindo que ela
consinta que ele se case com outra mulher que possa satisfazer esse desejo,
apesar dos protestos do próprio e até
mesmo do pai deste e de suas irmãs. A este desígnio Leila se submete, na
tentativa de satisfazer não o desejo de seu marido, mas o desejo da Mãe.
Parecem estar soldados aí a busca de satisfação do desejo da Mãe e o desejo
de ser Mãe, na medida em que este lhe
dá acesso ao “tornar-se mulher”.
O desejo da mãe é original e
fundador, mas ao mesmo tempo destrutivo e
mortal. Ele deve ser mediado pela função paterna que opera uma
metaforização, permitindo o surgimento do sujeito. O Nome-do-Pai surge como
substituição significante ao desejo da mãe [iii].
No filme esta função parece enfraquecida, a partir da existência de uma tensão
na sociedade iraniana entre antigos e novos valores. Os novos valores que se
insinuam expressam-se na defesa do marido de uma relação amorosa exclusiva em
que a mulher não se reduz à função de reprodutora, assim como na revolta das
cunhadas que tentam convencer Leila a não seguir as imposições da Mãe. Há,
portanto, uma valorização do feminino para além do papel que é destinado às
mulheres pela tradição e uma mudança na relação entre os sexos. Até mesmo o pai do rapaz reprova o comportamento da Mãe, considerando
absurda sua pressão sobre Leila. Do outro lado está a inquebrantável
determinação da Mãe em atingir seu objetivo: seguindo a tradição, dar
continuidade à linhagem masculina. As figuras masculinas que poderiam barrar
esse caminho são, contudo, demasiadamente passivas, como o pai do rapaz e o
próprio rapaz que acaba por também se submeter ao desejo materno. Parecem estar
na fronteira, indecisos entre duas ordens. É a Mãe que, paradoxalmente, surge
como representante da ordem tradicional masculina, que outorga aos homens o poder
de ter várias mulheres, em que estas aparecem veladas, cobertas por xales,
desubjetivadas.
Neste contexto, o supereu se
manifesta, como diz Lacan no Sem. 1,
como uma instância cega e repetitiva. É o “tu deves” que é, ao mesmo tempo, a
lei e a sua destruição. A presença constrangedora e repetitiva da Mãe, leva
Leila a engajar-se na busca de uma outra mulher para o marido, numa posição
passiva, masoquista, que revela o poder desse supereu arcaico.
É nesta busca que a função
da repetição se instala, revirando a posição de Leila de uma passividade masoquista para uma atividade silenciosa.
Como a netinha de Freud, no jogo do Fort-da, ela procura dominar a experiência
de perda através de uma atividade repetitiva em que supostamente controla a
situação. Após convencer o marido a escolher outra mulher que lhe possa dar um
filho dentre as candidatas arranjadas pela Mãe, sucedem-se cenas que configuram
um ritual onde Leila prepara cuidadosamente a roupa do rapaz para o encontro
com a candidata, seguindo-o em quase todos os passos que o levam a ela. A
partir de um acordo entre eles, que determina que este só poderá aceitar uma mulher aprovada por
Leila, ela o acompanha no carro até um certo ponto do percurso para o encontro,
para onde ele retorna ao final, narrando o que aconteceu. Eles conversam na
volta para casa, momento em que ela rompe seu silêncio, divertindo-se com os
defeitos que o rapaz sempre encontra
nas candidatas, o que preserva a
relação entre eles.
Podemos considerar este como
o segundo tempo do filme, em que a repetição assume a forma sintomática do automaton,
uma vez que o ritual surge como uma formação substitutiva que vem em lugar da
falta de relação que passa a marcar o convívio do casal. Ele tem a função de
impedir a irrupção de um real traumático, garantindo que o encontro com a outra
não se consume, o que aplaca o sofrimento e permite um certo gozo ao casal. A
insistência deliberada de Leila em submeter-se ao desejo da Mãe, que a cada
candidata recusada apresenta outra, anuncia, contudo, um desfecho trágico. Como Antígona, Leila
mascara com seu heroísmo, o drama de não poder ser mãe[iv].
Ironicamente, como se fosse
um acaso, o rapaz se interessa por uma das candidatas e o ritual, pela ação da
pulsão de morte, desenvolve-se até o seu ponto máximo, onde vem à tona aquilo
que pretende esconder: o real. Novo
encontro é combinado com a mesma moça e desta vez uma diferença se apresenta:
Leila acompanha seu marido no carro, saltando, como sempre, um pouco antes do local do encontro. É lá
que permanece, não mais para reencontrá-lo, mas para vê-lo passar no carro com
a outra e aprová-la, como fora combinado previamente. A partir disso, o
casamento é acertado e Leila, levando ao ápice sua compulsão, arruma
silenciosamente a casa para receber a nova mulher. Num ritual trágico, prepara,
com mais esmero do que nunca, a roupa de gala que o rapaz usará na cerimônia,
retirando a seguir todos os seus pertences do quarto do casal e arranjando-o
cuidadosamente para a noite de núpcias.
Nesta tentativa de apagar-se a si mesma, apagar seu desejo, recolhe-se ao quarto dos fundos e aguarda a
chegada do novo casal.
O momento em que estes
entram na casa, acompanhados dos convidados para a festa do casamento, inaugura
o terceiro momento do filme. Nele se observa a irrupção de um real
insuportável, que revira novamente a posição de Leila. Diante da alegria dos
convidados numa reunião festiva que, de certa forma, marcadas algumas
diferenças, relembra a primeira cena do filme, ela deixa a casa, correndo
enlouquecida pela rua, refugiando-se na casa de sua família, que nem sequer
sabia de seu drama.
A cena que se segue
define o final do filme, pois Leila vomita compulsivamente, fixando-se
em seguida em uma mudez da qual não mais sairá. Se a cena inicial do filme foi
uma refeição coletiva festiva, em que Leila foi o prato principal através da
combinação de seu casamento e da definição de um destino ao qual ela não poderá
fugir, a repetição desta comemoração traz à boca de cena o real impossível,
como algo inassimilável que retorna no vômito de Leila.
Daí em diante, o filme se
encaminha na direção do fracasso: fracasso do novo casamento, pois o rapaz não
se conforma com a ausência de Leila e fracasso da tentativa de satisfazer o
desejo da Mãe, pois do novo enlace nasce uma menina. Em vão são as tentativas
do rapaz de, após separar-se da segunda esposa, retomar a relação com Leila.
Isto não é mais possível. Tendo ido longe demais na traição de si mesma, ela
está muda e morta para a vida, evidenciando de forma radical a ação da pulsão
de morte como tendência para o retorno
ao estado de não-vida, anterior à vida, que pressupõe a passagem pela morte.
A última cena do filme repete integralmente a primeira, neste retorno à origem. Uma refeição coletiva, festiva, ao ar livre. Como no início, o rapaz é novamente convidado pelo irmão de Leila, mas desta vez chega acompanhado de uma menina. Leila, sem ser vista, o observa à distância, de uma janela, mas não desce para a festa. Tudo está acabado para ela, que surge, nesta cena, como a demonstração viva da impossibilidade. A presença da menina, contudo, deixa a pergunta: será tempo de recomeçar?...
Doris Rinaldi
E-mail: doris@uerj.br
FREUD, Sigmund
- “Recorda, repetir e elaborar”
(1914), Obras Psicológicas Completas., Edição Standard Brasileira, Rio de
Janeiro, Imago Ed. 1976.
________________ -
“Além do princípio do prazer” (1920), Obras Psicológicas Completas.,
Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago Ed. 1976
GUYOMARD,
Patrick - O gozo do trágico: Antígona,
Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1996.
KAUFMANN, Pierre
- Dicionário Enciclopédico de
Psicanálise, Rio de Janeiro , Jorge
Zahar Ed., 1996.
LACAN, Jacques
- Seminário XI, Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (1964),
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1979.
________________ - Seminário
I, Os escritos técnicos de Freud (1953-54),
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1983.
________________
- “A terceira”(1974), Che vuoi?,
outubro , ano 1, no., Porto Alegre, Cooperativa Cultural Jacques
Lacan,1986.
________________ - “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998
NOTAS
[i] Trabalho apresentado no Simpósio da Intersecção Psicanalítica do Brasil, realizado em São Paulo, de 26 a 28 de novembro de 1999.
[ii] Psicanalista, Professora do Mestrado em Psicanálise da UERJ, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ.
[iii] Em “Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”(Escritos,1998:563), Lacan apresenta a fórmula da metáfora paterna em que o Nome-do-Pai vem em substituição significante ao desejo da mãe.