infantil precoce: reflexões
sobre a questão da etiologia e do tratamento*
José Martins Canelas Neto
* Trabalho apresentado
no painel do dia 9.8.97 do Congresso Internacional sobre autismo
e psicoses infantis, realizado em São Paulo de 8 a 10 de agosto
de 1997.
Reflexão sobre a etiologia e o
tratamento do Autismo infantil. Situa a questão etiológica
dentro de um campo epistemológico não-linear, dinâmico, onde há
espaço para pensar uma relação entre psicanálise e
neurobiologia. Aborda a importante contribuição da investigação
psicanalítica desses casos, salientando dois aspectos metapsicológicos
conceituados a partir do trabalho psicoterápico: a
figurabilidade e a produção de formas sensuais de base.
Em 1943, L. Kanner
publica a primeira descrição clínica do Autismo Infantil
Precoce, na qual relata onze casos, sem distúrbios neurológicos
associados. Aliás, Kanner salienta o fato de que eram crianças
com aparência de boa saúde física.
Após (1950-1970) os
trabalhos iniciais de Kanner segue-se um longo período de
discussões nosológicas quanto à especificidade do autismo e
quanto a sua diferenciação da noção de esquizofrenia da criança.
Esta última sendo, nessa época, uma noção que tendia a
englobar diferentes patologias.
A partir das classificações
mais recentes o autismo infantil passou a ser reconhecido como
entidade específica (a partir do D.S.M. III, em 1980). Com base
num eixo psicopatológico, centrado na noção de desenvolvimento
da criança, o autismo infantil está incluído no grupo dos
Transtornos Globais do Desenvolvimento. Com a utilização desses
critérios, observamos atualmente uma tendência globalizante que
reúne no diagnóstico de autismo uma série de casos, muitas
vezes bastante diferentes. Ocorre atualmente com o diagnóstico
de autismo algo semelhante ao que ocorrera com o de esquizofrenia
infantil. Esta é uma das causas da grande variação da prevalência
do autismo infantil, segundo os diferentes estudos publicados até
hoje. Como mostra E. Fombone1, ocorre uma variação
de prevalência segundo os diferentes estudos que vai de 1 a 20 (0,7
a 13,9/10.000)! Como nessas classificações a ênfase é
colocada na atribuição de pontos, caracterizando traços
particulares do comportamento, desaparece a figura original
descrita por Kanner. Por outro lado, estudos a longo prazo (longitudinais)
confirmam a existência tanto do quadro descrito por Kanner, como
de casos de autismo com lesões cerebrais comprovadas ou muito
prováveis.
Como então explicar que uma
disfunção psíquica pode se organizar da mesma forma em
contextos tão diferentes? Esta é a pergunta da qual parte R.
Diatkine em seu artigo sobre o autismo infantil2, que
é fruto de uma longa experiência clínica de acompanhamento
desde os primeiros casos descritos na França no final dos anos
quarenta, no serviço de J. de Ajuriaguerra. Gostaria de
salientar a importância dessa dimensão temporal na reflexão
desse autor, pois quando observamos mais de perto alguns
pacientes diagnosticados autistas na infância e que puderam
beneficiar-se de um acompanhamento psiquiátrico estável e
coerente, vemos que esses sujeitos, que evoluíram de maneira
bastante positiva, apresentam uma série de particularida des de
seu funcionamento psíquico que nos deixam perplexos. Abordaremos
mais abaixo essa questão.
Voltando à questão de R.
Diatkine Como uma disfunção psíquica pode se
organizar em contextos tão diferentes? penso que é
interessante abordá-la aqui do ponto de vista da influência do
pensamento etiológico em psicopatologia. As hipóteses etiológicas
têm um grande peso na constituição das entidades clínicas.
Por exemplo, quando falamos em transtornos do desenvolvimento
estamos supondo que existe um desenvolvimento natural que seria
alterado por fatores patogênicos. Logo, a entidade clínica se
constitui a partir de uma hipótese etiológica neurobiológica,
por exemplo. Durante muito tempo, e ainda hoje, ficamos presos à
dicotomia entre organogênico e psicogênico. O exemplo do
autismo infantil parece-nos interessante para mostrar o quanto
essa divisão nos afigura hoje em dia desnecessária, pois senão
como explicar a constituição de uma mesma síndrome clínica em
contextos clínicos tão diversos?
Os estudos sobre as relações
precoces do bebê com a mãe, assim como certos conhecimentos
recentes da neurobiologia, mostram o quanto os processos
maturativos do sistema nervoso estão em íntima relação com o
aporte do meio, sobretudo o da relação com a mãe e o exemplo,
trataria as mensagens sensoriais que recebe sob um modo que o
autor descreve como analógico e inconsciente.
Esse nível inconsciente de estocagem das informações
sensoriais não pode ser diretamente comunicado ao nível
consciente dos adultos, pois o processo de funcionamento no início
da vida se faz de maneira analógica. Com o tempo, e através da
relação com o outro, os modos associativos do funcionamento
neurofisiológico se desenvolvem, aparecendo novos circuitos
cerebrais não-analógicos.
Os circuitos analógicos são
destinados a reconhecer formas e sons, já tendo sido
desenvolvidos em computadores e, para Tassin, são uma imagem
neurobiológica do conceito de inconsciente. Os circuitos
associativos implicam no desenvolvimento dos processos de
simbolização, do pensamento, que só poderiam surgir a partir
da relação com o outro.
Outros trabalhos5
mostraram que a relação com a mãe tem um papel fundamental no
desenvolvimento das estruturas cerebrais do bebê. A mãe
desempenha um papel regulador dos sistemas de respostas específicas
fisiológicas e comportamentais do bebê (estímulos tácteis,
visuais, sonoros e olfatórios, distensão gástrica, temperatura,
fatores do leite etc.). Quando o bebê é separado da mãe, toda
essa influência reguladora é perdida e ocorrem mudanças em
cada um dos sistemas liberados de seu regulador. Em experiências
com animais, uma separação prolongada leva a uma série de
alterações de parâmetros fisiológicos, conduzindo a uma
desregulagem dos sistemas devido à perda dessa função
reguladora da mãe. A interação entre a mãe e o recém-nascido,
juntamente às emoções ligadas às regulagens e desregulagens
durante a evolução da relação precoce, constituem as experiências
básicas que permitirão a constituição das primeiras
representações mentais. Outros trabalhos sobre o
desenvolvimento do bebê falam da noção de conforto
da relação, a qual tem uma base biológica nesses sistemas de
regulação fisiológica que são oferecidos pela mãe. Nesse
sentido é necessário uma certa harmonia sincrônica
entre mãe e recém-nascido.
J. D. Vincent6,
pesquisador da Unidade de Neurobiologia Integrativa do INSERM,
França, estudando a biologia das emoções, base da vida afetiva,
salienta que o recém-nascido já nasce com esquemas inatos de
reconhecimento do rosto humano, da voz e de estruturas sonoras.
Porém a integração entre uma série de sensações do interior
de seu corpo como as de prazer ou outro afeto e a
representação de superfície ligada a elas (por exemplo, o
sorriso) necessita da passagem pela mãe (o sorriso expresso pela
mãe nesse momento em que o bebê sorri). Vincent diz:
... é importante notar que a
criança apreende, através do afeto, o que sua mãe está
sentindo e, graças as suas representações emocionais, que
constituem os mapas de sinalização de seu corpo apaixonado, a
criança compreende não somente o rosto, mas o corpo de sua mãe;
é através dessa troca, feita na superfície, que é troca entre
corpos, que se constitui o desenvolvimento intersubjetivo.
Podemos ver que certos
pesquisadores em neurociências hoje começam a mostrar as bases
biológicas das relações mãe-bebê e da intersubjetividade. A
separação entre, de um lado, fatores etiológicos orgânicos e,
de outro, fatores psicológicos é somente uma construção de
nossa mente que pode ter sua utilidade prática, mas que não
parece abarcar a profunda inter-relação entre o desenvolvimento
biológico do bebê e a relação que se desenvolve com o outro,
principalmente nos primeiros meses de vida.
Diante desses elementos provindos
de diferentes abordagens neurobiologia, estudo das interações
mãe-bebê, psicanálise da criança não podemos nos
satisfazer com um pensamento etiológico linear para explicar as
causas da síndrome de autismo infantil. Para tanto, tentarei
centrar meu propósito sobre uma visão multifatorial e dinâmica
da constituição e da maior ou menor estabilidade de um
determinado quadro de autismo infantil.
Quando, diante de uma dada criança
apresentando um quadro de autismo infantil, nos questionamos
sobre qual é o peso do indivíduo e qual o do meio ambiente ou,
em outros termos, do inato e da experiência, na constituição
daquele modo de funcionamento mental, naquele momento evolutivo,
nos deparamos sempre com a existência de todo um jogo de
circunstâncias, variadas e próprias àquela criança e seu meio
familiar. Por isso é difícil aceitarmos a idéia de uma
etiologia linear, seja ela de natureza biológica ou psicogênica.
Algumas questões gerais podem
ser colocadas no sentido de aprofundar um pensamento etiológico
multifatorial e dialético: como o organismo tolera determinadas
configurações atípicas desses múltiplos fatores que influem
no desenvolvimento psíquico? Quando e como se constituem
organizações persistentes no tempo e danosas para o sujeito?
R. Diatkine7 propõe
um modelo do desenvolvimento psíquico do bebê que me parece
bastante interessante por incluir o funcionamento psíquico (consciente
e inconsciente) da mãe. Ele nos faz notar que os cuidados
maternos não se limitam somente às satisfações das
necessidades vitais, mas a mãe estimula e acalma, está presente
ou ausente, responde ou não, brinca com o corpo do bebê num
jogo dramático o qual é mais significativo que cada um
dos elementos que o compõem. O bebê é fonte de alegrias
e de preocupações para a mãe, ela fala com ele e nessa interação
há um discurso que não é sério, que não é
informativo, articulando gestos precisos. Dessa maneira, diz
Diatkine, constitui-se um envelope narrativo que se
desenvolve no tempo. Este discurso materno tem um aspecto poético
e lúdico. O bebê é então confrontado, desde o nascimento, a
esse duplo registro na relação com a mãe: satisfação das
necessidades e discurso poético. Essa confrontação pode ser
mais ou menos harmônica ou desarmônica.
Dentro dessa concepção ontogenética,
cada experiência não é a réplica das experiências anteriores,
mas se trata de uma evolução não linear, onde o sujeito
atravessaria crises devidas a desequilíbrios do
movimento evolutivo. No início do segundo semestre, graças a
uma maior especialização da reação à mãe, proporcionada por
um desenvolvimento quantitativo das representações
polissensoriais da relação com a mãe durante os primeiros
meses, o bebê vai entrar num desses períodos de crise mais
turbulenta, o qual, em condições normais, vai promover um salto
qualitativo de seu desenvolvimento mental. No fundo, esta crise
do segundo semestre é descrita por autores de tendências
diversas, cada um tendo acentuado certos aspectos dela: Spitz e a
angústia do estranho no 8o mês; M.
Klein e a entrada na posição depressiva; J. Lacan e
a fase do espelho etc.
Vejamos os aspectos que são
colocados por Diatkine. Para ele, o bebê não reage mais
ou menos (isto é, de maneira quantitativa) à mãe a
partir dessa crise do segundo semestre, mas ele reage
dolorosamente. Esta reação dolorosa é ligada à percepção de
que a mãe existe no tempo e no espaço independentemente dele e
só se produz se as interações anteriores foram suficientemente
harmônicas. Se as interações foram muito descontínuas e
contraditórias, sem que se organize a loucura materna8
com a polifonia de seu discurso, nada se produz e não há a
entrada nessa crise do segundo semestre. Por outro lado, a reação
negativa à ausência da mãe leva ao aparecimento de uma
atividade psíquica nova, no intuito de antecipar o retorno da mãe;
é o começo da organização simbólica, que surge para evitar o
desmoronamento.
O caso do autismo infantil
precoce seria um exemplo de funcionamento que evita toda essa
tormenta da crise do segundo semestre, enquanto as crianças com
psicoses precoces vivem essa crise como um drama atual e
permanente para o qual não estão preparadas.
Como explicar que um modo de
funcionamento psíquico tão hiperestruturado como é
o autismo infantil possa se constituir de maneira estável num
dado momento evolutivo da criança? Penso que não deve haver uma
resposta única. Não devemos desconsiderar as pesquisas
neurobiológicas que apontam atualmente para a existência de
fatores genéticos, por exemplo. Temos que levar em conta a idéia
de uma multiplicidade de fatores e acontecimentos que num dado
momento produzem uma organização psíquica duradoura. Essa
configuração se organiza a partir da conjunção desses fatores
e acontecimentos, onde o peso do aleatório me parece importante.
Para a criança não autista as
primeiras representações da mãe são formas em movimento
em direção a um outro, pois ela alucina esse movimento da
mãe a partir de suas experiências precedentes com ela. Na criança
autista há uma ausência dessa dimensão temporal, o que fez
autores pós-kleinianos, como Meltzer, falarem de um psiquismo
bidimensional, constituído de figuras de superfície,
sem profundidade, sem interioridade, sem representação da
experiência anterior, sem esboço de desenvolvimento do pré-consciente.
F. Tustin, por exemplo, descreve de maneira muito rica toda a
fenomenologia relacional dessas crianças. A criança autista
estaria assim em continuidade bidimensional com o outro. Para ela
não se teriam constituído as dicotomias dentro/fora, eu/não-eu,
sujeito/objeto.
Desde o final do primeiro ano de
vida o psiquismo da criança autista se desenvolve sem que
observemos sinais de valorização subjetiva das experiências
podendo se integrar numa história pessoal. Esta
particularidade os torna estranhos, onde várias metáforas do não-humano
podem traduzir o que sentimos no contato com eles. No entanto,
isso não significa que exista uma ausência de organização psíquica.
Ao contrário, sabemos o quão fortemente estruturado é esse
modo de funcionamento.
A criança autista geralmente
apresenta uma forma particular de investimento do espaço, o qual
é sem profundidade temporal. Todas as descrições muito ricas
de Tustin sobre os objetos e as formas autísticas
mostram o quanto o espaço do autista é fortemente estruturado.
Território da mesmice, o famoso sameness descrito
por Kanner. Um outro autor, P. Kantzas9 descreve o
autista funcionando como um deus deixando o tempo passar,
imperturbável em sua imutabilidade. Este autor faz uma análise
minuciosa da estrutura da linguagem de crianças autistas que
falam, mostrando que a linguagem se estrutura de maneira coerente
com esse modo de anular a subjetividade, que Kantzas chama de
princípio da imutabilidade:
No ready-made da fala do autista,
a fala é sem paixão nem tempo, sem memória nem esquecimento;
através da homologação num só significante paradigmático o
ready-made anula a multiplicação e o devir dos objetos.10
Uma reflexão sobre pacientes que
agora são adultos, tendo sido diagnosticados autistas quando
crianças, aponta para a permanência no funcionamento psíquico
atual desses pacientes de aspectos particulares que têm uma
correlação com o funcionamento autístico da infância. Tratam-se
de casos que apresentaram uma boa evolução e que foram acessíveis
a um tratamento psicanalítico. Esses pacientes tinham adquirido
a linguagem, utilizavam a escrita e fizeram estudos até o
colegial ou mesmo a faculdade. No entanto, enquanto adultos, o
comportamento social deles é bem limitado sendo pessoas muito
sozinhas e com uma vida amorosa especial. A atividade
intelectual não mostrava nenhum indício de possibilidade lúdica,
de liberdade criativa, nem de fantasia. Esses pacientes também não
parecem evocar o fato de terem vivido períodos de grande angústia
ou de terrores sem nome, não confirmando a noção de que as
manobras autísticas seriam uma defesa contra angústias
primitivas.
Num estudo por meio de testes
projetivos, N. Jeammet11 observou que os autistas
descrevem sem distorção o que vêem na figura do teste, mas os
personagens não têm idéias. Além disso, essas crianças
parecem entrar nas his tórias que contam, dando a
impressão de que não podem passar a um registro interno imaginário,
pois os limites do espaço figurado pelas imagens não
representam para elas uma mudança de registro, sendo as imagens
objetos concretos.
Diatkine sustenta a hipótese de
que para esses pacientes a organização de um segundo tempo da
sexualidade se apóia nas primeiras relações de manipulação
de objetos autísticos e zonas corporais erógenas, e sobre as
transformações dessas relações que marcam a saída do autismo
inicial. No caso de um dos pacientes dos artigos de Diatkine, o
qual foi seguido em análise até a idade adulta, não foi possível
encontrar nenhum elemento se referindo a um outro objeto de amor
da mãe, isto é, elementos de triangulação edipiana.
Todos esses aspectos da evolução
na idade adulta desses pacientes falam a favor de uma estruturação
da personalidade de modo autístico, assim como apontam para as
limitações e dificuldades da abordagem analítica com esses
pacientes.
Reflexões sobre o tratamento de
orientação psicanalítica
da criança autista
Gostaria de começar esta segunda
parte introduzindo uma reflexão sobre o tratamento do autista
que me parece decorrer das reflexões anteriores. Parece-me
importante no trabalho terapêutico com a criança autista que
cada terapeuta possa criar um espaço mental pessoal para figurar
algo que dê um sentido à relação com o paciente e que, ao
mesmo tempo, o conjunto dos terapeutas possa ter um espaço de
fala, onde possam falar de cada paciente sem procurar fazer uma síntese
do caso, nem tomarem decisões importantes. Gostaria de relatar
uma pequena vinheta clínica12 sobre uma criança que
foi tratada num Grupo terapêutico funcionando com três adultos
e seis crianças (entre dois e seis anos), num ritmo de quatro
sessões de duas horas por semana (Groupe des petits
da Fundação Martine Lyon, Paris).
Alice tinha três anos e meio
quando começou a freqüentar o grupo. O diagnóstico feito pelo
psiquiatra que a seguia era o de uma desarmonia evolutiva psicótica,
provável evolução de um autismo infantil precoce (tipo Kanner).
Quando comecei a trabalhar como
psicoterapeuta nesse grupo, Alice tinha acabado de chegar. Ela
era uma criança estranha. Falava duas ou três palavras, sem
conexão com a situação presente, mas às vezes parecia ter
intenção em se comunicar pela fala. Apresentava inúmeras
estereotipias da mão. Não raramente se afastava completamente
do mundo externo.
Após várias semanas de
tratamento, Alice tinha o hábito de se isolar no primeiro andar
do local onde trabalhamos. Durante bastante tempo, eu a
acompanhava à distância, tentando me introduzir nesse seu
espaço secreto. Nessa época, eu tinha o sentimento
de não existir, era como se eu não estivesse ali ao lado dela.
Após alguns meses de tratamento,
ocorreu uma primeira mudança qualitativa em nossa relação:
Alice tinha o hábito de se refugiar em espaços escuros e
fechados, sozinha. Um dia, ela entrou no toalete, começou a
puxar a descarga de maneira mecânica e repetitiva, fascinada
pelo escoamento sem fim da água, numa espécie de gozo eterno.
De repente, ela fechou a porta do banheiro, o qual não tem
janelas. Eu e ela estávamos mergulhados na escuridão total e
silenciosa. Notei então que ela olhava, fascinada, o raio
luminoso que entrava pelo buraco da fechadura. Nesse momento fui
sensível à beleza dessa linha luminosa. Comecei a falar que nós
dois olhávamos a bela luz que entrava. Nas sessões seguintes,
Alice repetia essa mesma experiência que, aos poucos,
transformou-se numa brincadeira de esconde-esconde entre nós,
utilizando a luz. Uma vez, ela abriu a porta e eu disse: Achei
Alice. Ela fechava a porta e eu dizia: Cadê Alice?
Num segundo momento, ela abria a porta e me apontava com o dedo,
produzindo sons incompreensíveis, mas que me designavam. A
partir desse movimento evolutivo, houve uma maior relação e um
desenvolvimento importante da linguagem de Alice.
Esse breve exemplo clínico realizado em condições de setting, que estão longe dos de uma análise clássica, parece mostrar que a possibilidade de compartilhar uma experiência estética simples, criou um momento de encontro com a paciente. Nós dois não nos olhávamos, mas ambos estávamos, em meio a completa escuridão, sensíveis à beleza do raio luminoso que penetrava no espaço escuro. O fato de falar dessa experiência creio que despertou em Alice um interesse novo pela minha presença corporal ao seu lado e, num segundo momento, um interesse pelo meu funcionamento psíquico sustentado por meu desejo. O que foi exprimido assim foi meu afeto ao compartilhar com ela essa experiência estética simples; olhar com admiração a beleza da luz que entrava permitiu a introdução de um terceiro objeto entre nós.
A tomada em consideração da figurabilidade
Gostaria de abordar agora a questão
da figurabilidade para o analista no trabalho terapêutico com a
criança autista. A. Green13, falando sobre o trabalho
psicoterápico com pacientes em situação extrema,
salienta que é mais importante nesses casos poder representar o
que ocorre do que interpretá-lo. O analista desempenha um papel
de matriz afetiva que deve dar ao paciente sua
imagem que nunca foi encontrada. Trata-se, diz Green, de
criar visualmente em cima do invisível. O analista deve criar
uma representação que possa abrir a possibilidade de
desenvolvimento da capacidade de simbolização e de representação
do paciente.
é interessante notar que o jogo do
afeto vivenciado pelo terapeuta diante do paciente e as
possibilidades de figuração dos dois protagonistas nesse
momento desempenham um papel fundamental para o desenvolvimento
do processo terapêutico. O terapeuta precisa deixar um espaço
psíquico para a projeção de imagens desencadeadas pela vivência
afetiva diante do paciente.
Piera Aulagnier, num artigo de
198314, se interessa por um fenômeno que ela observou
em sessões com pacientes adultos esquizofrênicos em
psicoterapia:
... de repente enquanto o sujeito
falava conosco, bruscamente aparece um silêncio total, a expressão
do seu rosto muda, fixando-se, e freqüentemente temos a impressão
de uma mudança em seu ritmo respiratório.
A partir do exame de sua contratransferência nesse momento, Aulagnier fala em ser abatida por um veredicto de não-existência, em tornar-se um não-ser. Nesse momento o sujeito se resume a uma função de percepção (auditiva, olfativa, proprioceptiva), ele está indissociavelmente ligado ao percebido, havendo uma parada da representação em idéias ou fantasias, em proveito de uma representação pictográfica de um objeto-zona complementar. Esta representação estaria ligada à vivência afetiva que não é pensável, nem pode ser tomada em uma atividade fantasmática, sendo que o único recurso que sobra para o psiquismo é o de se ligar a uma percepção sensorial. Podemos notar nesse fenômeno sua proximidade com os momentos de retirada autística, que são momentos de ruptura da continuidade psíquica.
A produção de formas sensuais
de base e os elementos autísticos
Na psicanálise não temos outra
opção senão afirmar que os processos mentais são
inconscientes em si mesmos e a comparar a percepção deles pela
consciência com a percepção do mundo externo pelos órgãos
dos sentidos.
(S. Freud, 1915)15
Toda a semiologia da
sensorialidade descrita por F. Tustin no autismo infantil, coloca
um paradigma a ser teorizado em termos metapsicológicos.
Tustin afirma que a criança
autista apresenta uma tendência a produzir formas. A partir das
sensações de suas substâncias corporais, por exemplo,
desenvolve-se para ela um movimento produtor de novas formas. P.
Fédida16, retomando essa semiologia sensorial de
Tustin, fala da relação entre certas formas e as condições de
visibilidade. Assim, numa analogia com a pesquisa estética (Paul
Klee, Kandinsky etc.), lembra o papel essencial do ponto, da
linha e das superfícies, elementos apropriados para
modificar a percepção visual que podemos nos fazer dos fenômenos.
Na sua relação com a criança autista, Tustin fala do que ela vê
da criança, logo, diz Fédida, ela viu, ela percebeu
alguma coisa. O corpo da criança torna visível, nessa
produção de formas de grande significação corporal, certas
direções de sentido. O corpo do terapeuta é o
lugar de recepção de fenômenos, lugar polissêmico, criando
formas especulares que de alguma maneira representam os sinais
sensoriais da criança. Para a criança autista, o corpo do
terapeuta é transformável por intermédio de sinais da criança.
Tustin sublinha a idéia de que
as formas sensuais normais seriam elementos de base, afetivos e
cognitivos. Nesse sentido haveria criação do auto-erotismo a
partir do sensual-sensorial. Na criança autista as formas
produzidas por ela podem ser formadoras de figuras na mente do
terapeuta. Essas imagens teriam o papel de estabelecer as pré-condições
sensório-motoras de figurabilidade da linguagem. Dentro desse
ponto de vista, o que estaria em jogo na psicoterapia da criança
autista seria poder criar-se possibilidades de constituição do
outro como suporte de figurabilidade. Podemos dizer talvez que o
terapeuta dá forma, dentro da relação, às vivências
corporais da criança.
NOTAS
1.
E. Fombone. Etudes épidémiologiques de lautisme
infantile, in S. Lebovici, R. Diatkine e M. Soulé. Nouveau
traité de psychiatrie de lenfant et de ladolescent. Paris:
P.U.F., 1993.
2.
R. Diatkine. Lautisme infantile precoce: un point de
vue psychanalytique en 1993, in Lenfant dans ladulte.
Paris: Delachaux et Niestlé, 1994.
3.
J.P. Changeux. Lhomme neuronal. Paris: Fayard,
1983.
4.
J.P. Tassin. Peut-on trouver un lien entre linconscient
psychanalytique et les connaissances actuelles en neurobiologie?,
in Neuro-Psy , vol. 4, no 8, out. 1989,
pp. 421-434.
5.
M. Lewis. Child and adolescent psychiatry . 2a
ed. Baltimore: Williams & Wilkins, 1996, p. 1.229.
6.
J.D. Vincent. Développement et organisation de lémotion,
in Neuro-Psy, vol. 6, no 10, nov. 1991,
pp. 505-508.
7.
R. Diatkine. Lautisme infantile precoce: un point de
vue psychanalytique en 1993. Op. cit.
8.
A. Green. Passions et destins des passions, in A.
Green. La folie privé. Paris: Gallimard, 1993.
9.
P. Kantzas. Le passe-temps dun dieu. Ed. INSERM,
1987.
10.
P. Kantzas. Le passe-temps dun dieu. Op. cit.,
p. 110.
11. N. Jeammet. Le post-autisme: une
figure de la normalité?, in Psychiatrie de
lenfant, XXIV, 1, 1991, pp. 137-180.
12.
J. Canelas. LHistoire dune rencontre: dans des
couloirs sombres il y a peut être des lumières à decouvrir. Réflexion
sur le traitement dun enfant autiste à partir de lévolution
des processus de symbolisation. Tese de CES de Psiquiatria
pela Universidade de Paris XII, 1991.
13.
A. Green. Préface, in W. Bion. Entretiens
psychanalytiques. Paris: Gallimard, 1980.
14. P. Aulagnier. Le retrait dans lhallucination:
un équivalent du retrait autistique?, in Lieux de lenfance,
Paris, 1985.
15.
S. Freud. Linconscient (1915), in S.
Freud. Oeuvres complètes, vol. XIII. Paris: PUF, 1988.
16. P. Fédida. Communication au Colloque sur lautisme infantile et le fondement sensorial de la pensée. Paris, 1990.
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