A CISÃO DE 1998

Maria Anita CARNEIRO RIBEIRO

 

Em 1920, Freud estabelece o conceito de repetição, presente em sua obra desde 1895. Deste ganho conceitual decorrem algumas conseqüências que não deixam de incidir no tratamento e em seu término, assim como no que se espera e no que se pretende dos psicanalistas e na própria organização que estes estabelecem entre si.

Ao longo destes mais de cem anos de história da psicanálise, as crises, cisões, rupturas e recomeços se repetem e em seu âmago, a mesma questão crucial a causá-las: a formação dos analistas.

1941-45, Londres; 1953, a ruptura de Lacan com a IPA; 1980, dissolução da Ecole Freudienne de Paris; 1998, cisão da Escola Brasileira de Psicanálise. Em todas, a advertência freudiana em "Análise terminável e interminável" de que os analistas deveriam retomar periodicamente suas análises serve de baliza para a reflexão sobre o que se quer e o que não se pode em um final de análise.

Se em 1967, na "Proposição de 9 de outubro", Lacan inaugura o dispositivo do passe na tentativa de verificar os resultados de uma análise conduzida para além do rochedo da castração, hoje, após uma geração de analistas que atravessaram o dispositivo e quando já se dispõe de toda uma literatura sobre seus resultados, é este mesmo dispositivo o que está em causa na crise atravessada pela Escola de Lacan. E é deste ponto nodal que decorrem as mais graves conseqüências institucionais: a ameaça do totalitarismo, o desrespeito aos estatutos, a guerra das transferências.

A partir da Cisão de 1998 da Escola Brasileira de Psicanálise, ainda em curso, podemos nos perguntar, mais uma vez, se estas rupturas são apenas contigentes ao que Freud chamou de "mudanças naturais das relações humanas" ou se são da ordem do necessário, a partir da especificidade da formação do analista, que tem conseqüências na formação do grupo.

I

A Cisão de 1998 não é um dado isolado na história da psicanálise. Ela se inscreve em um movimento mais amplo que atinge toda a Associação Mundial de Psicanálise, fundada por Jacques-Alain Miller em 1992 e que congrega as cinco Escolas de Psicanálise do Campo Freudiano: além da EBP, a Escola Européia de Psicanálise (com sede na Espanha), a Escola da Causa Freudiana (na França e com seção na Bélgica), a Escola de Caracas (com ramificações na Colômbia, Bolívia, Chile e Peru) e a Escola de Orientação Lacaniana (na Argentina).

A crise foi deflagrada justamente a partir da tensão entre as Escolas com sua particularidade e a organização da AMP, que aos poucos foi se tornando uma superestrutura que as abarcava. Uma Escola concebida em termos lacanianos pressupõe a permutação e a garantia. A permutação visa estabelecer o funcionamento da hierarquia (diretoria e conselho), evitando que esta se perpetue no poder, e a manutenção de sua separação do gradus. A hierarquia é assegurada por eleição em Assembléia Geral ou por nomeação do conselho. Isto varia de acordo com os estatutos das Escolas e com o cargo na hierarquia. Por exemplo, na EBP o diretor-adjunto seguinte de cada seção é nomeado pelo diretor em exercício e ratificado ou não pelo conselho. Assim, o diretor em exercício decide sobre o sucessor de seu sucessor ­ o diretor-adjunto em exercício ­ mediante aprovação do conselho. O mesmo ocorre com o diretor-secretário ­ tesoureiro-adjunto . Os demais diretores-adjuntos ­ de cartel e de biblioteca ­ são cotados em Assembléia Geral.

A garantia funciona para o gradus, que depende de uma nomeação. Os Analistas Membros da Escola (AME) são chistosamente chamados por Lacan de âme, as almas da Escola. Na sua primeira versão da "Proposição de 9 de outubro" ele os coloca no lugar do sintoma no grafo do desejo. Os AME são o sintoma de uma Escola porque são a resposta que a Escola dá ao Outro social que interroga: "Afinal, quem são os analistas desta Escola?". A resposta vem na nomeação dos AME: "Estes são os analistas garantidos por esta Escola".

Já a garantia do Analista da Escola (AE) corresponde, segundo Lacan ao significante da falta no Outro ­ S ($). Sua nomeação não provém de uma questão que chega do socius: ela responde à questão interna da Escola no que diz respeito à pulsão. A nomeação de um AE faz ressoar as perguntas de Lacan no Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964): ''O que se torna então aquele que passou pela experiência desta relação, opaca na origem, à pulsão? Como um sujeito que atravessou a fantasia radical pode viver a pulsão?''. E Lacan completa ainda em 1964, ''isto é um mais-além da análise, e jamais foi abordado''.(Lacan, 1979, p. 258).

O AE é, nomeado a partir do passe, que é o dispositivo inventado por Lacan em 1967 para tentar responder às questões acima enunciadas. Trata-se na verdade de um dispositivo ao mesmo tempo muito simples e muito complexo. O sujeito que julga ter terminado sua análise e deseja dar seu depoimento para fazer avançar a psicanálise dirige-se à Secretaria do Passe, tem uma entrevista e, uma vez aceito, sorteia dois passadores que irão escutá-lo. Os passadores são analisantes que estão no momento de passagem do final de sua análise. O passante se encontrará com os passadores, um a um em separado, e dará seu depoimento. Os passadores, por sua vez, também em separado, transmitirão este depoimento ao Cartel do Passe, composto por cinco analistas que ouvirão os depoimentos dos passadores, estudarão o caso clínico e decidirão sobre a nomeação ou não do AE.

Uma vez nomeado AE, cabe a este analista dar, durante três anos, o ensino mais importante da Escola: ensinar a partir de sua própria experiência com a psicanálise, a partir do que aprendeu, às suas próprias custas, no divã. Como se pode observar, a Escola de Lacan é uma estrutura complexa que se sustenta na tensão dialética entre hierarquia e gradus, e entre os próprios gradus.Visa desta forma manter o funcionamento independente das pessoas (permutação da hierarquia) e a abertura da psicanálise para o novo que a faça avançar (dialética AME x AE).

II

A crise na AMP, que resultou na Cisão de 1998, inscreve-se por sua vez no cerne da história da psicanálise, marcada por crises, compromissos e cisões. Na verdade a dissolução está inscrita na história da psicanálise desde seu nascimento. Em 1907, Freud escreve para os membros de seu pequeno grupo de amigos conhecido como a Sociedade Psicanalítica das Quartas-Feiras: "Desejo informar ao senhor que proponho no início deste novo ano de trabalho, dissolver a pequena Sociedade que costuma reunir-se às quartas-feiras em minha casa e imediatamente a seguir trazê-la de novo a vida" (Jones, v. II, 1989, p. 25, grifo meu).

Freud alega estar "apenas levando em conta as mudanças naturais nas relações humanas" e propõe que a cada três anos a Sociedade se dissolva e se reconstitua a partir de uma notificação de cada um dos seus membros ratificando seu desejo de prosseguir. A Sociedade Psicanalítica das Quartas-Feiras começara em 1902, mas o próprio Jones, biógrafo de Freud, diz que "o início do que se tornaria depois a famosa Sociedade Psicanalítica de Viena, mãe e tantas outras subeqüentes não tem sido de fácil elucidação" (ibid, p. 23). Seja como for, a idéia de uma dissolução já está presente em Freud desde o início do processo de institucionalização da psicanálise.

Em 1908 os interessados na teoria freudiana se reúnem em Salzburg, por iniciativa de Jung. No domingo 26 de abril de 1908, um grupo de estudiosos vindos de vários países se reúne no Hotel Bristol e ouve durante cinco horas seguidas a apresentação do caso do Homem dos Ratos. Outros oito trabalhos foram apresentados e Jones descreve assim este primeiro encontro: "O Congresso diferiu de todos os subsequentes por não ter presidente, nem secretário, nem tesoureiro, nem conselho, nenhum tipo de subcomitê e ­ o melhor de tudo ­ nenhuma reunião administrativa! Durou apenas um dia" (ibid, p. 54).

O segundo Congresso Psicanalítico Internacional realizou-se em Nuremberg nos dias 30 e 31 de março de 1910. No ano anterior, Freud estivera nos Estados Unidos, levando sua peste analítica. Em 1º de janeiro de 1910, escreve para Ferenczi encarregando-o de apresentar uma proposta de associação de psicanalistas no Congresso de Nuremberg:

"Aliás, o que o Sr. acha de uma organização mais rigorosa com a formação de uma associação e uma pequena contribuição para os membros? Acha positivo? [Ao que Ferenczi responde prontamente] "Considero sua proposta extremamente pertinente, mas seria preciso controlar a admissão dos membros com o mesmo rigor da Associação Vienense; seria um meio de manter à distância elementos indesejáveis" (apud. Falzeder, 1994, p. 180-2).

Freud propunha, na verdade, ampliar a psicanálise para além do restrito círculo dos analistas judeus, o que em parte explicava seu entusiasmo por Jung. Encarrega Ferenczi de apresentar a proposta no Congresso, sugerindo Jung como seu primeiro presidente. Ferenczi o faz de tal modo, que ofende os analistas vienenses, desqualificando-os.

Segundo Jones, à proposta de Ferenczi seguiu-se "de imediato uma onda de protestos" (Jones, v. II, 1989, p. 82). Assim, o nascimento da primeira organização internacional de psicanalistas já emerge sob o signo do debate entre o Uno (psicanálise para os vienenses) e o múltiplo (psicanálise sem fronteiras). É também o Uno, porém o da orientação teórica freudiana, que estará no cerne da ruptura de Adler e de Jung nos anos seguintes. Esta tensão está presente ao longo de toda a história do movimento psicanalítico e nem mesmo a presença viva de Freud, o criador da psicanálise, impediu os mais variados desvios de suas concepções teóricas.

A partir da segunda metade da década de 1920, por exemplo, surge o que Lacan chamou de "um exemplo de paixão doutrinal, à qual a degradação da psicanálise, consecutiva a sua transplantação norte-americana, acrescenta um valor de nostalgia" (Lacan, 1998, p. 694). Trata-se de um debate que confrontou de um lado Freud [ com três artigos: "Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos" (1925), "Sobre a sexualidade feminina" (1931) e "A feminilidade" (1932)] e de outro Karen Horney, Helen Deutch e Ernest Jones. O biógrafo de Freud narra assim suas diferenças: "Minhas próprias divergências eram em parte dúvida sobre a teoria de Freud de uma pulsão de morte e em parte uma concepção algo diferente do estágio fálico do desenvolvimento, particularmente nas mulheres. Assim, em 24 de abril de 1935, li um artigo sobre o último assunto perante a Sociedade de Viena, Freud nunca concordou com meus pontos de vista e talvez estivessem errados: acho que até agora a questão não foi inteiramente esclarecida" (Jones, v. III, 1989, p. 203).

Na verdade a "concepção algo diferente" a que Jones se refere é a questão do falo. Todo o debate gira em torno disto: de um lado Freud defendendo a primazia do falo como organizador da diferença sexual, e do outro lado os demais autores, cada um a seu modo, defendendo uma simetria lógica entre a sexualidade feminina e a masculina. Em outras palavras, é o próprio cerne da doutrina psicanalítica ­ resumido por Lacan no axioma "Não existe a relação sexual" ­ que está em questão.

III

Assim como no caso da chamada "Querela do falo", nem todas as divergências teóricas em psicanálise degeneraram em uma crise, e nem toda crise em ruptura, como aconteceu na Cisão de 1998 da Escola Brasileira de Psicanálise. Dentro do quadro geral da história do movimento psicanalítico, a própria ruptura, quando se dá, impõe uma reflexão sobre a lógica que preside o agrupamento dos analistas.

O que poderia se presentificar na ruptura como um momento de concluir é na verdade o instante de ver de uma nova maneira de convivermos em um nível internacional. Revendo os vários momentos da Cisão de 1998, podemos verificar que isto já estava anunciado nos debates. Os herdeiros de Lacan, a comunidade analítica que quer prosseguir com sua Escola, querem constituir uma comunidade de pares; que alguns destes pares sejam ímpares é evidente, já que o próprio sujeito do inconsciente, como efeito de linguagem, assim o é.

Uma comunidade de pares que possam ser ímpares não é uma fratria. Poderá ser talvez, como Lacan o desejou, um refúgio ao mal-estar inevitável à civilização. Não podemos, no entanto, nos esquecer que o impossível está no cerne de toda aglutinação de psicanalistas. Revendo e estudando os vários momentos das crises da história do movimento psicanalítico e os da Cisão de 1998 podemos verificar que a coesão institucional só se dá à medida que se exclui o discurso do analista e o impossível que está escrito no numerador a ----> $

Foi o que ocorreu em 1945 na IPA, em que o acordo de Damas fez calar a efervescência da criação ex-nihilo, instaurando a burocracia do discurso universitário, e é o que acontece agora na AMP, em que o discurso do mestre impõe a estrutura de um exército.

Como construir uma comunidade em que circulem os quatro discursos e sobretudo da qual o discurso analítico não esteja excluído é o nosso desafio no momento. Talvez possamos fazer algo mantendo no horizonte a dissolução, como sugere Freud em 1907 e como retoma Lacan em sua proposição para a Escola.

A partir das três facticidades apontadas por Lacan em 1967, podemos refletir:

a) no simbólico, temos Édipo e a lei do pai. "Retirando o Édipo", nos diz Lacan, "torna-se justificável o delírio de Schreber". Uma comunidade analítica, composta por aqueles que de alguma forma passam pela experiência de ir além do pai, deve por isto mesmo se ater às leis por ela mesma criadas, para efeito regulador. A importância que teve, em nível mundial e local, o desrespeito aos estatutos e à autoridade constituída poderá servir-nos como um poderoso alerta.

b) No imaginário, temos a obscenidade inevitável do grupo que nos faz pensar que outras crises virão, sem dúvida. Novas rivalidades, novas obscenidades. Mas se temos que errar, que sejam novos erros e não a repetição dos mesmos. Neste sentido, a revisão documental do que se passou pode nos guiar no caminho oposto à repetição.

c) No registro do real, surge no horizonte a segregação. Ao denominar-nos os segregados da AMP aponto para este real que não nos une, como o diz Michel Bousseyroux citando Lacan no Seminário:...ou pire, mas que pode nos unier.

É o real da experiência da Escola que pode nos manter unidos na radicalidade de nossa diferença subjetiva. Talvez deste modo, partindo do impossível, possamos caminhar para uma Escola possível. É uma aposta na psicanálise, mais uma vez e sempre.

 


Referências bibliográficas

1. FALZEDER, Correspondência Freud-Ferenczi. Rio de Janeiro, 1994.
2. JONES, E. Vida e obra de S. Freud, v. II. Rio de janeiro, Imago, 1989.
3. LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.
4. ----------. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.


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