ASSASSINO SERIAL : ¾ ...

Durval M. Nogueira Filho

O convite para escrever sobre aquele que assume esse papel de sair por aí matando pessoas, em um rito macabro do qual não está excluído o sexo, foi desencadeado pelo sucesso de mídia que Francisco de Assis Pereira - um nome comum e santo, o santo que se articulava com a natureza - fez. Com o codinome o "Maníaco do Parque" entrou para a crônica policial. Francisco não é o nosso primeiro assassino serial. "Chico Picadinho" ficou famoso. Marcelo de Andrade, um matador de crianças, e Fortunato Boton, um matador de gays, são membros recentes desta lista, à qual acrescentar-se-iam os nossos torturadores.

O último, Francisco de Assis, segundo o que se pode colher em entrevistas e matérias publicadas em jornais e revistas, parece portar os traços que fazem destas figuras algo monótono. Eles surpreendem por parecerem normais. Um garoto meigo, um cara super-bacana, brincalhão, simpático, honesto e namorador. Adorado pelas crianças e capaz de dar conselhos sobre como os aprendizes no esporte - que pode ser radical - de deslizar em patins devem tomar para que o corpo não se despedace. Esta bela alma matou nove mulheres e estuprou um montão de outras. Segundo os relatos, raramente usou a violência até o instante imediatamente anterior ao assassinato. Ainda segundo os relatos, algumas mulheres se salvaram ao usar o mesmo recurso de Francisco : a mentira (Francisco dizia-se um fotógrafo de modelos para convencer as mulheres a acompanhá-lo). Declaravam-se portadoras de um assassino serial de outra ordem: o vírus da AIDS. Ao ouvir esta declaração, Francisco recuava no ímpeto assassino. Matar rapidamente uma mulher, sim. Morrer lentamente por infecção, não. Destruir o corpo dela, sim. Macular o próprio corpo, não. Um exercício de não identificação. Pois então, ele parecia super-legal, inteligente e articulado, com feições de um cara comum. É engraçado isto ser salientado nas matérias. Espera-se o quê de um assassino serial? Os sinais lombrosianos que quase definem outra espécie biológica? E, meus queridos, efetivamente não é assim. Não são degenerações biológicas que especificam as diferenças...

E não é só isso. Na história de Francisco, há referência a traumas sexuais antigos e recentes. Uma tia materna o teria molestado sexualmente na infância e daí uma fixação em seios. Um patrão o teria seduzido: relações homossexuais. Uma gótica teria quase arrancado seu pênis com uma mordida: temor à perda do membro viril. Além de, em uma vertente mais bucólica, a ocorrência de uma desilusão amorosa transcorrida em sua vida.

Por outro lado, a existência marcada pelo epíteto de bom cidadão não deixou de ser invadida por traços significantes de uma outra cena. Thayná, um travesti com quem viveu por mais de um ano, constantemente apanhava de Francisco recebendo socos no estômago e tapas no rosto, exatamente como algumas das mulheres que sobreviveram relataram. Marca de sangue no shorts, á altura do pênis, também foi notada por Thayná. Uma namorada com quem teve um filho anotou arranhões no peito de Francisco. Uma ex-mulher o teria arranhado em uma briga, explicou Francisco.

Um detalhe a mais. Muitas das mulheres que sobreviveram e com certeza boa parte das que morreram - como dito anteriormente - foram levadas ao Parque do Estado confiantes que Francisco seria um caçador de talentos e as convidava para uma sessão de fotos em um ambiente agreste e selvagem. Acreditavam. Se ninguém deve cair no engodo de culpar as vítimas, não deixa de ser um viés interessante, um sintoma pós-moderno, o fascínio que ser modelo, morena e brasileira, exerce no imaginário das garotas.

E morena e brasileira, de cabelos escuros e longos, é a esmagadora maioria das mulheres que Francisco estuprou e/ou matou. Desenvolveu um padrão que faz lembrar, com Lacan (1998a), que a realidade de um crime não se capta sem a referência a um simbolismo. Lembrem-se que "Chico Picadinho" matou uma mulher em 1966, desmembrou-a e acondicionou as partes em uma mala. Preso, passou aproximadamente dez anos confinado. Solto, após o curto espaço de alguns meses, cometeu um crime igual.

E Francisco de Assis diz: "eu tenho um lado ruim dentro de mim. É uma coisa feia, perversa que não consigo controlar. Tenho pesadelos, sonho com coisas terríveis. Acordo todo suado. Tinha noite que não saía de casa porque sabia que na rua ia querer fazer de novo, não ia me segurar. Deito e rezo para tentar me controlar".

Neste enunciado de Francisco - sabe-se lá com que quantum de meia verdade - revela-se algum sofrimento que é resultante de um saber que, da maneira como está exposto, corresponde à certeza de que fará um ato na esteira de uma força incoercível e compulsiva que apenas a renúncia disciplinada a caminhar pela cidade pode conter. Não sair de casa, não girar uma chave e movimentar uma maçaneta é o ato que carreia o poder - talvez aí também um simbolismo - de evitar que o resto da cadeia se estenda. E uma morena e brasileira sofra para seu gozo.

Francisco define-se, provavelmente sem o conhecer, um anti-Sade. Diz Sade "Sim, sou um libertino, eu confesso, concebi tudo o que é possível conceber nesta matéria; mas seguramente não fiz tudo o que concebi e seguramente não o farei jamais. Eu sou um libertino, mas não sou um carniceiro, nem um assassino" (Chaussinand-Nogaret, 1992). Continua Sade: Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, exercerei este direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extensões que me dê gosto de nele saciar" (Lacan, 1998b). Lacan (op. cit.) diz que a máxima sadiana vem pela boca do Outro, ela se insere na doutrina dos direitos do homem. "É pelo fato de que nenhum homem pode ser de outro homem propriedade,..., que não se pode disso fazer um pretexto para suspender o direito de todos de usufruir dele, cada qual a seu gosto" (Lacan,1998b). Assim, basta que não se tome aquele corpo com nome como propriedade que o deleite está liberado. Sem direito ao assassínio. E segue Lacan (op. cit.): "Portanto, é realmente o Outro como livre, é a liberdade do Outro que o discurso do direito ao Gozo instaura como sujeito de sua enunciação, e não de uma maneira que difira de tu és (homofonia em francês com "matar") que se evoca do fundo mortífero de qualquer imperativo".

A fala de Francisco, ao contrário, não parece sair da boca do Outro. Lacan (1998c), ainda em seus antecedentes, ao dimensionar a imaturidade biológica do homem, cerne do estádio do espelho, que o marca com o significante da dependência diz que : "Se nossa experiência com o psicopata levou-me à articulação da natureza com a cultura, nela descobrimos essa instância ( um supereu "primitivo" - nota: entendimento do autor) obscura, cega e tirânica que parece ser a antinomia, no polo biológico do indivíduo, do Dever puro que o pensamento kantiano coloca como contraparte da ordem incorruptível do céu estrelado" (Lacan, 1998a). É a este "primitivo supereu" que parece pertencer a boca pela qual sai o imperativo de Francisco. Não é propriamente um curto-circuito no Outro que faria de Francisco um notável representante do tempo moderno, quando o Outro corre o risco da inexistência. Mas um mandamento, na borda da natureza com a cultura, que não passou pelo apaziguamento do Nome-do-Pai. Ali onde Deus não morreu pois ainda não havia sido nomeado. Um tempo anterior mas distinto da forclusão. É, com Lacan (1988), advertir "aqueles que preferem o conto de fadas e fazer ouvido moucos quando se fala da tendência nativa do homem à maldade, à agressão, à destruição e, portanto, também à crueldade". A crueldade do homem, que ultrapassa a ferocidade animal, está implicada na humanidade. "O homem, com efeito, é tentado a satisfazer no próximo sua agressividade, a explorar seu trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apropriar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo, como – talvez estupefato – Freud (1973) escreveu.

Quer dizer que Francisco é todos nós? A resposta a esta pergunta não comporta um simples "sim". Apesar da psicanálise colocar mais uma pedra a dificultar a resposta do questionamento epicurista sobre a razão para Deus não acabar com os males, pois não é proposição psicanalítica a imanência do Bem. Entretanto, a julgar pelas perguntas que os epicuristas fazem à divindade e as respostas que crêem obter, o mal não deveria estar presente se Deus é quem é. "Então, se Deus quer e não pode acabar com os males é impotente, o que é impossível em Deus. Se pode e não quer acabar com os males é invejoso, o que é igualmente contrário a Deus. Se não quer e nem pode acabar com os males é invejoso e impotente e, portanto, não é Deus. Se quer e pode o que só convém a Deus; do que derivam os males e por que não os impede?" (Abbagnano, 1986). A pedra a mais que a psicanálise antepõe é a não exclusão do Mal da verdade, desobedecendo a santo Agostinho que afirmava que todas as coisas são boas e o Mal não é substância, pois se fosse substância seria bom (Agostinho, 1980). O Mal é substancioso para a psicanálise. Se a criação foi bondosa, como querem os cristãos, ela não previu a felicidade permanente e o pecado original marcou a existência com a incessante procura... . Há a falta-a-ser. E nessa hiância é reconhecido o desejo. Desejo contraposto ao gozo e mais intenso quanto menos se diz não à dor de existir. Se Francisco não é Sade, é sádico e rechaça para o Outro a dor de existir, mas sem ver que, através disso, ele mesmo se torna o objeto eterno de um imperativo. E nesta posição renuncia à via do desejo, pagando o preço da sua verdade, e clama pelo direito ao gozo relegando à caduquice a dominação do princípio do prazer.

Aí deve estar a misteriosa dor durante o ato sexual que tanto as parceiras consentidas quanto as sobreviventes declararam que Francisco acusava... . A impossibilidade do prazer é que fez de Francisco o Francisco, maníaco do parque. E com isso não se autoriza um nexo causal demonstrável em todos os assassinos seriais da história. É apenas uma interpretação. Se Francisco, então, não é todos nós, todos nós poderíamos ser Francisco. Joga-se com o Mal quando se constrói o sujeito.

Bibliografia:

Abbagnano, N. (1986) Diccionario de filosofía. Mexico: Fondo de Cultura Economica.

Agostinho, santo (1980) Confissões, in Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

Chaussinand-Nogaret, G (1992) Sade existiu? in Amor e sexualidade no Ocidente, edição especial da revista L’Histoire/Seuil. Porto Alegre: L&PM.

Freud, S. (1973) El malestar en la cultura. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva.

Lacan, J. (!988) O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Lacan, J. (1998a) Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia, in Escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed.

Lacan, J. (1998b) Kant com Sade, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Lacan, J. (1998c) O estádio do espelho como formador da função do eu, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

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