Beijar a tua boca e depois morrer
FERNANDO GABEIRA
Artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo em fevereiro 1999
Era Carnaval, meu tio cantava: "Ai, morena, seria o meu maior prazer, passar um Carnaval contigo, beijar a tua boca e depois morrer". Meu pai dizia: "O Brasil está à beira do abismo".
Anos depois, no exílio, o Brasil continuava à beira do abismo, e os jornais europeus traduziam o Carnaval em número de mortos. Tínhamos a impressão de uma batalha sangrenta. A canção cantada pelo tio previa a morte, no seu último verso, mas os beijos apaixonados, esses desapareciam nos telegramas sinistros que chegavam do país.
Hoje é Carnaval de novo e, de novo, espero que os beijos apaixonados suplantem as mortes, embora nunca existam estatísticas confiáveis para dar conta desses pequenos incidentes amorosos.
Entre todos os fatores que contribuem para aumentar a violência, a massificação das lutas marciais no Brasil tornou-se um dado preocupante. As artes marciais deveriam chegar aqui como uma filosofia oriental. Foram reduzidas a uma técnica utilitária.
Jung bem que previu esse processo, mostrando que a filosofia oriental e todas as suas artes seriam deformadas pelo Ocidente pragmático. O que era impossível prever é que isso se transformasse num fenômeno tão próximo, revelando essa trajetória paradoxal na mesa vizinha do bar.
Na zona oeste do Rio existem cinco academias de artes marciais legalizadas. Mas há cerca de 300 clandestinas.
Funcionam no fundo de quintal, com um simples tatame e um quimono para o instrutor. O que era uma filosofia de vida vai se transformando, nessa longa e selvagem cadeia de transmissão, numa arma perigosa, com formas orientais e o recheio competitivo do Ocidente.
Tudo isso poderia ser mais bem regulado se tivéssemos atentado para a advertência de Jung. A pura regulamentação não resolveria os problemas, mas pelo menos reduziria suas consequências. Imaginem um teste psicológico aplicado nos professores, de seis em seis meses, como previu o deputado paulista Tuga Angerami, num projeto não votado ainda. Já nos daria um termômetro, um posto de observação, pelo menos.
Novas leis não adiantam muito se não houver uma transformação cultural. Antigamente, quando dois alunos brigavam em público, ficavam isolados, observados à distância pela multidão. Hoje, num espaço em que se concentram mais de mil jovens da classe média, uma briga é um estopim que transforma a rua numa arena esquadrinhada por mesas, cadeiras e garrafas voadoras.
É um quadro que não se muda só com frases bem-intencionadas, amai-vos uns aos outros etc. Freud riria no seu túmulo, pois grande parte desses conflitos nasce precisamente do amor torto, confuso, reprimido, mas amor.
Uma olhadinha nas estatísticas mostrará que essas brigas nascem de ciúmes. Alguém se aproximou da namorada de alguém, alguém disse coisas obscenas num canto de bar, a caminho do banheiro. Isso basta para motivar uma vingança, queixo, nariz e dentes partidos.
Tudo se passa como se as mulheres fossem incapazes de lidar com o assédio de outros homens, como se a tática de dissuasão estivesse sempre no castigo físico do outro, quase nunca na capacidade delas de escolher seu parceiro, independentemente das cantadas.
Num país em que ainda existe o crime de sedução, em que alguém pode ser preso por dormir junto, prometer casamento e não cumprir, o grande avanço social das mulheres não chegou a ser processado pelas instituições e muito menos por grande parte dos jovens.
A insegurança masculina se perpetua nas boates noturnas, onde brigas provocaram não só morte como invalidez permanente. O cara que está aos seus pés ensanguentado e disforme não vai transar com sua mulher porque você o colocou a nocaute. Mas o que acontecerá com ela nas milhares de situações em que você não está perto para derrubar os pretendentes?
Mas e se as mulheres, no lugar de motivo, forem apenas um pretexto? E se jovens bonitos, atléticos, carecas ou não, buscassem constantemente jovens bonitos e atléticos para se baterem nas ruas? O que fazer com essa delicada evidência, como deslocar para outro curso todo esse amor transviado?
Isso o Ocidente poderia melhorar nas artes marciais e, é claro, não foi objeto específico da meditação de Jung, preocupado em enfraquecer a temática sexual. Se o Oriente nos ensina calma, contemplação e equilíbrio, talvez fosse importante dialogar com ele sobre os fundamentos dessas virtudes.
Quantos hematomas, clavículas quebradas e fraturas expostas não poderemos economizar com uma transformação cultural ampla? Existe disposição para contrariar o rumo das coisas, ou o laissez-faire da economia torna-se válido também para as relações sociais?
Tiazinha, de máscara, chicote e um biquíni bem cavado, é o novo símbolo sexual da juventude, a julgar pelo que vejo na mídia. Talvez funcione num sentido favorável, banalizando e glamourizando o sadomasoquismo, transformando-o numa brincadeira de salão. Era um pouco o que faltava.
O primeiro sucesso do Gerasamba aludia ao ato sexual e terminava com o grupo embalando uma hipotética criança. Depois emergiram a dança da garrafa e a avassaladora invasão de bundas, reconciliando-nos, de certa forma, com nosso passado de degredados correndo atrás de índias e escravas negras.
O sadomasoquismo de Tiazinha é um novo pacto para domesticar e tirar algum prazer dos impulsos agressivos. Mas Tiazinha é uma só morena para muito português.
Naqueles carnavais, o tio cantava: "Ai, morena, beijar a tua boca e depois morrer". Esse morrer dele era de puro êxtase, um prazer transbordante. E meu pai dizia: "O Brasil está à beira do abismo". Hoje daria talvez uma boa dupla sertaneja: beijar a tua boca e depois morrer à beira do abismo.
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