O Pai na Instituição

Isabel Marazina

Em um trabalho anterior, de l998, tomei o caso de uma intervenção na situação aflitiva de um pequeno interno na Unidade de Menores Abandonados da FEBEM, como um exemplo da possível articulação de uma escuta psicanalítica com os recursos de uma equipe de trabalho interdisciplinar dentro de uma instituição, seja ela de tratamento ou de cuidados.

Em este caso, se tratava de uma criança de menos de dois anos que, em virtude de uma historia particularmente conturbada e um defeito visual que o fazía particularmente pouco desejável, caminhava a largos passos para a solidificação de um autismo sem que a equipe que o tinha a seu cargo pudesse achar um caminho sequer de entendimento da situação da criança. Esse caminho pôde ser traçado a partir do espaço de supervisão onde estavam sendo discutidas questões teóricas e clínicas que lhes serviram como ferramentas de identificação e abordagem do problema.

No mesmo ano, se apresentou a possibilidade de um trabalho chamado de "reciclagem" com monitores das Unidades de Menores Infratores do chamado "Quadrilátero" ,conjunto de Unidades da mesma instituição FEBEM, sito no bairro de Tatuapé. Essas unidades são destinadas á internação de menores infratores de todo tipo, com as finalidades de recuperação e tratamento , através das chamadas medidas socio-educativas. Este trabalho, que foi solicitado a dois profissionais na qualidade de psicanalistas e analistas institucionais, fazia parte de un programa que a FEBEM queria desenvolver no sentido da requalificação de seus agentes, considerados pelo discurso social e o da própria instituição como pouco qualificados para as funções que desenvolviam.

Por entender que nossa experiência clínico-institucional poderia contribuir ao processo, aceitamos o encargo sob a condição que pudéssemos criar um espaço de reflexão em torno das noções teóricas que ,obrigatoriamente, deveriam ser passadas. Quem nos solicitava para este trabalho era outra instituição,,a FUNDAP ( Fundação para o

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Desenvolvimento Administrativo), que trabalha como elo de conexão entre as diversas instituições do Estado e suas demandas de formação e um amplo leque de profissionais e serviços dentro da linha de formação e aperfeiçoamento. Geralmente, os serviços oferecidos - e esperados- são cursos de reciclagem sobre temas que as próprias instituições solicitam sem maiores questionamentos em relação a conteúdo ou propriedade da temática por parte dos técnicos que pensam esses programas. É necessário ressalvar que grande parte de essas" encomendas" se gestionam a partir de interesses políticos , o qual faz que as oportunidades de pesquisa em relação as reais necessidades institucionais sejam bastante limitadas.

Cientes dessa situação, a proposta de instalar espaços de reflexão junto com as aulas teóricas apontava a emergência e elaboração dessas demandas reprimidas. Ao mesmo tempo, isto criava uma tensão entre os técnicos da Fundap que acompanhavam o trabalho, já que ele saía dos moldes conhecidos,- provocando neles profundas ansiedades persecutórias- mas por outro lado , era geralmente assinalado pelos participantes como os espaços mais significativos do trabalho realizado. A equipe que conformamos sabia que parte da sua tarefa era lidar com essa tensão instalada, mais considerava que era um preço possível de pagar para poder realizar o trabalho.

A título de marco referencial , creio importante relatar a diminuição significativa, tanto na esfera estadual quanto na municipal dos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos junto a instituições da rede pública de Saúde , de assistência ao Menor, Saúde Mental, etc. Estes trabalhos, que faziam parte de uma proposta política de investimento na área pública, foram sendo excluidos na medida em que a concepção que os sustentava perdeu espaço de gestào publica. Assim, se extinguiram ,por exemplo os,convênios que garantiam a supervisão do trabalho de equipes multiprofissionais em Hospitais de Día, Centros de Convivência, Centros de Referência de Saúde do Trabalhador, Ambulatórios de Saúde Mental, de Referencia ao trabalho com AIDS, Núcleos de Atencão Psicossocial, e muitos outros. A equipe que convocamos para este trabalho era formada por psicanalistas que tinham tido participação constante nesta proposta , entendendo a psicanálise no sentido da sua extensão .

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Entendíamos que o espaço que abria esta demanda por parte da Fundap era importante ,já que dava possibilidade de continuar pensando em uma clínica psicanalítica ampliada. Em que medida os nossos operadores poderiam nos ajudar a pensar e intervir em uma situação aparentemente tão afastada do contexto clínico?

Como a proposta do curso era falr sobre Grupos, o dispositivo montado consistiu em cinco encontros: nos dois primeiros, se proporia trabalhar os conceitos de instituição total, de grupo e sua diferença com o conceito de bando, tomando como referência a relaçào líder-massa a partir do texto freudiano . No terceiro encontro foi proposto um espaço de elaboração dos conceitos trabalhados e de que maneira eles poderiam ser úteis nas suas práticas institucionais. Os temas foram escolhidos a partir da demanda do curso, que pretendia fornecer instrumentos para pensar os grupos, e nossa percepção da situação institucional, que conhecíamos a partir de vários trabalhos na área. O quarto e quinto encontros, eram elaborados a partir das questões que surgiam no espaço de reflexão, tentando aproximar alguns elementos teóricos ,mais, fundamentalmente, levando em conta que os conteúdos que poderiam aparecer exigiriam uma elaboração cuidadosa . Sabíamos que a situação institucional era muito explosiva .Nos parecia que o próprio encargo do curso era um analisador da surdez das autoridades em relação a seus agentes institucionais , uma relação de compromisso entre o discurso explícito- da formação- e um verdadeiro descaso que sumia os agentes institucionais em uma orfandade simbólica tão aguda quanto a dos menores que "cuidavam". Entendíamos que se perfilava desde aí um Outro peculiar.

O trabalho consistia em encontros com vários grupos de monitores, de uma semana cada um. Os monitores provinham de varias unidades do Quadrilátero , algumas das mais "pesadas", outras com um regime mais leve, onde se trabalhava com uma ótica menos repressiva. Essa composição dos grupos, que foi realizada pela Fundap, de acordo também as condições de trabalho dos monitores, resultou muito rica , já que em vários momentos, os discursos resistenciais , que apontavam a uma impossibilidade de tratar dos menores de outra forma que a repressão, eram desmontados pelos próprios companheiros, que apontavam saídas diferenciadas , questionando se não havía um compromisso alí com algo que eles não entendiam mais que queriam pensar.

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Este trabalho , que sob o rótulo de curso adquiriu as caraterísticas de una intervenção institucional, teve momentos de muita intensidade . A equipe se reunía semanalmente, alem de se comunicar diariamente para elaborar juntos cada encontro. Nossa compreensão era clara: estávamos trabalhando com um grupo de alto potencial persecutório . Foi difícil o entendimento dos monitores de qual era o nosso lugar. Nos viam identificados com a Direção, que com poucas exceções, aparecia nas falas ocupando um lugar de falência paterna. A medida que o trabalho se desenvolvia ,a constatação da diferença entre a posição da Direção e a dos membros da equipe permitia que as falas fossem mais claras, assim como ia se perfilando mais claramente o espaço que lhes era reservado no contexto institucional. A pesar de vários entre eles se referir como educadores, e isto era possível de sustentar em algumas das unidades menos repressivas, em todos os grupos aparecia a temática da missão repressiva como a fundamental a cumprir, e o conflito com o discurso explícito da instituição sobre medidas socioeducativas. Um dos elementos que nos pareceu ajudar a fazer a diferença entre o lugar da Direção e o nosso foi -eles expliicitavam isso repetidamente- a posição de escuta atenta , que implicou um esforço de entendimento de inúmeras referências a cultura de dentro, que eles faziam questão de nomear, validando um saber que fazia possivel a troca connosco.

Curiosamente, quando se lhes propunha que pensassem como seria a instituição ïdeal-e usávamos esse termo com toda intenção, eram poucos que conseguiam propor outro modelo , a pesar de ter muitos deles, variados elementos de discussão e experiência para pensa-la. O que se repetia era o mesmo modelo institucional que os fazia sofrer , o mesmo espaço exíguo do qual reclamavam incessantemente.

Aparecia por um lado, uma clara identificação com os menores internados. Eles também se viam como objetos descartáveis , á margem de uma possível qualificação profissional e social. Muitos deles falavam que se envergonhavam de dizer que trabalhavam como monitores da FEBEM, mais que não iriam achar emprego em outros lugares, já que não tinham qualificação adequada para outra coisa. Viam as tentativas de

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reciclagem que a instituição propunha como uma maquiagem perversa, já que na maior parte das vezes nem eram consultados sobre os cursos que eram obrigados a fazer, enquanto sabíam que sair da unidade era condenar aos companheiros a uma situação de perigo, já que a falta de pessoal fazia com que mesmo com a equipe inteira , a duras penas pudessem trabalhar, em função da superlotação de internados.

Por outro lado, a identificação com os internos fazia que nào pudessem se distanciar deles, e observavam com rivalidade e inveja algumas "prebendas "que os menores receviam, tais como educação, saúde ou as constantes requisições da Pastoral e outras organizações em prol da aplicação do Estatuto. Perguntavam:

"quem é que nos protege deles, a quem podemos recorrer quando nos ameaçam, ou nos tomam de reféns?

"todo o mundo lá fora pensa que os menores são anjos, mai ninguém vem para ver como é viver perto das gangs organizadas e ter que se impor . A gente vive com medo de que nos aconteça algo e as nossas famílias"

""cómo se pode botar ordem em 70 adolescentes que não tem nada a fazer ,contando com 5 monitores somente?

Indagados acerca da associação de funcionários as respostas eram de um ceticismo total . Eles esperavam da associação, em momento algum faziam parte dela , e ficava claro que essa associação funcionava nos moldes penitenciários, com pouca possibilidade de gestão democrática., mas que também os próprios monitores nem pensavam que algo poderia mudar , ou que eles poderiam encarar essa mudança.

O conceito lacaniano de gozo nos foi útil para desenhar a posição em que se encontravam. O Outro que se servia deles adquiria diversas feições: por momentos eram os diretores, que insistiam em "manda -los á frente" em situações de extrema tensão que se resolviam com castigos como único recurso possível, e depois os sancionavam.

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Em outros momentos , o Outro era a sociedade que os colocava como os guardiões do resto que ela pröpria produzía e os olhava com desprezo. Nada era possível de modificar se esse Outro não o legislasse: a eles só cabia continuar se oferecendo como corpos em sofrimento: era constante o relato de somatizações de todo tipo, algumas graves, como úlceras que reabriam ciclicamente.

Em todo momento, estávamos atentos ao trabalho com essa posição gozante, sem deixar de lado os cuidados para não aparecer como outros Outros, que superegoicamente lhes imporiaim novas formas de gozo. Entendíamos que devíamos ajudar a pensar em que os deixava paralisados sem por isso desconhecer quais os limites da possibilidade de modificação de uma situação institucional verdadeiramente perversa.

Porqué pensei em intitular este trabalho ""O Pai na Instituição"? Possivelmente, porque esta experiência com os funcionários da FEBEM nos mostra o que resulta de um funcionamento onde poderíamos falar de uma recusa da função paterna. Creio importante destacar que quando o trabalho se desenvolveu, há mais ou menos um ano, saímos com a impressão que faltava muito pouco para que a instituição implodisse. Os tristísimos acontecimentos recentes confirmam as nossas piores expectativas.

`Podemos falar de um funcionamente social excludente, no pior estilo da segregação que o trabalho de Carlos Guzzetti expõe com clareza, quando fala do modelo do campo de concentração. Os pobres, os loucos, os menores de rúa, os chamados restos sociais são depositados, excluídos e abandonados em gigantescos presidios, não importa o eufemismo com que se os nomeie , seja ele hospital psiquiátrico, estabelecimentos de recuperação, etc. O que me interessa pensar, com os nossos operadores psicanalíticos , é como essa lógica de exclusão vai desenhando posições muito parecidas nas subjetividades que fazem parte de estos espaços, seja qual seja o lugar institucional que se ocupa.

Goffmann fala das instituições totais e do mecanismo de sustração da identidade ao que são submetidos os internos que em ela ingressam, de forma a desubjetivá-los e torná-los dóceis aos mandatos institucionais.

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Mas é importante refletir se esse discurso institucional, que faz as vezes de lugar paterno, não opera tambem nos agentes institucionais, que tentam recuperar um lugar que os diferencie através de movimentos de extrema violência- diria espasmódicos- em relação aos seus tutelados. Quando me refiro a violência, não estou me referindo somente a castigos físicos, senão tambem a uma serie de mecanismos de depreciação, como a infantilização , o descrédito, a demonização, que inevitavelmente acabam caindo em cima dos próprios agentes que os exercem.

E necessário pensar se estes adolescentes, que refletem o profundo malestar de nossa civilização , não são confirmados em suas posições por uma lógica institucional que lhes ensina que a única forma de não ser devorados é ocupar o lugar do Outro, seja de forma individual ou como bandos fascistas que exercem a sua dominação sobre os mais fracos, reproduzindo a segregação ad infinitum. A recente rebelião nos deu exemplos gritantes e trágicos , tanto na figura dos menores assassinados pelos próprios companheiros, quanto na reportagem televisiva realizada um dia depois da rebelião, onde o Governador de São Paulo declinava qualquer posição de responsabilidade do Estado como tutor desses menores. Requisitado em relação as possíeis indenizações ás familias dos internos mortos, ele respondeu "Se a Justiça considera que isso é viável, o Estado terá que pagar".

Porque apresentar um trabalho realizado em esse campo, em um encontro onde debatemos as questões da psicanálise da nossa época?

Em primeiro lugar, porque foram operadores psicanalíticos que nos permitiram uma condução do trabalho onde apontássemos sempre á emergência de uma posição de sujeitos, mesmo em condições tão duras quanto aquelas pelas quais estes grupos passam. A colocação que mais efeito produziu foi aquela que indagou se, em todas as queixas que colocavam não havía uma dimensao heroica que satisfazia secreta e profundamente e os colocava em um lugar de exeção. A partir de este entendimento, abriu-se a possibilidade de pensar de qué lugar se tratava em vários participantes, frente a surpresa da própria equipe, que interpretou essa surpresa como uma contaminação do mesmo lugar de objeto de gozo que tentava desmontar.

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Em segundo lugar, porque entendo que muitas das indagações que se nos apresentam de forma urgente e aguda em este tipo de trabalho, são valiosos analisadores da clínica que realisamos em outros espaços, nos quais muitas vezes nos acreditamos a salvo de esse malestar, tão dramáticamente exposto na clínica institucional. Hoje, por exemplo, nos enfrentamos , em nosso trabalho cotidiano, com uma significativa redução no número de sessões que os pacientes podem sustentar, questão que configura todo um desafio a nossa estratégia clínica. Essa questão já está colocada faz muito tempo para o analista que pretende desenvolver uma escuta em instituições, e tem sido origem de fecundas produções e debates que não tem sido possível de serem revertidos ao seio das escolas de formação psicanalítica.

Cómo lidar com situações cada vez mais urgentes, no tipo de quadros que chegam hoje até nossa clínica, nas novas patologias, nas configurações que se apresentam como resultado de esta posição paterna que a história da instituição FEBEM nos coloca de maneira tão brutal? Por outro lado, entendo que a posição de um analista passa por reconhecer os sintomas de seu tempo e tentar cercá-los alí onde eles se apresentam, sob a forma do discurso singular de um paciente, de um grupo humano, das instituições que essa cultura produz.

Isabel V.Marazina
E-mail:
Imarazina@nox.net


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