PSICANÁLISE E CONTEMPORANEIDADE: A
DOR DA SOLIDÃO
Eliane Mendlowicz
Resumo:
O trabalho
pretende avaliar criticamente o desenvolvimento da psicanálise,
evidenciando sua estagnação metapsicológica e clínica. Sugere
dois fatores responsáveis pela paralização: o estruturalismo e
as próprias instituições psicanalíticas. Além disso, procura
circunscrever um quadro clínico: a depressão-solidão, fruto
das modificações sócio-culturais da sociedade contemporânea.
O que se
pretende desenvolver neste artigo originou-se fundamentalmente de
uma questão. Por que a metapsicologia psicanalítica mudou tão
pouco em relação às novas formas de fenômenos sociais, laços
afetivos, sintomatologias e sexualidades? A psicanálise, se
considerada como uma ciência social, sofre os efeitos das mudanças
históricas, o que exige novas formulações teóricas, revisões
de seus conceitos, reavaliações de sua prática. Consideramos
que, após o advento de Lacan, pouco tem sido
desenvolvido em termos de construção teórica. A comunidade
psicanalítica parece sofrer, nos últimos anos, de uma profunda
estagnação no campo criativo e comenta-se muito sobre o declínio
da psicanálise na modernidade, como se nossa ciência não
fosse compatível com o mundo contemporâneo. Não há espaço
na sociedade ocidental contemporânea para reflexões sutis sobre
formas de viver; a psicanálise não passa de uma
sofisticada elucubração sobre o passado; as fórmulas químicas
são muito mais eficientes como resposta a um transtorno psíquico;
a psicanálise está em vias de extinção; trata-se de uma prática
lenta, cara e pouco eficiente. Estes são alguns dos argumentos
mais ouvidos contra a psicanálise. Entretanto, fala-se
muito pouco da perda do espírito investigador da própria
comunidade psicanalítica.
Hoje
em dia, embora exista um enorme contigente de psicanalistas no
mundo ocidental, cria-se, sem dúvida, muito menos do que
se criou no tempo de sua fundação. Claro que estávamos diante
de uma nova descoberta, havia um enorme campo a ser
desvelado mas, de qualquer forma, estamos muito longe de termos
esgotado o saber sobre o psiquismo humano, sobre as formas de alívio
do sofrimento, sobre o alcance e limites que nossa ciência
pode ter no seu propósito mais libertário.
Embora
a prática psicanalítica de hoje não seja a mesma de 50 anos
atrás, e efetivamente os psicanalistas nos seus consultórios não
pratiquem a psicanálise da mesma maneira que antigamente, pouco
é teorizado a esse respeito. Os psicanalistas reinventam, no dia
a dia de sua prática, a descoberta freudiana mas o que se
observa é um silêncio compartilhado sobre essas inovações.
As descrições clínicas são cuidadosamente cercadas de explicações
rigorosas que se enquadram num determinado referencial teórico
prévio, não dando margem a nenhuma novidade . A valiosa
contribuição lacaniana que preconiza a ética, ao invés da técnica,
como o que fundamenta a prática psicanalítica, não provocou ,
infelizmente, estudos de casos em que intervenções originais de
base analítica, de um ou outro estilo, fossem destacadas por
terem sido capazes de provocar mudanças subjetivas. As
novidades empreendidas nos consultórios, em sua grande maioria,
são guardadas na comunidade psicanalítica como segredos não
desveláveis, como heresias condenáveis. Os analistas estão fóbicos
e o medo jamais foi um bom aliado da criação e da renovação .
Depois das propostas de Lacan, muito pouco foi elaborado sobre as
novas modalidades da prática. Qualquer recomendação técnica
corre o risco de ser enquadrada como um retorno ao campo da técnica,
ao invés do da ética, e o que foi formulado originalmente como
uma perspectiva de maior flexibilização acabou funcionando como
um obstáculo ao surgimento de novas formulações no campo
da prática psicanalítica; dessa forma, não refinamos nosso
instrumental em direção a uma maior eficácia.
Se
a psicanálise, nos seus primórdios, constituiu-se numa ciência
revolucionária, numa profunda ruptura em relação aos saberes
anteriores a ela, hoje em dia ela se comporta de forma muito
menos ousada, diríamos até muito tímida, se comparada não só
com as originalidades dos fundadores de 1900 mas também
com a revolução que não cessa de acontecer com as chamadas ciências
duras. Não há , tudo indica, nesta comunidade científica,
nenhum propósito de conservação de seus conceitos que são
descartados, modificados conforme o avanço de suas pesquisas. O
fato de serem substituídos por conceitos mais apropriados não
implica, de forma alguma, que as descobertas que vinham sendo
consideradas como verdades fossem sem valor, mas o
conhecimento continua a se desenvolver e, portanto, abordagens
mais precisas do mundo serão elaboradas, embora algumas
descobertas fundamentais que atravessam determinados campos
da ciência permaneçam com o mesmo valor.
Por
que se perdeu, na atualidade, um espírito investigador,
questionador das verdades psicanalíticas, embora se saiba que a
psicanálise inscreve-se no domínio de um conhecimento em
constante movimento? Talvez pelo próprio fato de não ter o
estatuto científico de uma ciência dura ela se mantenha tão
conservadora, prendendo-se ao que foi estabelecido,
interpretando e reinterpretando o já escrito, dando um valor
de invariância universal ao que não tem esta dimensão,
deixando escapar a possibilidade de novas conceituações
importantes relativas àquilo que, decorrente das transformações
da história, certamente, afetam o sujeito.
Quando
se conceitua o sujeito, não como o sujeito universal, metafísico,
mas sim, como propõe Freud, constituído socialmente, por
identificações diversas, e em seus desejos , afetos e fantasias,
não há como escapar da relação com seus semelhantes e tais
interações são condicionadas historicamente, e relativas a uma
determinada época, uma cultura diferenciada. Não há como o
homem escapar do seu contexto sócio-cultural, e é neste
contexto que construirá sua subjetividade. O sujeito da psicanálise
é o sujeito do pathos e como tal ele é radicalmente
vítima do desamparo, da ação pulsional, e a cultura
fornece os meios e maneiras possíveis de lidar com o
pulsional, com as angústias primordiais. No decorrer da história
, a cultura vem apresentando múltiplas formas de respostas possíveis
à busca que o homem faz de uma certa felicidade e, tais
respostas dependem, como já observamos, de momentos históricos
diferenciados que proporcionam novas formas de ser e de viver.
O
mundo que vivemos vem apresentando mudanças avassaladoras, e
evidentemente transformações também ocorrem na clínica
psicanalítica, que se depara com novas formas dos sintomas.
Entretanto, o que se observa é uma falta de renovação na
psicopatologia analítica, uma estagnação na metapsicologia,
uma aderência às velhas formas de saber. As pesquisas clínicas
que tanto ocupavam nossos antecessores, e que possibilitaram
construções teóricas elaboradas a partir de exposições de
dados clínicos análogos em vários pacientes - como
encontramos no famoso texto de Freud Bate-se numa
Criança[1], pesquisa que
terminou por levá- lo a formular o masoquismo como a posição
erógena primária no texto O Problema Econômico do
Masoquismo[2] - dificilmente são
encontradas na literatura atual. Contentamo-nos com descrições
clínicas isoladas, pontilhadas, muitas vezes enigmáticas e
inacessíveis. Particularmente neste caso enquadram-se alguns dos
seguidores de Lacan que, ao invés de se orientarem em direção
à invenção clínica, preocupam-se em aplicar operadores
estruturais, entre os quais nunca faltam a castração, o
nome do pai, a fantasia fundamental. Além disso, diante do mais
enigmático, surge a categoria lacaniana do real que, apesar de
todo seu valor, é freqüentemente invocada apenas como uma
pseudo sustentação para nosso desconhecimento, para aquilo que
nós, analistas, ainda não fomos capazes de representar.
As
modificações do mundo ocidental contemporâneo trazem
novos problemas que precisam ser pensados. Paradoxalmente,
embora possamos sustentar uma crítica feroz ao sistema político
globalizante, néo-liberalista, que submete o homem à ditadura
do sucesso financeiro, do poder como valor supremo, esse mesmo
mundo nos possibilitou várias maneiras de vivermos nossas
subjetividades. A modernidade ampliou as possibilidades de
formas de viver mais diversificadas, mas paralelamente essa maior
liberdade também nos expõe a um desamparo maior, a uma solidão
mais difícil de suportar. Temos a nossa disposição novas
maneiras de nos situarmos enquanto seres desejantes, mas ao mesmo
tempo, fomos moldados, criados numa estrutura familiar, em
geral, tradicional o que implica uma proteção incompatível,
muitas vezes, com a individualidade e a autonomia como valores
modernos. A mudança radical dos códigos em que estávamos
imersos, a reviravolta dos valores em que fomos moldados
provocam colapsos psíquicos e nossas clínicas estão
repletas de clientes com esse tipo de sofrimento .
Freud,
em seus textos culturais, não deixou escapar as condições que
favoreciam o aparecimento de quadros patológicos, transformando
suas observações sobre as exigências que a cultura fazia às
pulsões numa construção metapsicológica. Suas elaborações
teóricas não se afastavam da sociedade em que vivia. Defendeu
incessantemente que a teoria psicanalítica é indissociável da
experiência, e que deveria subordinar-se à prática,
diferentemente da filosofia e de qualquer saber especulativo.
Orientou sua ciência em torno deste eixo
investigativo que exigiria continuamente interrogações e reflexões
oriundas da prática clínica e, supôs que desse confronto é
que poderia surgir a possibilidade de reformulações teóricas.
A
psicanálise contribui para pensar o mundo social com suas
categorias de repressão, imaginário, sublimação, em outras
palavras, tem um instrumental capaz de entender os vínculos
sociais além dos chamados contratos conscientes. Embora não se
constitua como uma Weltauschauung, sua metodologia esclarece
componentes das interações dinâmicas da estrutura social e
fornece subsídios para que se possa entender no discurso de cada
um a ação desses componentes do social. Portanto, ela é uma
ciência formada a partir do social, concebendo o
sujeito como constituído em seu fundamento pela relação com o
Outro; por outro lado, o desenvolvimento de seus conceitos
permitiu um maior esclarecimento da organização social e suas
diversas expressões.
Freud,
ao estender suas pesquisas para o campo da cultura, interessou-se
pela origem do vínculo social, pelos mitos, pelas religiões,
pelas práticas e valores sociais que produziam sintomatologias e
não cessou de produzir teorizações. O que pertence à esfera
mais íntima do ser humano também está presente no fundamental
do social. Não há sujeito excluído de seu mundo. O corpo e o
psiquismo são marcados pelos problemas, práticas e modalidades
do social.[3]
O
contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou
de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação,
perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto.
É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem
tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele
busca encontrar satisfação para seus impulsos pulsionais;
contudo apenas raramente, e sob certas condições excepcionais a
psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações
desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente
envolvido na vida mental do indivíduo como um modelo, um objeto,
um oponente, de maneira que, desde o começo a psicologia
individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável
das palavras é, ao mesmo tempo, também psicologia social[4].
Freud,
quando se dedicava ao estudo da cultura, transpunha sua observação
aos campos clínico e metapsicológico, localizando
especificamente o que produzia psicopatologias. Como
observa Octavio Souza[5], desde sua diferenciação
entre neurose atual e neurose de transferência Freud já
circunscrevia a influência de determinadas práticas sexuais
como responsáveis, pelo menos parcialmente, pela produção de
quadros neuróticos. São inúmeros os exemplos que poderíamos
citar das transformações na elaboração freudiana, a partir da
observação dos fenômenos culturais da qual emergiram novas
conceituações teóricas, mais ou menos elaboradas
metapsicologicamente, tais como os conceitos de identificação,
repressão e sublimação, entre outros.
O
cerne do próprio conflito, centro de toda neurose, remete à
articulação e a uma certa oposição entre pulsão e cultura, e
estas duas referências atravessam toda a obra de Freud como
necessariamente constitutivas da subjetividade. Dizemos certa
oposição pois a pulsão não pode ser equacionada a algo
exclusivamente natural ou constitucional, ou mesmo a uma concepção
puramente econômica como querem certos autores. Consideramos a
pulsão como necessariamente articulada à linguagem e constituída
numa relação que envolve necessariamente o Outro. Como um
conceito no limiar do psíquico e do somático, só se constitui
no encontro com o Outro primordial, portador da cultura.[6]
A
construção metapsicológica freudiana, embora as vezes
erroneamente interpretada como tendo um caráter intra-psíquico,
pois o aparelho elaborado por Freud é constituído pelo id, ego
e superego mantendo relações de dependência inter-sistêmicas,
é completamente interligada ao externo, à cultura, pois os
sistemas estão em constante movimento sofrendo contínuas
transformações no contato com o Outro, com o mundo, com as
transformações históricas que ocorrem na organização social
. O conceito de identificação é um bom exemplo para dar
conta dessa remodelação intermitente, característica do
aparelho psíquico tal qual formulado por Freud.
A
invenção psicanalítica se deu devido à insuficiência, na época,
de tratamentos eficazes para as pertubações psíquicas e foi
elaborada, construída em seus fundamentos, passo a passo, a
partir dos achados freudianos na prática clínica, indissociáveis
da cultura de sua época; além de todos os outros recursos tais
como: a mitologia, a biologia, a literatura que Freud sempre usou,
sem o menor preconceito, para avançar na construção do edifício
teórico da psicanálise. Desse modo, qualquer crítica que
considere a psicanálise como uma prática e uma ciência
distanciada das determinações culturais e históricas é no mínimo
ingênua.
Segundo
Chemama[7], Lacan, assim como
Freud, teria incluído a perspectiva histórica na constituição
subjetiva, e apesar de constatarmos a existência da fobia e da
histeria desde a antigüidade, o que poderia nos induzir
erroneamente a considerar o sujeito da psicanálise como um
sujeito desvinculado do campo histórico, essa, certamente, não
era a perspectiva lacaniana que procurava localizar os
pontos de ruptura onde o desejo, o amor e a lei se
manifestaram de uma forma específica, num determinado momento da
configuração social.
Lacan
se interessava pelos movimentos culturais de nossos tempos, mas
Chemama considera que apesar das tentativas de incluir as
transformações em seu trabalho teórico (como, por exemplo, a
questão do feminino), elas aparecem na teoria psicanalítica
de forma pouco consistente; sugere que a ilusão da invariância
na teoria lacaniana, talvez se deva ao fato de só se necessitar
de 4 termos para se situar o sujeito na teoria lacaniana: o
sujeito barrado (determinado pelo inconsciente), o objeto a (causa
de desejo) e os significantes S1 e S2 produtores de sentido
pela diferença entre eles. As diferentes combinações destes
termos resulta nos 4 discursos hipotetizados por Lacan: o do
mestre, da histérica, do universitário, do psicanalista.
Posteriormente, elabora o discurso capitalista. Chemama credita
que a proposta de formalização lacaniana tem o mérito de
oferecer uma resolução lógica que soluciona a oposição
sujeito histórico ou a-histórico.
Voltemos
ao que citamos logo no início de nosso trabalho sobre a questão
das invariantes estruturais na psicanálise, quando sugerimos que
talvez uma das razões que pudesse explicar a estagnação
metapsicológica, que criticamos, seja o fato de tratarmos fenômenos
contigentes como invariantes , temerosos de não alcançarmos o
estatuto científico das ciências duras.
Lacan
pretendeu com sua teorização prosseguir com o projeto científico
de Freud. Procurou esvaziar a psicanálise de um domínio
da técnica substituindo-a pela valorização da ética
como fundamento da prática e, concomitantemente, manteve a
proposta de valorizar o princípio da determinação e da
causalidade psíquica.
Segundo
François Dosse[8], o estruturalismo teve
um êxito espetacular pois apresentou-se como uma
rigorosa metodologia, o que trouxe grandes expectativas em
relação à possibilidade da cientificidade finalmente poder ser
alcançada no campo das ciências humanas e sociais. Foi
através da evolução da lingüística de Saussure, e da
antropologia estrutural, que a metodologia do estruturalismo
tornou-se o suporte que daria a dignidade científica às ciências
sociais. A lingüística teria a função de ciência
piloto servindo de guia para que as ciências sociais
pudessem conquistar a cientificidade tão almejada. O método
estruturalista alcançou grande sucesso na lingüística e
na antropologia com Lévi-Strauss, que na busca de invariantes
estruturais encontrou na proibição do incesto uma invariante
que transcende a diversidade das sociedades. Lacan entusiasmou-se
com o sucesso alcançado por essa metodologia, e creditou ao
estruturalismo a esperança de poder prosseguir o projeto científico
de Freud com um novo modelo de cientificidade, diferente do
positivismo. Indo na contramão de valores antigos, o
estruturalismo valorizou tudo que foi recalcado na história
ocidental: o inconsciente, o conteúdo latente, o reprimido, o
inacessível até então.
Entretanto,
assim como o estruturalismo possibilitou um avanço na psicanálise,
num determinado momento histórico, através das contribuições
de Lacan, talvez também tenha sido um dos responsáveis por sua
estagnação teórica. Evidenciar os impasses do estruturalismo não
significa necessariamente um retrocesso mas sim um questionamento
que visa a renovação da descoberta freudiana. Dentro desta
perspectiva , podemos nos perguntar se o projeto científico de
Lacan, apoiado na metodologia estruturalista, não resultou, em
certa medida, em falsas certezas, dogmatismos, modelos
reducionistas; daí a proposta da revalorização da observação
que vem sendo desconsiderada, a nosso ver, em grande escala, na
psicanálise atual. Não estamos opondo observação a
estruturalismo, mas consideramos que as formulações baseadas na
metodologia estruturalista vem se revestindo de uma dignidade
científica e de um status de universalidade que
impede a renovação psicanalítica.
Apesar
de sua terminologia que poderia evocar o positivismo, a
verdadeira inspiração de Freud o afastava desta tradição,
como se depreende de sua afirmação: A psicanálise não
é uma investigação científica imparcial mas uma medida terapêutica.
Sua essência não é provar nada mas meramente alterar algo[9].
Colocar
a teoria em questão a partir das descobertas da prática foi uma
premissa seguida por Freud; basta lembrarmo-nos da sua desistência
em relação ao princípio do prazer ser o único regulador dos
processos psíquicos primários, ao observar que não era
exatamente isso que vigorava em sua experiência clínica, e dar
uma de suas grandes viradas conceituais ao postular a compulsão
à repetição e a pulsão de morte. Freud, na verdade, estava
sempre pronto a reconhecer seus fracassos conceituais
quando sua prática o obrigava a isso.
As
categorias de Saussure vão funcionar como instrumento
epistêmico ao estruturalismo de forma geral, mesmo levando
em conta as grandes diversidades dado às diferenças dos campos
de estudo. O estruturalismo relega a historicidade a um lugar
mais insignificante, e se com isso a lingüística foi capaz de
se libertar da servidão à história, o que possibilitou sua
autonomia enquanto ciência, por outro lado, implicou uma amputação,
uma perda significativa que se tinha todo um sentido na época,
pois implicava uma ruptura com o evolucionismo em curso, trouxe
conseqüências negativas pois a dialetização necessária entre
os vínculos sincrônicos e diacrônicos foi desconsiderada[10].
Portanto,
quando Chemama considera que tais fatores históricos estão
incluídos na formalização lacaniana dos discursos, embora não
sejam tão visíveis a olho nu pois seu modelo lida com a
combinatória de apenas quatro elementos, acompanhamos Dosse na
opinião de que a preocupação com o rigor e a lógica na captação
e transformação dos dados sociais, para que se construa uma ciência
compatível com o modelo científico vigente nas ciências duras,
tem como possível conseqüência uma teorização de tão amplo
alcance que as nuances e determinações advindas das transformações
sociais se perdem, e tais renovações são determinantes para a
constituição de novas formas de viver.
O
feminino, o nome do pai (constituição superegóica), a oposição
entre amor e sexualidade (decorrência da estrutura edípica) são
algumas das formulações psicanalíticas que merecem toda uma
reconsideração diante das novidades que estão ocorrendo no
campo social.
Um
outro fator, que podemos destacar como responsável pela estagnação
teórica da psicanálise, diz respeito à própria fragilidade da
comunidade científica psicanalítica. Não estão os
psicanalistas e suas respectivas instituições muito mais
ocupados em defender suas concepções, muito mais submetidos a
uma ideologia do tipo individualista (narcísica) do que
preocupados e abertos a reformulações dessas concepções que
possam estar mais próximas das questões que surgem atualmente?
Diante dessa posição, o que se verifica é um
enfraquecimento do fator consensual necessário a uma comunidade
científica. Várias posições e tendências se desenvolvem,
umas contrárias as outras num mesmo campo de saber,
possibilitando a formação de múltiplas psicanálises, cada uma
com sua própria especificidade.
Retomemos
a interessante observação de George Kelly[11],
feita já em 1958: Conforme os anos passam, o freudismo que
merece ser lembrado como uma corajosa posição avançada na
fronteira inicial do pensamento psicológico, está condenado a
terminar seus dias como uma fortificação de dogmatismo em
ruínas. Portanto como acontece com outras reivindicações à
verdade absoluta, a história terá dificuldades em decidir se o
freudismo fez mais para acelerar o processo psicanalítico
durante a primeira metade de século xx do que fez para impedir
esse progresso durante a última metade. As instituições
psicanalíticas que se formam a fim de se defenderem contra as
resistências a um novo pensamento, gradativamente, tornam-se um
obstáculo àquilo que irrompe como novidade no campo psicanalítico.
Ignoram autores importantes, escolhem palavras que enquadram o
psicanalista num lugar determinado e facilmente reconhecível;
enfim esmagam o olhar, a curiosidade, a perplexidade atrás de um
referencial teórico que ao invés de cumprir a função de
revelar, cumpre a de livrar o psicanalista de uma inquietação,
contrariando a premissa básica da psicanálise que gira em torno
da busca da verdade e da diferença.
Ao
valorizarmos as observações clínicas e as transformações sócio-culturais
como guias imprescindíveis para uma renovação clínica e
metapsicológica da psicanálise, estamos nos afastando de uma
tendência atual na psicanálise que desconsidera a preocupação
com a cura, com a eficácia do instrumental de que
dispomos, fazendo eqüivaler, de uma certa forma, a psicanálise
a uma filosofia da existência, onde a anacronia do projeto
psicanalítico não precisa ser questionada.
Quando
destacamos a importância do discurso social contemporâneo na
constituição de novas maneiras de ser, não estamos
adotando a perspectiva reducionista de considerarmos o sujeito
apenas como puro efeito deste discurso ou das possíveis combinações
destes discursos. Algo no sujeito sempre irrompe contrariando
este condicionamento cultural, algo que Freud denominou como
advindo privilegiadamente do campo pulsional e Lacan do campo
real, que numa boa composição com a linguagem contesta,
revoluciona e pode promover novas formas de viver. Rupturas com
as tradicionais formas de viver emergem na história do homem e,
geralmente, começam como movimentos isolados, marginais para
depois serem abraçados pela cultura mais estabelecida. O que
pretendemos é justamente poder destacar o que, no discurso
social, emerge de novo e opera como um complicador da
possibilidade de uma boa articulação entre os campos pulsional
e o ego, sabendo que essa boa articulação se deve sempre a uma
sobredeterminação de fatores e, que é o fracasso dessa boa
articulação que faz emergir determinadas psicopatologias.
Lacan,
ainda no início de suas construções, denomina de declínio da
imago paterna ou declínio do nome-do-pai a diminuição da função
simbólica subjacente à paternidade, declínio esse que menciona
mas não explicita com clareza em sua obra.
Lacan
afirma: ²(...) um grande número de efeitos psicológicos nos
parecem depender de um declínio social da imago paterna. Declínio
condicionado pelo retorno extremo do progresso social no indivíduo,
declínio que se marca sobretudo, em nossos dias, nas
coletividades que mais sofreram esses efeitos:(concentração
econômica, catástrofes políticas(...) Declínio mais
intimamente ligado à dialética da família conjugal, já que se
opera pelo crescimento relativo, muito sensível, por exemplo, na
vida americana, das exigências matrimoniais.[12]
O
que se observa na cultura contemporânea é que, efetivamente, o
pai está cada vez mais ausente nas famílias modernas, e fica
difícil sustentar a função simbólica paterna se o pai da
realidade sai de cena. A mulher fica ocupando inúmeras e
exaustivas funções e emerge uma nova mulher muito
diferente da descrita nos tempos de Freud. Soma-se ao self made
man a self made woman capaz de procriar através de um banco de
esperma ou de, numa reivindicação de autonomia, transformar o
homem em mero portador de sêmen para logo depois ser descartado.
As
relações são quebradas, interrompidas por motivos, muitas
vezes, superficiais, contingentes, caprichosos, desconsiderando-se
susceptibilidades, construções de muitos anos, e o que é
exaltado é a via do gozo. O olhar de admiração se dirige a
quem é poderoso, custe o que custar, haja o que houver. Talvez,
o maior afrodisíaco da atualidade seja o poder. Diante dele, a
sociedade ocidental, caracterizada pelo individualismo, se
curva.
Talvez
possamos escolher a toxicomania , que hoje em dia tomou proporção
endêmica, como um exemplo privilegiado da nova maneira de lidar
com o gozo, na modernidade. No ideal consumista presume-se que o
objeto estará sempre disponível e que se poderá adquirir
objetos compulsivamente e, desta forma, se escapa da falta
pulando, rapidamente, de um objeto a outro, num gozo que não
admite nenhuma interdição . A economia do gozo do toxicômano
implica uma exigência de satisfação, através da qual, cada
vez mais, busca-se um gozo que se pretende infinito; a droga vem
em substituição ao objeto perdido. Tenta-se elidir a castração,
o que é facilitado por um ideal de eu que se apresenta sempre frágil,
oscilante. Sem este ideal nenhum projeto pode ser elaborado,
nenhum sonho construído e não se quer abrir mão de nada. A única
coisa que realmente importa é o gozo imediato.[13]
O
maior interesse deste trabalho, entretanto, incide sobre
outro quadro recorrente na clínica atual, que denominaremos de
um tipo de depressão especial, a depressão-solidão. Em nossa
sociedade, a tradição ocupa um lugar cada vez menos
privilegiado. A falta da valorização de instituições sociais
como o casamento, a família, a paternidade e, também, a
concomitante e súbita transformação dos códigos de convivência,
dos valores aos quais estávamos habituados, lançam o sujeito
num sofrimento psíquico intenso, ficando a mercê do desamparo,
de angústias, de uma enorme tristeza, surgindo, então, este
quadro depressivo (solidão) muito comum na clínica contemporânea.
Na ânsia e exigência de uma felicidade que se quer absoluta,
joga-se fora, com extraordinária facilidade, companheiros de
muitos anos, abandona-se filhos, destrói-se ideais tradicionais,
alicerces simbólicos que funcionavam como aplacadores das angústias
conseqüentes do desamparo humano. O mundo moderno exige uma rápida
reformulação dos códigos e valores nos quais fomos criados,
exigência essa dificílima de ser cumprida, daí eclodem
colapsos psíquicos e intermitentes crises de angústia, seguidas
de muita tristeza.
Freud
em Luto e Melancolia[14]
ligava a depressão à perda de um objeto ou de um
ideal, onde o sujeito identificado ao objeto retirava-se,
de certa forma, do mundo dos vivos. Através da contribuição
freudiana do desamparo e angústia conseqüente formulada em
Inibição, Sintoma e Angústia[15],
tentaremos, como ponto de partida, explicitar este quadro que
isolamos, sob a denominação de depressão-solidão. Neste caso,
estamos lidando com a dificuldade de se aplacar uma angústia e
tristeza que não surgem como resultado da identificação ao
objeto desaparecido, mas sim devido à impossibilidade de
se constituir um objeto corpóreo, consistente, substituto do
Outro primordial. Tal impossibilidade não se deve ao fato
de se estar colado ao objeto que se perdeu, como já
observamos anteriormente, mas à
dificuldade
de manter vínculos afetivos profundos, dificuldade que os ideais
individualistas da contemporaneidade vêm promovendo cada vez
mais.
Estamos
tentando lidar com algo perfeitamente observável na clínica e
na cultura. Não se ama qualquer um, a qualquer hora e de
qualquer maneira e, o objeto amoroso não é adquirível, não
está à nossa disposição. Sabemos, de acordo com a perspectiva
freudiana, que o homem é nostálgico, que o objeto é perdido,
mas não cessamos de procurar objetos e não é qualquer objeto
que pode ocupar e substituir o lugar do Outro primordial. O
objeto amoroso, apesar de sempre aquém dos nossos sonhos,
tem como função, senão resolver, pois isso é impossível, ao
menos aplacar, iludir a rudeza do desamparo. É verdade que o
envolvimento do sujeito com novos ideais, novos projetos, também
pode funcionar como um caminho compensatório da ausência do
substituto do Outro. Entretanto, fomos criados, moldados,
acariciados por esse Outro, sendo o protótipo de toda relação
amorosa a primeira relação, a relação com a mãe, anteparo de
nossas angústias.
Freud
afirma que o fato do ser humano ser prematuro em relação às
outras espécies faz com que seu período de desamparo e dependência
seja muito longo e, como conseqüência, o objeto de quem ele
depende adquire uma importância extraordinária e conclui:
O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações
de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a
criança durante o resto de sua vida.[16]
O
estádio do espelho, formulado por Lacan, também nos serve de
suporte para ampliar nosso esclarecimento da fragilidade do
homem diante da solidão. Esta fase que se dá entre o sexto e décimo
oitavo mês de vida da criança , momento em que o sistema
nervoso ainda se encontra em estado prematuro, pretende explicar
o aparecimento da constituição de um eu. Anteriormente, a criança
não era capaz de diferenciar entre ela própria e o corpo de sua
mãe, entre ela e o mundo externo. Seu júbilo indica que houve
um reconhecimento de sua imagem no espelho. Mas o que é mais
fundamental é que apesar da assunção de sua imagem só poder
ser atingida à medida que alcance um determinado amadurecimento
biológico, para que isso se realize é absolutamente imprescindível
um sorriso, uma aquiescência do Outro, em geral a mãe. É através
do reconhecimento obtido pelo olhar da mãe que a criança
constituirá um eu sempre dependente do olhar do Outro. Portanto,
a criança não se vê somente com seus próprios olhos,
ela depende do olhar de quem a ama.[17] [18]
Esta
imagem especular inclui sempre uma tensão, não há uma
correspondência inequívoca entre o eu e a imagem especular, um
mal-estar se insinua nesta relação, sendo a necessidade de ser
amado eterna no homem. Ele sempre se dirige a alguém em busca de
aprovação, para que se sinta considerado e não seja
invadido pela angústia do despedaçamento e a tristeza do
desamor. Claro que esta necessidade pode adquirir dimensões
excessivamente intensas, a partir de certos percalços do
processo de constituição subjetiva, mas o que queremos destacar
é que o ideal de completa independência do homem é uma ilusão.
A
solidão complica esse processo, a ausência desse olhar balança,
fragiliza o narcisismo necessário a um certo bem estar, tornando
o homem mais vulnerável à angústia e à depressão. O homem não
consegue se separar completamente do desejo do Outro, algum ou
alguém substituto deste Outro é convocado a ocupar este lugar
em nome do desamparo, da angústia e da tristeza. O ser falante não
pode ser equiparado a um sistema fechado, em equilíbrio estável,
independente do mundo em que se insere. Jamais alcançamos a
pretendida maturidade e sua conseqüente
invulnerabilidade.
Não
podemos desconsiderar o discurso clínico e social que invade e
circula, gritando a dor da solidão. O imperativo do gozo que
assola a sociedade contemporânea desconsidera, desqualifica esta
condição essencial do homem e o joga num abandono difícil de
suportar.
Se
a época de Freud foi marcada pela repressão sexual , a nossa,
tudo indica, se caracteriza pela exaltação e privilégio do
sexual em detrimento da tradição, proteção, ternura e, sem juízo
de valor ou qualquer nostalgia, só podemos concordar com Freud
em seu brilhante ensaio sobre a impossibilidade de se superar o
mal-estar constituinte da cultura.
Diante
dessas mudanças nas formas de laço social uma nova clínica vem
surgindo, uma clínica que não se restringe mais à histeria e
à neurose obsessiva. Uma clínica que implica em novas recomendações
técnicas. O psicanalista em sua prática pretende que o
sujeito atinja uma maior alegria de viver, restaurando a prevalência
da dimensão desejante que tende a sucumbir diante de depressões
intensas. Esta tarefa é árdua, alguns pacientes conseguem
outros não e o analista pode se tornar uma prótese, de alguma
forma, um substituto deste Outro.
Freud
afirmou:
A
psicanálise não é um sistema como os da filosofia, que partem
de conceitos básicos, definidos com precisão e procuram com
estes compreender todo o universo, após o que não resta lugar
para novas descobertas e melhores conhecimentos. Ela se prende
mais aos fatos de seu campo de trabalho, procura resolver os
problemas imediatos da observação, avança tateando na experiência,
está sempre inacabada, sempre pronta a deslocar os acentos de
suas teorias ou modificá-las. Como a física ou a química,
admite que seus conceitos mais importantes sejam pouco claros,
que seus postulados sejam provisórios e espera que se definam
com mais precisão graças ao trabalho futuro.[19]
Valorizando esta afirmação de Freud e a clínica com a qual
somos confrontados no dia a dia de nossa prática, esperamos que
as pesquisas psicanalíticas possam precisar, cada vez mais, as
novas formas dos sintomas, caso contrário, estaremos dando razão
a nossos opositores, quando consideram a psicanálise uma prática
em vias de extinção.
Eliane
Mendlowicz - Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy
Doyle - R.J.
Secretária de Ensino da SPID
Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica - PUC - R.J.
e-mail:eliane.mendlowicz@ibm.net
[1] Freud, S.- A Child
is being Beaten: A Contribution to the Study of the Origin of
Sexual Perversions (1919),vol.XVII, S.E.
[2] Freud, S. - The
Economic Problem of Masochism (1924), vol.XIX, S.E.
[3] Enriquez, E. - Da Horda ao Estado-Zahar.R.J.1991.
[4] Freud, S. - Psicologia das Massas (1921),vol XVIII, Ed. Bras.- pág.91
[5] Souza, O. - A Metapsicologia e as Opções Éticas dos Psicanalistas.in: Cultura da Ilusão.Contracapa.R.J.1998
[6] Rudge,A.M. - Pulsão e Linguagem -Esboço de uma concepção psicanalítica do ato-Zahar.R.J. 1998.
[7] Chemama, R.- Um Sujeito para o Objeto.Goldenberg, R. (Org.) in:Goza! Ágalma. Salvador. 1997.
[8] Dosse, F. - História
do Estruturalismo. -Ensaio. S.P. 1993.
[9] Freud, S. - Analysis
of a Phobia in a Five-Year-Old Boy(1909).vol.X. S.E. pág104.
[10] Dosse, F. - História do Estruturalismo. -Ensaio. S.P. 1993.
[11] Citado em Barros, C. P. Conceitos Termodinâmicos e Evolucionistas nas Estrutura Formal da Metapsicologia de Freud. -In: Cadernos do Tempo Psicanalítico. - SPID. R.J. 1998.
[12] Lacan, J. - Os Complexos Familiares.Zahar. R.J.1997. pág.60
[13] Melman, C. -Alcoolismo, Delinqüência, Toxicomania. -Escuta.S.P.1992.
[14] Freud, S. -
Mourning and Melancholia (1917[1915] ).vol.XIV. S.E.
[15] Freud, S. - Inhibitions, Symptoms and Anxiety (1926[1925] ). Vol.XX. S.E.
[16] Freud, S. - Inibição, Sintoma e Angústia. Vol.XX. Ed. Bras.pág.179
[17] Lacan, J. - O Seminário. A Transferência.livro 8. Zahar. 1992
[18] Chemama, R. - (org.)Dicionário
de Psicanálise. - Artes Médicas . P.A.1995.
[19] Freud, S. - Two Encyclopaedia Articles-Psychoanalysis, The Libido Theory. (1923[1922] ). S.E. págs:253,254.
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