O TRAUMÁTICO NA CLÍNICA

Lucía Barbero Fuks

 

 

Estamos falando do traumático na clínica, 100 anos depois de serem escritos os primeiros trabalhos de Freud referidos ao tema. A psicanálise nasce com a teoria traumática e o conceito de trauma psíquico percorre toda sua história, ao longo da qual sofre uma evolução considerável.

 

Domina em certos momentos a cena teórica, particularmente :

 

1.   Na época das descobertas iniciais de Freud no campo das neuroses: Estudos Sobre a Histeria, ligado à teoria da sedução;

 

2.   Sofrendo um certo deslocamento, quando seu papel na causação das neuroses é relativizado a favor do papel das fantasias sexuais infantis.

 

3.   Voltando a aparecer na reformulação metapsicológica, que começa a partir dos anos 20. Aí, os escritos fundamentais são "Além do Princípio do Prazer", com a introdução da pulsão de morte, tendo como um dos referentes clínicos as neuroses traumáticas, e "Inibição, Sintoma e Angústia", de 1926.

 

Na obra dos psicanalistas pós-freudianos, o conceito de trauma psíquico tem uma presença crescente e o espaço de referência clínico, ou seja, o  que se considera e descreve  usando a categoria de "traumático",  se amplia.

Um dos elementos  a destacar na teorização contemporânea, é a recuperação e o aprofundamento das idéias  que giram em torno do termo freudiano de nachtraglich, também chamado après-coup, a posteriori, retroatividade ou re-significação retroativa, que era um dos componentes fundamentais da constituição do trauma psíquico em dois tempos,  nas formulações da época  do nascimento da psicanálise. Como veremos, estas idéias ganham importância para a compreensão do trabalho analítico em sua totalidade. 

A concepção mais elaborada, na época inicial, sobre o papel do traumático na causação das neuroses, está centrada no conceito de traumatismo sexual precoce  que implica num  determinado encadeamento temporal de fatos psíquicos: num primeiro tempo, uma cena em que o que produz impacto vem de fora, não compreendendo a criança o sentido que tem para o adulto perverso ou a criança mais velha, nem os meios utilizados por essa pessoa que faz parte, em geral, da própria família. O papel da criança é de alguém passivo, ignorante, impotente que consente; num segundo tempo, o do "a posteriori",  acontece, no momento da puberdade, um incidente que lembra, a partir de uma traço associativo, o primeiro. A criança  poderia conceber agora o sentido sexual daquela cena, reorganizando e internalizando o cenário, em função da sua própria evolução intelectual e afetiva (depois Freud acrescenta, em função de seus próprios fantasmas).   

A reativação desta lembrança provoca um fluxo de excitação que desborda as defesas do ego. O aparelho psíquico se vê invadido por um afeto demasiado intenso para suas possibilidades de domínio; dizer algo se faz impossível, ao menos num primeiro momento; a fuga, presa de uma vivência de terror, se apresenta como única saída no exemplo paradigmático, descrito no Projeto de uma Psicologia Científica (1895). 

Os sintomas, já constituída a neurose, serão também uma forma de colocar em cena e mostrar aos outros, na posição de espectadores, uma representação do cenário patógeno.

Dois elementos definem o essencial da concepção freudiana do trauma: o caráter sexual do mesmo e a significação aportada "a posteriori" pelo segundo tempo. Se o  acontecimento é chamado traumático por Freud, é pelo seu efeito après-coup - NACHTRAGLICH.

É importante destacar esse ponto de inflexão teórica, que é visto por diversos autores como uma desaparição da dimensão do energético a favor do sentido.

O traumatismo, seja qual for, deixa uma marca que, no entanto, só terá efeito après-coup.

Podemos sustentar, no entanto, que esta dimensão fundamental que estamos valorizando, a partir da  teoria da constituição do trauma em dois tempos, não deve enfocar-se como uma desaparição do energético. Pelo contrário, tem um fluir de excitação incontrolável, proveniente da lembrança de um acontecimento que se torna sexualmente excitante ao ser re-significado pela cena atual. Fluxo de excitação que, no exemplo do Projeto, só parcialmente poderá ser elaborado e tornado consciente como atração sexual por algum personagem da cena,  ficando, na sua maior parte, manifestado como afeto de terror que impulsiona para a fuga. Por isso, falar em re-significação retroativa permite sublinhar esta dimensão do sentido. 

O texto "Psicoterapia da Histeria" (1895) marca o ponto de ruptura de Freud com Breuer. O trauma fica mais complexo através das cadeias associativas e os "enfeites" ou enriquecimentos da lembrança. Freud introduz o conceito de DEFESA  e, desde aí,  para ele, a causa volta para o sujeito em relação ( no sujeito neurótico) a um conflito irredutível.

Ao afirmar que o traumatismo está relacionado a uma fonte de excitação interna, o traumatismo externo só tem valor ou ressonância traumática em relação com a mesma. Consequentemente, o acontecimento é traumático só na relação que pode existir entre o encontro traumático e algo que o sujeito já conhece.

O APRÈS-COUP será visto como a própria constituição do sujeito. Isso ainda não estava sendo dito na época em que a teoria do après-coup desenvolveu-se especificamente a respeito de acontecimentos traumáticos.

Freud explicava a necessidade de repetição, em parte, como uma tentativa de modificar o "après-coup" às condições em que se havia produzido o trauma e chegar a torná-lo progressivamente mais inócuo, com o aporte da angústia sinal, que faltava no momento de sua produção, impossibilitando a instrumentação de medidas defensivas. Atualizar o trauma, fazê-lo vigente (atual) é o que permite, finalmente, superá-lo e mudar a história, tanto num processo espontâneo como no tratamento, onde a repetição transferencial tem um papel importante.

A nova historização que se consegue na análise muda o sentido e a intensidade dos traumas; pode relativizá-los, intercambiar seus pontos de impacto e as figuras implicadas neles.

O conceito de NACHTRAGLICH explica a possibilidade de ação da Psicanálise. "Se não existisse esta retroatividade na construção do trauma, também não existiria a possibilidade de modificação da nossa história".

Com o conceito de NACHTRAGLICH, Freud abandona o modelo da causalidade mecânica e da temporalidade linear, segundo a relação passado-presente, a favor de um modelo dialético de causalidade, onde o futuro e o presente se condicionam e significam reciprocamente na estruturação do passado.

Em 1897 na carta n.º 69 que envia a Fliess, Freud manifesta sua decepção a respeito da teoria traumática. Diz: "Já não acredito mais na minha neurótica".

É um passo importante de questionamento da sua teoria da sedução motivada pela decepção frente ao fracasso das curas que pensava levar até o fim, através da revelação da cena traumática. O fim do tratamento teria lugar com uma ab-reação.

O trauma representa um ponto de detenção, um limite na cura. Sua aparição a plena luz não tem o efeito esperado de resolução do sintoma. Temos que destacar então que, desde 1897, Freud não acreditava na eficácia da ab-reação. Assim, ele introduz as fantasias infantis na sua abordagem do complexo de Édipo. 

Segundo Guy Briole, psicanalista francês, Freud não opõe o trauma ao fantasma, mas indica que o trauma deve ser situado no mesmo plano que o fantasma. Substituindo o real traumático com a ficção do fantasma, "a cura se desloca da rememoração do acontecimento traumático ao tema do desejo do sujeito, que se dialetiza na cura" .

No entanto, manterá sempre como exigência achar a cena traumática, ainda que,  às vezes,  sua lembrança esteja  mascarada. 

Esses objetivos metodológicos que orientam sua clínica, entram em intersecção com as inquietações teóricas que o levam a especificar o conceito de RECALQUE ORIGINÁRIO: para que exista RECALQUE PROPRIAMENTE DITO é necessário que se tenha constituído um primeiro núcleo do recalcado.

 Freud associa à experiência original do trauma a constituição deste primeiro núcleo, que posteriormente atrai todos os outros recalcamentos.

 

Entraremos agora no que temos caracterizado como terceiro momento da elaboração freudiana. 

Em 1926, com "INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA", Freud procede a uma revisão da teorização da angústia e do trauma.

O modelo freudiano do traumatismo é o da separação do OBJETO PRIMORDIAL
( MATERNO), perdido desde sempre e impossível de reencontrar como tal.

O fantasma é o que tenta recriar imaginariamente o vínculo com o objeto perdido e, recobrindo  a operação inicial, conter o real pulsional interno, ao mesmo tempo em que protege do perigo externo.

O ego, como Freud disse em "Além do Princípio do Prazer" com sua metáfora de PARA-EXCITAÇÕES, deve defender-se tanto de um perigo externo quanto dos movimentos pulsionais internos.

 O perigo interno pulsional provém de que a satisfação da pulsão representa um perigo externo, o qual tinha levado Freud a dizer que o sujeito situa a ameaça interna,  por projeção,  no exterior.

Para que um perigo externo tenha sentido para o ego, é necessário que esse tenha procedido a uma interiorização: "é preciso que tenha sido reconhecido em sua relação com uma situação vivida de depressão".

O perigo externo é um perigo somente quando contém para o ego a lembrança da primeira ameaça: a da depressão posterior à separação do objeto primordial.

Freud associa essa depressão ao que originariamente é traumático.

 

Consideraremos, agora, dois diferentes percursos teóricos pós-freudianos, que tem como ponto de partida alguns aspectos das formulações de Freud nessa etapa de sua elaboração teórica.

Desde  "Além do Princípio do Prazer" Freud descreve, com a COMPULSÃO À REPETIÇÃO, a manifestação, a partir do inconsciente, não do prazer e sim do sofrimento. Esse último insiste, reaparecendo, se repetindo  sem nunca perder seu caráter de sofrimento, mas levando-nos a pensar não só que o sujeito não consegue se desprender dele, mas que também não queira e, pelo contrário o procure, indo atrás inconscientemente de situações que o provoquem.

Segundo Lacan, o que desde o inconsciente fixa o sujeito e o deixa na incapacidade de dizer (característica das situações traumáticas), é de outra ordem: o gozo.

Do prazer e do desprazer o sujeito pode dizer algo: adapta-se a eles, ainda se estiver insatisfeito.

O gozo, por sua vez, supera toda possibilidade de ser localizado pelo sujeito – o sujeito não pode dizer nada a respeito.

É o que Freud percebe quando o HOMEM DOS RATOS relata a cena do suplício dos ratos que, por sua vez, tinha lhe contado o cruel capitão: "vê-se no seu rosto uma expressão complexa e estranha, expressão que não poderia traduzir mais que como o horror de um gozo que ele mesmo ignora" diz Freud.

O gozo que se impõe no traumatismo deixa o sujeito na incapacidade de dizer alguma coisa, seja lá o que for. O que não significa que não se encontre implicado. Pelo contrário, o está na sua própria singularidade.

Deste modo, não se poderia conceber um trauma absoluto, hipótese freqüentemente utilizada para as neuroses traumáticas, em que não se considerasse que o sujeito estivesse implicado.

Se bem está comprovado clinicamente que todo sujeito pode apresentar uma "patologia traumática", a maneira em que se repartem, num grupo exposto a um traumatismo, aqueles para os que se vá produzir uma efração, não tem a ver nem com uma "constituição" prévia nem com uma distribuição aleatória.

UMA SITUAÇÃO É TRAUMÁTICA PARA UM SUJEITO QUANDO SE DÁ NUM MOMENTO PRECISO DA SUA HISTÓRIA.

Freud destacou a importância determinante do efeito surpresa. Esse efeito deve entrar em tensão com a posição particular do sujeito, a respeito de seu fantasma, no momento mesmo em que se produziu o encontro traumático.

O que faz a singularidade do trauma para um sujeito é aquilo no que foi pego por surpresa.

É justamente o que marca Freud: a narração do suplício dos ratos surpreende ao sujeito num momento fantasmático particular. 

Num outro lugar, o sujeito se encontrará confrontado com sua própria morte, no momento em que seu ódio aponta a outro com a rivalidade edípica.

A eficácia traumática do confronto com a possibilidade real da morte, em uma situação inusitada de perigo, depende dessa  fantasmática e produz um acordar aterrorizante disso que, até o momento, eram fantasias referidas à morte de outros. É o real irrepresentável da morte referida a si mesmo o que não pode ser processado. Wittgenstein diz: "A morte não pode ser vivida, não é um fato da vida." (op.cit. Briole). Ele considera a morte como um acontecimento, ou seja: o que sucede e não pode ser dito".  

Dessa forma, como tinha percebido Freud, TODO TRAUMA ESTÁ ESTRUTURADO COMO UM APRÈS-COUP.

Nem todos os encontros traumáticos produzem os mesmos efeitos, seja qual for a aparente intensidade do acontecimento. Cada sujeito responde com sua singularidade segundo o momento no qual se produz o encontro, segundo a ressonância que pode ter com sua própria história, mas também segundo a posição que se adota frente a essa experiência única.

Ao sujeito também corresponde interrogar-se sobre a parte de si mesmo nos efeitos do encontro e se perguntar: "que possibilidades me restam?"

Uma paciente, a quem se indicou biopsia na raiz de um nódulo de mama, tendo uma história familiar de tumores ginecológicos, disse, quando pôde vir à sessão:

"Isso acabou comigo! Como vou poder viver depois disso?! Me diga o que fazer?!".

O psicanalista coloca o possível no campo da ética.

Como diz Roland Chemama, uma posição de saber, um ego de realidade hierarquizado,..." se opõe a ética da psicanálise, à medida que um tal saber sobre o gozo permitiria gozar do sintoma do outro e utilizá-lo" . 

 

Consideremos agora a outra perspectiva mencionada anteriormente.

Os psicanalistas concordam que a prematuridade e o desvalimento biológico do lactente no seu encontro com o mundo, com o adulto que o cria, maduro biológica e psiquicamente, implica em um impacto traumático.

Esses acontecimentos transcorrem deixando traços no psiquismo sem que necessariamente cheguem a produzir efeitos traumáticos. Podem-se converter em traumas quando, a partir de novos acontecimentos e dentro de um nível madurativo maior, são re-significados "a posteriori".

MASUD KHAN denominou "TRAUMATISMO CUMULATIVO", as tensões e ansiedades vivenciais experimentadas pela criança no contexto da dependência do seu psiquismo com o da sua mãe.  Este adquire, por acumulação, o valor de traumático.

Ao introduzir o  conceito de "trauma cumulativo", o ponto de partida de Masud Khan é que "a importância atribuída à relação lactente-mãe tem modificado o marco de referência relativo à natureza e ao papel do traumatismo".

Chama a atenção no pensamento deste autor,  a mudança no conceito de barreira anti-estímulos, que tendo originariamente uma significação econômica impregnada de conotações biológicas, passa a operar dentro de um campo relacional, já que a barreira protetora encontra-se situada fora do organismo ou do indivíduo considerado

Ele examina a função da mãe no papel de escudo protetor, papel esse que constitui "o ambiente normal que se pôde esperar para as necessidades anaclíticas do bebê" .

A denominação "escudo protetor", remete  ao texto de Freud de 1920   "Além do Princípio  do Prazer", em que postula a importância de uma proteção contra os estímulos, como função de preservação dos modos particulares de funcionamento energético do organismo, frente à ameaças de grande magnitude, provenientes do mundo exterior.

Normalmente, esta espécie de barreira protetora funciona dosando, atenuando o impacto dos estímulos externos e internos do infans. Se fracassar como tal, se pode produzir uma invasão disrruptiva e desorganizadora do seu psiquismo.

O trauma cumulativo resulta das fendas observadas no papel da mãe durante todo o curso do desenvolvimento da criança, desde a infância até a adolescência.

As fendas no escudo não produzem trauma na época ou no contexto em que ocorrem. É mais exato dizer que elas, repetidas no correr do tempo e entremeadas no processo de desenvolvimento, se acumulam de forma silenciosa e invisível.

O fracasso se dá quando esse papel da mãe é invadido pelas suas necessidades e conflitos pessoais. O papel de escudo protetor da mãe não é passivo: é o resultado das funções do ego materno, operando em forma discriminada, sem recorrer a defesas patógenas.

Estes conceitos fundamentam-se, em parte, sobre idéias de Winicott, em especial as idéias de desmoronamento  e de deficiência da mãe, na sua função de dosar e regular os estímulos externos e internos, chegando a uma situação de invasão que tem um efeito disrruptivo sobre a organização e integração do ego.

O autor destaca que para produzir o efeito de trauma cumulativo, as falhas tem que ser importantes e freqüentes, ter um ritmo e uma regularidade que afetem  a integração do psiquismo da criança,  resultando em invasões que ela não tenha como eliminar. Nesses casos, eles formam um núcleo de reação patogênica.

Essas falhas não são observáveis nem se visualizam como traumas nos momentos em que se produzem e não "adquirem o valor de traumatismo senão por acumulação e em forma retrospectiva".

Referir o trauma ao objeto – para certos autores não há situação traumática sem objeto (trate-se de objetos internos como em M. Klein ou de objetos externos como em Balint, Winicott, Masud Khan) -  introduz uma série de variantes na teoria: por uma parte contribui a aumentar o conhecimento de uma quantidade significativa de situações patógenas, podendo, no entanto, tender a apagar a especificidade do   conceito de "situação traumática".

Na perspectiva que estamos considerando, o objeto angustiante, por sua ausência, sua presença interna ou externa ou por sua hiper-presença, sempre se apresenta subjetivamente como possibilidade de adjudicar o trauma a alguém que não fez o que devia fazer,  ou fez o que não devia. 

Esses objetos nos preservam, assim, do "trauma puro", conceito do qual passaremos a nos ocupar. 

Freud postula a existência de duas classes diferentes de angústia:

·        a ANGÚSTIA AUTOMÁTICA que se caracteriza pela inundação do aparelho psíquico por magnitudes de excitação difíceis de manejar e produz um estado de desorganização psíquica;

·        a ANGÚSTIA SINAL com a qual o ego lida com a finalidade de impedir a irrupção da primeira e de construir sintomas defensivos mais ou menos adequados nos quais a angústia tem seu lugar, mas limitada, domesticada, integrada à vida do sujeito.

 

Os quadros psicopatológicos, assim como as formas de controles consideradas "normais", têm como finalidade comum evitar que se apresente essa forma extrema de angústia, tão primária que para descrevê-la são necessários termos econômicos: rompimento de barreiras, inundação por magnitudes incontroláveis, desamparo total.

O primeiro que tratam de fazer os pacientes é estabelecer um sistema de nomes destinado a conter, regular, situar esse perigo indizível: tenho medo de baratas, de exames, intranqüilidade pelo funcionamento cardíaco, etc..

Essa forma de angústia "automática" poderia ser caracterizada como o trauma inicial, o trauma puro, sem sentido, totalmente disrruptivo, resto inassimilável que, segundo Freud, corresponde ao mais "pulsional" e "demoníaco" da pulsão, e que o levou a postular o conceito de pulsão de morte.

Na teoria do trauma seria o "trauma puro", exclusivamente econômico, energia livre,  desligada, catastrófica.

O "trauma puro" pode ser pensado como o encontro na história do sujeito com essas vivências insuperáveis, impossíveis de assimilar, inomináveis, mudas como a própria pulsão de morte.

O primeiro tempo do trauma permanece mudo até que posteriormente se permite falar e constituir-se em trauma.

A análise poderia se definir como historização – NACHTRAGLICH, versus a pulsão de morte.

Os efeitos patógenos da situação traumática seriam intentos fracassados de ligar fazendo-a falar,  a parte de morte, que não tem conseguido (nem conseguirá) transformar-se em um discurso coerente.

A tentativa de ligar a pulsão de morte cercando-a "a posteriori" dentro da construção de um trauma psíquico infantil não tem nunca um êxito total, sempre o essencial da pulsão de morte escapa da construção traumática.

 

Relato de um caso:

"MARIANA, de quatorze anos, consulta com um quadro depressivo, ameaças de suicídio, ficando fechada o dia todo em seu quarto sem querer ir para o colégio, do qual acaba desistindo em meados do ano.

Os problemas começaram justamente a partir da entrada nesse colégio, muito valorizado socialmente pelo nível elevado da formação e pelo caráter exigente e difícil dos exames de ingresso. 

Sempre foi uma "menina modelo", até um pouco fora de época, ao gosto de sua mãe. Boa aluna , roupas de "menininha", religiosa.

Quando começa o colegial, na escola já mencionada, iniciam-se as mudanças "negativas" para o olhar da mãe: vira rebelde e com idéias de esquerda. Para Mariana se trata, na verdade, após o momento inicial de triunfo e orgulho pelo ingresso, de uma fase de dificuldades crescentes em se ver aceita pelas colegas, percepção das diferenças socio-econômicas, vergonha da sua casa, e isolamento. Termina o primeiro ano com dificuldades. 

No decorrer do 2º ano , conversando com uma colega, esta lhe pergunta se tem pai. Quando responde afirmativamente a amiga demonstra suas dúvidas já que Mariana usa o sobrenome materno. A partir daí, se fecha no seu quarto, recriminando a mãe pela mentira de que tinha sido vítima.

A mãe chega ao país bem jovem e cheia de grandes expectativas. Começa a trabalhar num banco onde progrediu até certo ponto. Conhece e trata constantemente com investidores, clientes do banco, iludindo-se com a idéia de que venham a constituir-se em seus amigos.

Começa a sair com um homem de quem gosta muito mas que lhe faz sentir que está longe das expectativas de sua família, com relação a como deveria ser sua futura esposa.

Desiludida, começa a sair com outro, de quem não gosta mas que parece aceitá-la. Fica grávida e ao comunicar-lhe o fato, ele some, não voltando a se verem nunca mais.

Relata que logo depois do parto passou por uma situação difícil, pensou que poderia morrer e telefonou para ele, para lhe dizer que tomasse conta da filha. A resposta dele foi que ela poderia morrer mas que ele não tinha nada a ver com isso. 

A menina cresce sendo, como dissemos, uma "filha modelo", um pouco antiquada, mas fazendo tudo para agradar, permanentemente, tanto à mãe quanto à avó materna que mora com elas. Moram em um apartamento pequeno onde compartilha o quarto com a avó, sendo quase impossível usufruir de alguma privacidade. Isto deveu-se ao desejo da mãe de morar num bairro de classe média alta, pelo qual teve que renunciar a ter um quarto a mais, o da Mariana. 

A figura masculina aparece representada pelo "padrinho", que é o homem pelo qual a mãe tinha se apaixonado inicialmente (e que lhe falou tempos depois, do arrependimento que sentiu por não a ter escolhido) e pelo tio materno, figura enfraquecida pelo lugar lateral ocupado na família e pelos sucessivos fracassos profissionais. A mãe contara que o pai tinha estado muito próximo dela na infância, brincando com ela e fazendo-a dormir à noite, só que ela não lembrava por ser ainda muito pequena. 

Vimos já os acontecimentos associados à entrada no colegial, em que a percepção do sobrenome ausente desmente a bela mentira, desencadeando a crise traumática, que a leva a abandonar, na metade do ano o colégio, mergulhada numa profunda depressão.

Começa a freqüentar a praça, fazendo-se amiga de pessoas muito pobres, quase vagabundos. Diz que nesse ambiente se sente melhor. Parece fazer exatamente o contrário de sua mãe, que sempre teve expectativas de ascensão  social. Ela seria o contrário e, por momentos, considera que tem a missão de ajudar aos pobres. Quer ir para uma favela.

A  mãe se posiciona contra os tratamentos psiquiátricos e psicoterapêuticos porque Mariana diz que os psicólogos à autorizam a fazer o que queira, dizendo-lhe também que não é necessário ficar obedecendo à mãe. 

Cursa 2º ano atualmente em outra escola pública onde voltou a ser uma aluna muito boa. Namora um rapaz de 25 anos, proveniente de uma favela, drogadito e sem nenhuma formação. Ela "o está salvando". Agora ele quer começar a estudar."

A retração , a depressão, as idéias de morte, o confronto crescente com a mãe e com o mundo que a rodeia, mostram  a intensa comoção que está afetando a vida psíquica de Mariana. Esse choque traumático, atua como organizador de experiências, condensando inúmeras situações disrruptivas e dissociativas     anteriores sob a aparência de um único episódio chocante. Essas foram, no entanto, silenciadas e mascaradas, mediante um  conjunto de defesas rígidas e um tanto bizarras próprias de um ego precocemente desenvolvido e sobreadaptado, que caracterizou sua infância até a puberdade.

Como foi dito anteriormente, as fendas neste escudo situado por Masud Khan, como função da mãe, não produzem trauma na criança na época ou no contexto em que ocorrem. Só adquirem valor de trauma em forma cumulativa  e retrospectivamente.

Por exemplo, leva a um prematuro e seletivo desenvolvimento do ego (desenvolvimento acelerado que usam como defesa frente à invasões desagradáveis). Ou também uma conformidade especial ao temperamento da mãe, conformidade que cria um desequilíbrio na integração dos impulsos agressivos. 

O caráter explosivo do episódio traumático atual, é proporcional e contrastante com o modo silencioso e imperceptível, com que o trauma cumulativo age e se fixa ao longo da infância até a adolescência.   

 "A fase em que a própria criança toma conhecimento dos efeitos cruéis e distorcivos desse laço lesivo com a mãe é na adolescência. Sua reação então é de tremenda rejeição à mãe e a todo seu investimento libidinal em relação a ela." 

Se verifica uma tentativa de remodelar intencionalmente  a própria identidade, anulando o passado, os interesses e os vínculos.

 Configura-se uma encruzilhada com diversas saídas. A  retração num vazio inerte, o desenvolvimento de laços impregnados de futilidade, ou, como ocorre no momento do relato, a busca de objetos e ideais novos e assunção de papéis onipotentes ( a "salvadora" ). O vínculo com a mãe pode quebrar-se totalmente, ou mais provavelmente, transformar-se numa seqüência repetitiva de confrontos sem caminhos possíveis de elaboração. Nos primeiros contatos,  era visível que  a mãe  não tinha consciência de quanto suas dificuldades e "percepções" rejeitadas sobrecarregavam a filha. Começa a poder dizer algumas coisas como: "ao longo desses anos tratei de não pensar que não tinha casado, foi uma grande vergonha para mim", espera, dissociadamente , que devolvam para ela a menina modelo que tentou, e em grande medida conseguiu, fabricar compensatoriamente.

Gostaria que o que temos considerado ao longo desta apresentação seja útil para entender o papel do traumático na teoria e na clínica psicanalítica contemporânea e para visualizar  possibilidades terapêuticas  que possam se abrir,  apoiadas na potencialidade re-significante desse tipo de processo. Tenho  tentado esclarecer também como o modelo do traumático, principalmente no que se refere ao "après-coup", ajuda a entrever uma dimensão fundamental  que caracteriza este modo de "contar  a história" que é o nosso trabalho. 

 

José Saramago, freqüentador assíduo desse ciclo, nos pode dizer algo nesse sentido, num romance de 1983:

 

"... não o sabia quando o escrevi , sei-o agora ao voltar a escrever

(lição importante: nada se deve escrever uma vez só). Em verdade denunciei-me, mas ninguém o iria adivinhar, porque a primeira vez se usa sempre uma língua secreta que tudo diz e nada consente entender. Só a segunda língua explica, mas tudo voltaria a ficar oculto se o código da primeira língua, nesse preciso momento, fosse esquecido ou perdido. A segunda língua,  sem a primeira, serve para contar histórias, as duas juntas é que fazem a verdade..."
                                            

                                                                        Manual de Pintura e Caligrafia, 1983

 

Lucía Barbero Fuks

mfuks@uol.com.br


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