Não há TV independente da sociedade

MARIA RITA KEHL

"Um dia a massa irá comer do biscoito fino que fabrico." Oswald de Andrade

A pergunta sugere o seu contrário: que exista alguma emissora de televisão autônoma em suas decisões. Não existe. A televisão mais independente, relativamente, de interesses e decisões externas é a TV pública -comprometida, por definição, com interesses comuns a toda a sociedade, mas livre de ingerências e determinações comerciais.

A TV pública, a exemplo do que vemos acontecer nas TVs educativas brasileiras e na excelente (pelo menos até que o governo Mário Covas a deixasse na miséria) TV Cultura de São Paulo, é a que permite a maior liberdade de criação e experimentação, justamente porque a noção de bem comum (cultural) que preside à sua manutenção a torna independente do jugo pseudodemocrático das pesquisas de audiência.

Ou seja: por ter um compromisso educativo com a sociedade a que pertence, pode ser melhor do que o nível cultural médio do universo de seus espectadores. A pretensão é elitista, mas não elitizante: afinal, as emissões da TV pública entram nos mesmos lares, abastados ou miseráveis, que as das outras emissoras. Oferece -mas não obriga ninguém a querer- biscoito fino para as massas.

Quanto às televisões comerciais, quando se fala em interferência da sociedade, pensa-se logo em censura. Bobagem. Censura é a pior forma de intervenção, a mais burra -e, o que é mais grave, a que sempre vai cair nas mãos menos competentes: aquelas dos interessados em restringir, não em criar.

A interferência da sociedade sobre a programação da televisão comercial já existe, de fato, na sua segunda forma burra: a do Ibope. A televisão comercial não tem absolutamente nenhuma independência diante de um público que ela está condenada -pela pressão de seu verdadeiro mestre, a publicidade- a adular.

O Ibope, mediador da dependência entre a circulação de mercadorias promovida pela publicidade e a circulação das mercadorias produzidas pela TV (a qual, capturada pela lógica da venda de horários, produz bens de consumo cultural rebaixados a seu valor de troca), contribui para a mistificação de um ideal mercadológico (e não, como se pretende, democrático) segundo o qual aquilo que vende é bom porque vende, e basta. Disso se deduz que não existe valor que não seja valor de troca.

Assim, se os olhos da sociedade se voltam, fascinados e curiosos -ainda que, num segundo momento, indignados-, para a exibição da violência policial na periferia das grandes cidades, é isso o que a televisão lhes dará. E, se essa exibição deslizar sutilmente da denúncia à incitação, da informação jornalística à promoção de um gozo sádico coletivo, ainda assim a emissora estará ganhando em audiência. Por isso mesmo, coberta de razões "democráticas", devolverá à sociedade o espelho de sua abjeção.

Penso que o antídoto contra a dependência mecânica entre a televisão e as oscilações cada vez mais previsíveis do Ibope está na possibilidade de intervenções pontuais na programação, em que vozes divergentes possam se manifestar acenando com a diferença e, assim, rompendo com o eterno retorno do mesmo.

Por exemplo: que as emissoras abrissem espaço para um ombudsman, por meio do qual os espectadores se manifestassem publicamente sobre a programação. Que reservassem horários para exibir a produção experimental de estudantes de comunicação ou artistas expressivos de diversas comunidades. Que se comprometessem a transmitir ao vivo, sem distorções de edição, debates sobre os principais temas jornalísticos diários. Enfim, que criassem meios de devolver à sociedade pelo menos uma parte do que recebem dela.

E o que é mais importante, já que a televisão comercial produz bens de consumo banais e não obras de arte: que responda, como qualquer outra empresa, a um rigoroso código do consumidor, por meio do qual a sociedade possa exercer seu direito de não ser enganada. A televisão brasileira não precisa ser censurada para ser convocada a se responsabilizar por seus erros e eventuais crimes de má-fé e mistificação pública.

Maria Rita Kehl, 46, psicanalista e ensaísta, é autora do livro "A Mínima Diferença" (Imago) e integrante do grupo TVer.


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