CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A PSICOPATOLOGIA CONTEMPORÂNEA

 

Mario P. Fuks

 

                                                                               

Nas últimas décadas, a clínica psicanalítica tem se estendido a tipos de sofrimento diferentes dos que constituíram sua clientela clássica.

Isto significou estímulos e, por momentos, desafios para  o trabalho terapêutico e um esforço para a conceitualização psicopatológica.

Houve invenção de conceitos novos e reformulações metapsicológicas globais, assim como novos critérios de modelização.

Pode-se estudar a história destas relações, como por exemplo: demanda clínica, criação de conceitos teóricos e reformulação do modelo de aparato psíquico; mas é possível, ou necessário, tentar pensar nestas alterações à luz das mudanças mais gerais que afetam a sociedade e conferem caraterísticas peculiares à subjetividade contemporânea.

Em Neuroses e Psicoses (1924),  Freud, desenvolvendo a idéia  de que tais formações psicopatológicas são compreensíveis, em termos de conflitos do "eu" com as diversas instâncias que o governam, correspondentes, portanto, a um malogro de sua função, diz que em certas circunstâncias "o "eu" terá a possibilidade de evitar a ruptura para qualquer um dos lados, deformando-se a si mesmo, consentindo menoscabos à sua unicidade e eventualmente segmentando-se e partindo-se".

Em função disso, as "inconseqüências , extravagâncias e loucuras dos homens apareceriam, assim, sob uma luz semelhante a de suas perversões sexuais: em efeito aceitando-as, eles se poupam de recalcamentos". (p. 158)

O mecanismo da recusa, que já se antecipa nesse trabalho, como um meio para lidar com certos aspectos da realidade externa, dará conta, como no fetichismo, de algumas das extravagâncias próprias desses quadros.

Pensamos que outra das deformações corresponderia a um tipo de redução ou  "esvaziamento" dos conteúdos do "eu". Falando dos nexos  do "eu" com o mundo exterior, Freud diz o seguinte:

" Normalmente o mundo exterior governa o id por dois caminhos: em primeiro lugar pelas percepções atuais, das quais sempre é possível se obter outras novas e, em segundo lugar, pelo tesouro mnêmico de percepções anteriores que formam, como "mundo interior", um patrimônio componente do "eu"(p. 156). Na amência, ambos caminhos ficam desinvestidos. A partir disso, podemos pensar que nos quadros que Freud descreve, neste trabalho, como alterações do "eu", o caminho perceptivo atual ficaria aberto mas o tesouro de representações, lembranças, fantasias, pensamentos, emoções e linguagens  estaria limitado ou bloqueado e o "mundo interior" acabaria, recorrendo à terminologia freudiana, reduzido em seu valor psíquico e investidura.

Em conseqüência, a relação com a realidade tenderá a ser formal e fatual, com pouca densidade significativa , dada a limitação de recursos elaborativos  afetivos, imaginativos e simbólicos. Isto limita as possibilidades  de processamento da tensão pulsional pela via do princípio do prazer-realidade, através das formações do inconsciente e da ação específica destinada a alcançar a satisfação  na realidade. 

É possível que o incremento de excitação sexual parcialmente erotizada, resultante da afluência intensa e veloz  de estímulos, operando segundo o modelo das neuroses atuais, seja o elemento que rompe o equilíbrio, acrescentando às "extravagâncias" apontadas, a produção de sintomas neuróticos, mas principalmente de  mecanismos evacuativos da tensão inelaborável,  como a somatização, o "acting-out" e  as diferentes saídas aditivas.

A investigação clínica e teórica deste tipo de alterações começou a alargar-se e consolidar-se por volta dos anos 30 com o trabalho de Helen Deutsch sobre as "Personalidades as if"  ou "personalidades como se".

Os pacientes, que eram em sua maior parte mulheres, apresentavam uma normalidade aparente (na verdade passividade e submissão ao meio), falta de autenticidade e calor; suas expressões emocionais eram formais, estando excluída toda experiência interna. Se pareciam com atores experimentados que se  dedicam a fazer  "como se". ( Deutsch, 1934)

A autora afirmava que existiam menos recalcamentos do que falta de catexis de objeto, apesar do qual, uma modalidade imitativa e mimética  permitia a adaptação ao meio. Graças a uma combinação de passividade e plasticidade, qualquer objeto podia servir para uma identificação rápida mas superficial, que permitia uma fácil substituição posterior. 

Sem mal-estar, sem angústia (a angústia nesses quadros era sentida pelo outro).

O que se passava com elas? Algo faltava... mas o que? Um vazio sem emoções, uma forma sem conteúdo pessoal. Uma ausência de si.

No psicótico, ou pré-psicótico, o outro é usado para o controle projetivo do insuportável dentro de si, através da externalização. Estas outras personalidades, utilizavam o exterior para suprir o vazio de seu espaço interior. Não expulsavam de dentro para fora como o psicótico; não faziam uma posta em cena como o histérico, de um script fantasmático interior. Encontravam um cenário psíquico num mundo exterior, precisavam  de um diretor de cena para sentir-se existindo. (Pontalis,1973)

Por volta dos anos 60, descrições de pacientes com estas características  aparecem em trabalhos de Winnicot sobre o "falso-self", de Bleger , nos anos 70, sobre "personalidades fácticas", e posteriormente, com referenciais teóricos diferentes, os transtornos e "personalidades narcísicas" de Kohut e de Kernberg.

Vários aspectos podem ser destacados a respeito das características da abordagem da maior parte destes trabalhos:

Se utilizamos um referencial exclusivamente freudiano, as patologias que estamos  considerando podem ser definidas, desde o ponto de vista fenomenológico, como transtornos do  caráter ou "tipos de personalidade", nos quais o determinante são as alterações do "eu" no campo do narcisismo, sem chegar a constituir-se como psicoses ou neuroses narcisísticas (melancolias), mas que afetam o sentido e o valor do "eu" .

Se verifica um tipo de escolha de objeto predominantemente narcisístico, com relações de objeto de um caráter peculiar; um funcionamento defensivo que envolve os mecanismos de recusa e dissociação com produção de formações sintomáticas, condutuais e relacionais de significação fetichística (as extravagâncias ou loucuras);

um funcionamento presente, mas limitado, dos processos de elaboração psíquica de tipo neurótico e segundo o princípio de prazer-realidade, que ao falir, descompensar-se ou ser sobrepassado pelas tendências narcísisticas e a compulsão de repetição, tende a funcionar "para   além do princípio do prazer", com produção de sintomas psico-somáticos, "acting-out",  explosões de pânico e condutas aditivas.

As características apontadas permitem associar estas formações psicopatológicas com outros quadros que tendem a ser constituídos, hoje em dia, como entidades nosográficas independentes como as adições, anorexias-bulimias, doenças psico-somáticas, síndrome de pânico, muitas depressões e certas perversões. Associá-las não quer dizer reuni-las, nem fazê-las dependentes de um tipo de personalidade. No entanto, as dinâmicas reconhecidas são úteis para compreender os diversos quadros. Tendem a ser incluídas, todas elas, numa denominação muito geral de patologias de borda, ou patologias atuais ou contemporâneas, tanto pelo caráter epidêmico, que muitas delas vêm adquirindo, como a partir das linhas de trabalho que enfatizam em  sua determinação o papel dos modos hegemônicos de produção de subjetividade. (ver Fuks, 1999).

 

Mas voltando aos trabalhos, de certo modo históricos, já mencionados, se  tende neles a valorizar, cada vez mais, a incidência do meio ambiente familiar, as características dos vínculos intersubjetivos, as falhas dos cuidados parentais em épocas precoces.

Se criam ou valorizam novos conceitos metapsicológicos, como o de "self", "não-eu", "partes ou núcleos psicóticos" etc., e se recorre a conceitos de outros campos: identidade, individuação, personificação. Num trabalho renovado de modelização, se valorizam diferentemente os mecanismos psíquicos fundamentais  e os secundários, nos processos constitutivos e nos mecanismos patogenéticos, dependendo em grande medida, das diferentes escolas e linhas teórico-clínicas pós-freudianas, que se desenvolvem na história da psicanálise.

É interessante o que dizia Pontalis em seu artigo "Nascimento e Reconhecimento do Self", de 1973, comentando a literatura psicanalítica anglo-saxônica: ele lançava de início uma pergunta divertida, para uma leitura em tempos de globalização: "o self é exportável?".

Sua conclusão, a certa altura do trabalho, é interessante:

"Para o psicanalista francês, o self pode ser visto como uma concepção pré-analítica, de um sujeito unificado e unificante, de um sujeito que pode reconhecer-se como si mesmo, si e mesmo, ou seja, como unidade e continuidade, precária certamente, lábil, alterável, mas susceptível de escapar em seu ser, à irredutibilidade do conflito, à alteridade do inconsciente, ao inconciliável das representações, à parcialidade das pulsões, à multiplicidade díspar das identificações. Um século, hoje, de experiência analítica, tem minado a ilusão de um sujeito monádico, de uma pessoa total, segura de pertencer-se." (p. 159). Um século, hoje, de experiência analítica, tem minado a ilusão de um sujeito monádico, de uma pessoa total, segura de pertencer-se" (p.159).

Mas, diz Pontalis, que se introduziram o self foi para resolver o problema que lhes causava a análise de seus pacientes. "O momento em que os conceitos são mais úteis é quando se estão formando". Me ocorre que isto pode ser válido e útil para o trabalho de compreender e teorizar as patologias contemporâneas na atualidade. "Sou consciente - diz ele -  do que tem de oscilante em meu passo: sustento que a experiência clínica tem tornado necessária a introdução do self, e ao mesmo tempo, que o conceito não é aceitável." (p. 173). Emerge sim, como uma intuição na espessura do trabalho clínico. "Creio que se trata, tanto no paciente como no analista, de um fenômeno subjetivo que advém ou que falta, que tende a descobrir o término do self, muito mais que uma estrutura da pessoa ou a pessoa mesma" (p. 174). Me parece interessante esta posição; parece-me que, mais que manifestar uma  duplicidade incompatível na teoria, estimula a exploração, no campo da clínica, da problemática da crença e do sentido nas vivências do "eu", ou de seu bloqueio/desbloqueio, como no estranho-familiar, a despersonalização , o "déjà-vu"  etc..

Se valorizou crescentemente o impacto do contexto sócio-cultural, as mudanças nos modos do convívio familiar e as formas de sociabilidade, das formas de individuação e de laço social, sob o impacto do capitalismo avançado, da sociedade do consumo e do espetáculo etc..

Cientistas sociais, psicólogos sociais etc., passaram a ser interlocutores importantes. Ao mesmo tempo em que os psiquiatras, a partir de uma reativação de um pensamento positivista e uma fundamentação organicista, querem desprender-se da linguagem da psicanálise, os cientistas sociais tendem mais e mais a recorrer a ela, especialmente no que se desprende das problemáticas que estamos abordando, com o intuito de construir um perfil da subjetividade contemporânea. Me proponho a enfatizar estes últimos aspectos nas considerações que seguem:

Bleger (1967) fala sobre pacientes que funcionam na ambigüidade,  o que implica em um "eu" constituído por diversos núcleos, cada um dos quais se caracteriza por uma indiscriminação "eu" / "não-eu", correspondendo à organização mais primitiva e indiferenciada ou fusional, em relação aos objetos. O "eu", ele diz,  não tem se interiorizado, está basicamente constituído por um conjunto de papéis e a passagem de um para outro produz um efeito de ficticidade. Isto supõe a hipótese de que o ser humano parte de uma organização em "sistema aberto" e que, gradativamente, vai se individualizando e personificando (p.189). Quando estes processos começam a acontecer, emergem os sentimentos de vazio, busca ansiosa de um objeto que os preencha, que dê um sentido à sua existência, o que pode conduzir à promiscuidade sexual ou à acessos de bulimia, tendo todos o mesmo objetivo: preencher o vazio. No horizonte, se buscaria que uma situação de estabilidade permitisse enfrentar a crise e as confusões e contradições resultantes da crise de identidade. Passar a estruturar-se como "eu fáctico" consiste em aderir-se caracteropaticamente a uma instituição, grupo, trabalho ou pessoas, que contém e imobilizam o núcleo aglutinado - a área de organização sincrética ou psicótica da personalidade - e que passam a ser a identidade do sujeito. Estão totalmente orientados para a ação, com pouco desenvolvimento de um pensamento autonomizado do mundo externo que suporia a presença de um "eu" interiorizado. Esse "eu fáctico" é um "eu" de pertinência; não há um "eu interiorizado" que dê estabilidade interna ao sujeito. (p. 245)

O que pode ser observado  através  destas descrições, como um negativo de uma fotografia, corresponde aos traços essenciais de um modo de diferenciação e individuação que é próprio da modernidade e que aponta a um imaginário de "interioridade".

A instauração da propriedade e a constituição da privacidade, com a criação concomitante de espaços diferenciados entre o privado e o público, alcançam seu ápice com o indivíduo burguês, pelo menos no mundo capitalista ocidental. (ver Galende, 1994)

Propriedade, privacidade, individualidade e intimidade, a partir de um "interior", permitem estabelecer e assegurar a relação com os outros e com o próprio corpo. "A porta", essa figura tão presente na literatura, dá um suporte imaginário à articulação entre o espaço próprio do homem e o que está fora dele. George Simmel, citado por Galende, diz: "é essencial para o homem, no mais profundo, o fato de que ele mesmo se ponha uma fronteira, porém com liberdade, ou seja, de maneira que também possa superar novamente essa fronteira, e situar-se mais além dela". (p. 65-66).  Conforme esta concepção da subjetividade, própria da modernidade, as figuras que delimitam o normal e o patológico correspondem a estar "dentro de si" ou "fora de si". 

No entanto, contemporaneamente, o individualismo como valor exacerbado, somado à queda de valores do público, como espaço de cooperação, emulação,  concorrência e solidariedade,  tende a conformá-lo como lugar de massificação, promovendo a indiferenciação e o predomínio da ambigüidade, no sentido de Bleger, como dificuldade crescente de discriminação. A individuação torna-se individualismo e este, por sua vez, isolamento e indiferenciação.

Por outro lado, os valores de profundidade e interioridade vão perdendo espaço, tendendo a serem substituídos por valores referidos  à superfície  e exterioridade.

Contribuem  para isso, as formas novas de sociabilidade, que tendem promover a conformação das  individualidades no modo de estilos, estilos de ser e aparecer em uma cena social, configurada como espetáculo.

O que se denomina cultura pós-moderna gira em torno de um neo-individualismo exacerbado e hedonista, associado a uma subjetividade consumista e que, desde os primeiros trabalhos de C. Lasch, referidos ao assunto,  se considera freqüentemente como  narcisista.

Ser homem implica, nesta cultura, em ser reconhecido como imagem por outro que também o é. O consumo requer um espectador ou testemunha.

Na composição da personagem que identifica o sujeito neste cenário , a imagem do corpo ganha um papel de relevância. A exacerbação desta lógica de sujeitos-fachada, constituídos de imagem, sem volume nem interioridade (Birman, 1999), terá fortes efeitos patogênicos que envolvem a corporalidade, tais como anorexia-bulimia, compulsão e adição às práticas farmacológicas, fisioterápicas, cirúrgicas ou esotéricas de emagrecimento, rejuvenescimento etc..

O corpo fica submetido aos mandatos do ideal. Sobrevalorizado e exigido, acusando os efeitos do stress resultante, as culpas por suas alterações e sofrimentos serão apontadas na conta do seu portador, que deveria ser capaz, em nome de ilusão de domínio onipotente sobre os limites fisiológicos, o envelhecimento e a morte, de defender-se por si só de seus efeitos patogênicos.

A entrada em anorexia terá como objetivo buscar um ideal absoluto e hipnotizante que impõe o triunfo da imagem sobre a percepção. É a partir daí que ela passa a ser quem dá as cartas: triunfa sobre a necessidade alimentar, a sexualidade e as regras da moderação. Forçada a comer, o desespero será dos outros. Alcoólatras, toxicômanos e alguns perversos ficam fora do alcance da angústia com o mesmo recurso.

História, temporalidade e projeto, como mediação simbólica e regulação narcisística desaparecem. As relações amorosas tendem a ser superficiais e passageiras, com pouca tendência a transformar-se em verdadeiros vínculos.  Os afetos são tênues, sem enigmas nem dramas. Igual as personalidades "como se", de H. Deutsch, a relação se impregna de tédio, futilidade e vazio.

Não havendo perda, mas substituição, também faltam a nostalgia e o reencontro. Não se cultiva a memória nem se dá lugar ao luto. 

Nas situações de convívio, o espaço intermediário que reúne e separa aos co-partícipes, se vê submetido a flutuações dependentes de uma ilusão de igualdade homogeneizante (ser idênticos) ou de rejeições e encastelamentos defensivos, frente a cada movimento do outro vivido como  invasivo. O temido, no fundo, é o elemento estranho e indeterminável do outro, que Bleger associou aos núcleos sincréticos da personalidade, cuja mobilização ou perda de controle seria a causadora da emergência do sinistro (unheimlich) na relação.

A sobreadaptação tende, nestas circunstâncias,  a reduzir o espaço intermediário, a obturá-lo com uma realidade totalmente "familiar".

Realidade fatual, sem densidade significativa. É uma realidade que opera como contracatexia, como elemento selante que é tanto mais eficaz quanto mais se adira aos marcos convencionais da convivialidade de moda.

Procuram-se encontros extra-matrimoniais sigilosos, o que em si não representa nenhuma novidade,  mas que são estranhamente anônimos, na procura de uma experiência leve, diferente e "segura", destinada à consecução de um prazer vívido que ameaçava desaparecer, mas destinadas prioritariamente a afirmar a ilusão de que é possível um encontro desejante sem nenhum compromisso afetivo  .

A fuga da angústia frente aos enigmas, incertezas, paixões ou perdas de amor  que a alteridade e a intersubjetividade podem acarretar, tem uma presença quase universal nas patologias da contemporaneidade.

Obviamente são produzidas depressões, mas são depressões sem luto, com manifestação de sensações mais do que de emoções, empobrecimento da fantasia e da imaginação e falta de transferência, que nos fazem pensar num efeito cumulativo de perdas, que não foram vivenciadas como tais porque os objetos sucessivos não parecem ter sido investidos, mas consumidos.

 

Vamos, então, à questão do consumo. Trabalhos atuais sobre subjetividade e consumo mostram o seguinte: o consumidor deve ser um  sujeito que varia sistematicamente de objeto de consumo sem alterar sua posição subjetiva. Desde criança, a vertiginosa substituição de roupas e brinquedos o instaura numa lógica de equivalência específica:  o elemento novo da série é melhor porque é novo.

O  anterior não cai por ter feito já a experiência subjetiva da relação com este objeto particular, mas pela pressão do novo que vem desalojar o anterior (Lewkowicz, 1998).

O objeto anterior cai sem inserir-se numa história, porque o novo, válido em si mesmo, deve ter a capacidade de satisfazer integralmente o sujeito. Os signos de reconhecimento devem ser passíveis de desinvestimento afetivo e substituíveis.

No campo do trabalho, em que a diversificação da produção vem a ser o complemento deste tipo de consumo, a palavra de ordem, parece ser a mesma: "Não deixe que nada grude em você!". (Sennet, 1999)

Esses objetos constituídos pela lógica do consumo como aqueles dos quais não se faz experiência subjetiva, corresponderiam aos que E. Galende chama de objetos inertes, conotando tanto a significação apontada, como a impregnação pela inércia das relações afetivas que com eles se estabelece, seja como parceiros do amor, do sexo, do trabalho, da amizade ou da terapia. (Galende, 1997)

A "perda do objeto inserido numa história" tem na psicanálise um papel central na constituição do sujeito, a partir da constituição concomitante dos objetos materno e fálico. É produzida uma trama de perdas, deslocamentos, substituições, trocas. (Fuks, 1999)

 

Se tentarmos traçar as etapas deste caminho, desde seu início, tentando defini-las em términos da série de objetos parciais que vão se sucedendo, poderíamos definir vários momentos.

O primeiro momento corresponde à "experiência de satisfação" a partir da qual, em um contexto de dependência total e indiferenciação, o lactante tem a possibilidade de recriar, através desse  movimento psíquico, que Freud denomina desejo, a  imagem alucinada do seio. O objeto pode ser concebido como um "boca-seio".

Um segundo tempo seria o do narcisismo primário e da constituição do "eu", onde é estabelecida uma diferenciação de espaços através de imagens unificadas, a do "eu" e a do "semelhante", captado como objeto exterior, em situação de  presença, em um contexto de dependência.

Neste contexto, a mãe implica em braços que dêem suporte ao corpo e um olhar que avalize a pertinência da imagem. Também requererá sua presença e seu olhar, para vir a reforçar a imagem especular - esse objeto narcísico por excelência que me faz ser "eu" - quando o embate pulsional, o desprazer, a dor e o desamparo venham ameaçá-la, fazê-la vacilar ou fragmentá-la. Mas o objeto, como outro qualquer, se define aqui essencialmente, como feixe de projeções e pólo de identificações. Catectizado pelo sujeito sempre pode tornar-se parte do "eu". (Pontalis, op.cit, p.181)

Segundo Kohut, os transtornos narcísicos de personalidade terão como ponto de partida as falhas do adulto para responder às necessidades de reconhecimento e especularização, assim como a distância e ausência de figuras idealizadas que possam ser objeto de identificação.

O terceiro tempo, a partir uma perspectiva tópica, supõe a constituição do "não-eu" e sua estabilização. Ao mesmo tempo, implica em um desenvolvimento e enriquecimento do "eu" em um contexto em que começa a haver diferenciação e autonomia. A ausência da mãe torna-se suportável. Há um enriquecimento da vida de representação e imaginativa e da capacidade de manipulação e controle dos objetos materiais. Mas, também, no plano da realidade psíquica se estabelecem novas representações, substituições, composições fantasmáticas, e eqüivalências simbólicas. O "jogo do carretel" marca a possibilidade de simbolizar o corpo da mãe em ausência, combinando o brincar com objetos materiais e com os significantes verbais.

O "objeto transicional" (Winnicott) enfatiza a construção criativa de uma primeira possessão "não-eu", que representa a mãe e o "eu" sem ser nem a mãe nem o "eu", criando um espaço intermediário de experiência,  tanto própria quanto compartilhável.

Este espaço será, também, o da construção de crenças e o da instauração de fetiches.

O confronto com  a castração - quarto momento - resignifica retroativamente as sucessivas perdas e separações, abrindo para o reconhecimento das  diferenças sexuais.

Este reconhecimento não se produz de uma vez; implica em momentos de recusa, reelaboraçôes através de certas crenças, as chamadas teorias sexuais infantis (construídas, às vezes, em conjunto com outras crianças), que serão novamente desmentidas, construindo-se outras novas e, assim, sucessivamente.

Mas também pode acontecer a instauração de fetiches. Ambos os fenômenos - as crenças e os fetiches - se desenvolvem no plano da ilusão, sendo efeitos da recusa de uma realidade que desmente uma poderosa ilusão anterior. As crenças permitem manter investido tanto o plano da realidade como o da imaginação,  permitindo  uma alternância de detenções e progressos no trabalho de elaboração psíquica.

A instauração de fetiches opera um efeito de fascínio mas exige a repetição contínua da recusa da realidade, através de uma atividade do ego que coloca sempre um objeto presente ou com uma disponibilidade controlada, que sutura a falta e recusa a perda. A atividade, que caracteriza o funcionamento do ego fetichista, é correlativa a um empobrecimento do desejo, da fantasia, do investimento transferencial de novos objetos, da possibilidade de agir sobre a realidade em função do prazer.

Diferente do fetiche, a crença implica em uma  dimensão propiciatória de um jogo   intersubjetivo, que no fetichista falta. Se expressa nos jogos de magia e de prestidigitação, no esconde-esconde, na mentira e nos disfarces onde cabe à testemunha, tanto o momento da credulidade como o da descoberta do engodo. A construção de crenças põe em marcha uma elaboração imaginativa que servirá de precursor e suporte a representações conducentes à assunção do próprio sexo, ao estabelecimento das identificações secundárias, ao estabelecimento dos valores e ideais constitutivos do ideal do ego e do laço social necessários à elaboração de projetos vitais individuais e coletivos. Neste aspecto, é também um precursor do recalcamento secundário. (Bleichmar, 1984)

Algumas questões podem ser colocadas, no intuito de ligar as diversas ordens de considerações:

·       Que tipo de objeto é, a partir do ponto de vista psicanalítico, o objeto de consumo?

·       Que lugar ocupa o fetiche no campo do consumo?

·       Como chega a constituir-se este objeto chamado de  "inerte"?

·       Que papel jogam os diversos objetos e mecanismos que temos descrito?

O objeto de consumo se oferece como equivalente ao da experiência primeira, que traz a satisfação da pulsão e do desejo. Há ilusões em jogo:

·       que o objeto corresponde à uma necessidade que o antecede, recusando, com isso, o fato de que a oferta cria necessidades e demandas que não existiam;

·       que o objeto era justamente aquele que o sujeito estava esperando (primeiro tempo de Winnicot);

·       que o objeto venha a prover a satisfação total.

Esta última não se cumpre, o que seria impossível do ponto de vista psicanalítico. Para que o objeto caia e seja substituído pelo seguinte é necessário que a satisfação não seja completa. A promessa mantém o desejo "aceso" e mantêm a ilusão da satisfação completa através do fluir substitutivo contínuo. É este fluir de presenças sem corte o que será investido fetichisticamente. A angústia fundamental, da qual o sujeito deverá defender-se, não será provocada pela emergência da insatisfação, mas pela  emergência do vazio e o eclipse da imagem.

Porque o objeto de consumo fornece, como vimos, não só satisfação mas também  consistência ontológica. Ter é ser, e ser é ser imagem. Neste ponto, o objeto corresponde ao objeto narcísico da identificação especular. Até pode tender a confundir-se com ele (no engarrafamento narrado em "Auto-estrada do Sul", de Cortázar, as pessoas se chamam pelas marcas dos carros).

Há uma possibilidade ativa em selecionar o leque de traços que comporão a imagem. O papel do terceiro, que sustenta o valor e a pertinência da imagem, na cena do espetáculo (que poderia ser a instância de auto-observação do sujeito), tende a ser depositada (como nas formações de massa), num "metteur en scene" e outros expertos que acabam expropriando a atividade de seleção de traços, conforme os códigos que ele e outros expertos conhecem e  inventam e dominam. (Fuks, op.cit., p. 71-72)

A sucessão de experiências de exaltação egóica e os medos das falhas que provoquem colapsos narcísicos, somados à variação vertiginosa dos códigos, criam um estado de sobrexigência e tensão que desencadeia ou ameaça desencadear a série de  descarga acima apontados.

As experiências de desilusão geram a alternativa entre a  elaboração psíquica e a reelaboração de crenças e projetos que lhe dá suporte, ou a fuga rumo aos fetiches compensatórios que tendem a ocupar a cena: o álcool, as drogas legais ou ilegais e todo o tipo de condutas aditivas.

O objeto se torna inerte, na medida em que a saturação da demanda, resultante da oferta exacerbada, acaba provocando um colapso do desejo.

 É a resposta anoréxica, o desejo de nada, a rejeição da experiência de satisfação e, ao mesmo tempo, o recurso da presença do objeto para controlar fetichisticamente a emergência de angústia.

Como vimos com as "personalidades como se", o objeto tem que estar fora e não dentro; aliás, não existe um dentro; o que pode estar em si mesmo do outro é bem superficial, é como o tênue reflexo num espelho, mas somente reflexo, nada de refração.

Por outro lado, a dimensão traumática da imposição de consumo exacerbado, que nos últimos tempos não respeita limites, nem direitos e nem regulamentações, somada a uma quantidade de fatores de violência que vão além da questão do consumo, levam os sujeitos à uma retração narcísica secundária, defensiva, acompanhada de um desinvestimento libidinal do objeto.

Nos desfechos de tipo drogaditivo, uma incorporação do objeto de caráter narcisístico, parece produzir-se. Só que isto nos aproxima, do ponto de vista clínico e metapsicológico, para o campo das neuroses narcisísticas, provavelmente da melancolia. Sua consideração excede os objetivos que temos colocado para este trabalho. Sua menção nos parece, no entanto, válida, porque aponta para uma problemática premente que traz desafios para um trabalho clínico e teórico em psicopatologia que se referencia, tanto quanto se insere, numa análise crítica da subjetividade contemporânea.

 

BIBLIOGRAFIA.

 

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BLEGER, J. La ambigüedad en la clínica psicoanalítica. In: Simbiosis y ambigüedad. Buenos Aires, Paidós, 1967.

 

BLEICHMAR, S. Relações entre o recalcamento originário e o princípio de realidade. In: Nas origens do sujeito psíquico: do mito à história. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.

 

DEUTSCH, H. (1934). Algunas formas de transtorno emocional y su relación con la esquizofrenia. Revista Chilena de Psicoanálisis., (9): 9-19, 1992.

 

FREUD, S. (1925). Neurosis y psicosis. In: Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1996. v. 19.

 

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FUKS, M.P. Mal-estar na contemporaneidade e patologias decorrentes. Psicanálise e Universidade: revista do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise  e do Núcleo de Pesquisa "Psicanálise e Sociedade" da PUC-SP.

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LEWKOWICZ, I. Subjetividad adictiva. Un tipo psico-social históricamente constituído. Revista de la Asociación Argentina de Psicología y Psicoterapia de Grupo. Tomo 21, (1), 1998.

  

PONTALIS, J.- B.(1973). Nacimiento y reconocimiento del "si". In: Entre el sueño y el dolor. Buenos Aires, Sudamericana, 1978.

 

Mario P. Fuks

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