CONSIDERAÇÕES
TEÓRICAS SOBRE A PSICOPATOLOGIA CONTEMPORÂNEA
Nas últimas décadas,
a clínica psicanalítica tem se estendido a tipos de sofrimento
diferentes dos que constituíram sua clientela clássica.
Isto significou
estímulos e, por momentos, desafios para o trabalho terapêutico
e um esforço para a conceitualização psicopatológica.
Houve invenção
de conceitos novos e reformulações metapsicológicas globais,
assim como novos critérios de modelização.
Pode-se estudar
a história destas relações, como por exemplo: demanda clínica,
criação de conceitos teóricos e reformulação do modelo de
aparato psíquico; mas é possível, ou necessário, tentar
pensar nestas alterações à luz das mudanças mais gerais que
afetam a sociedade e conferem caraterísticas peculiares à
subjetividade contemporânea.
Em Neuroses e
Psicoses (1924), Freud, desenvolvendo a idéia de que
tais formações psicopatológicas são compreensíveis, em
termos de conflitos do "eu" com as diversas instâncias
que o governam, correspondentes, portanto, a um malogro de sua
função, diz que em certas circunstâncias "o "eu"
terá a possibilidade de evitar a ruptura para qualquer um dos
lados, deformando-se a si mesmo, consentindo menoscabos à sua
unicidade e eventualmente segmentando-se e partindo-se".
Em função
disso, as "inconseqüências , extravagâncias e loucuras
dos homens apareceriam, assim, sob uma luz semelhante a de suas
perversões sexuais: em efeito aceitando-as, eles se poupam de
recalcamentos". (p. 158)
O mecanismo da
recusa, que já se antecipa nesse trabalho, como um meio para
lidar com certos aspectos da realidade externa, dará conta, como
no fetichismo, de algumas das extravagâncias próprias
desses quadros.
Pensamos que
outra das deformações corresponderia a um tipo de redução ou
"esvaziamento" dos conteúdos do "eu".
Falando dos nexos do "eu" com o mundo exterior,
Freud diz o seguinte:
"
Normalmente o mundo exterior governa o id por dois caminhos: em
primeiro lugar pelas percepções atuais, das quais sempre é
possível se obter outras novas e, em segundo lugar, pelo tesouro
mnêmico de percepções anteriores que formam, como "mundo
interior", um patrimônio componente do "eu"(p.
156). Na amência, ambos caminhos ficam desinvestidos. A partir
disso, podemos pensar que nos quadros que Freud descreve, neste
trabalho, como alterações do "eu", o caminho
perceptivo atual ficaria aberto mas o tesouro de representações,
lembranças, fantasias, pensamentos, emoções e linguagens
estaria limitado ou bloqueado e o "mundo interior"
acabaria, recorrendo à terminologia freudiana, reduzido em seu
valor psíquico e investidura.
Em conseqüência,
a relação com a realidade tenderá a ser formal e fatual, com
pouca densidade significativa , dada a limitação de recursos
elaborativos afetivos, imaginativos e simbólicos. Isto
limita as possibilidades de processamento da tensão
pulsional pela via do princípio do prazer-realidade, através
das formações do inconsciente e da ação específica destinada
a alcançar a satisfação na realidade.
É possível que
o incremento de excitação sexual parcialmente erotizada,
resultante da afluência intensa e veloz de estímulos,
operando segundo o modelo das neuroses atuais, seja o elemento
que rompe o equilíbrio, acrescentando às "extravagâncias"
apontadas, a produção de sintomas neuróticos, mas
principalmente de mecanismos evacuativos da tensão
inelaborável, como a somatização, o "acting-out"
e as diferentes saídas aditivas.
A investigação
clínica e teórica deste tipo de alterações começou a alargar-se
e consolidar-se por volta dos anos 30 com o trabalho de Helen
Deutsch sobre as "Personalidades as if" ou "personalidades
como se".
Os pacientes,
que eram em sua maior parte mulheres, apresentavam uma
normalidade aparente (na verdade passividade e submissão ao meio),
falta de autenticidade e calor; suas expressões emocionais eram
formais, estando excluída toda experiência interna. Se pareciam
com atores experimentados que se dedicam a fazer "como
se". ( Deutsch, 1934)
A autora
afirmava que existiam menos recalcamentos do que falta de catexis
de objeto, apesar do qual, uma modalidade imitativa e mimética
permitia a adaptação ao meio. Graças a uma combinação de
passividade e plasticidade, qualquer objeto podia servir para uma
identificação rápida mas superficial, que permitia uma fácil
substituição posterior.
Sem mal-estar,
sem angústia (a angústia nesses quadros era sentida pelo outro).
O que se passava
com elas? Algo faltava... mas o que? Um vazio sem emoções, uma
forma sem conteúdo pessoal. Uma ausência de si.
No psicótico,
ou pré-psicótico, o outro é usado para o controle projetivo do
insuportável dentro de si, através da externalização. Estas
outras personalidades, utilizavam o exterior para suprir o vazio
de seu espaço interior. Não expulsavam de dentro para fora como
o psicótico; não faziam uma posta em cena como o histérico, de
um script fantasmático interior. Encontravam um cenário psíquico
num mundo exterior, precisavam de um diretor de cena para
sentir-se existindo. (Pontalis,1973)
Por volta dos
anos 60, descrições de pacientes com estas características
aparecem em trabalhos de Winnicot sobre o "falso-self",
de Bleger , nos anos 70, sobre "personalidades fácticas",
e posteriormente, com referenciais teóricos diferentes, os
transtornos e "personalidades narcísicas" de Kohut e
de Kernberg.
Vários aspectos
podem ser destacados a respeito das características da abordagem
da maior parte destes trabalhos:
Se utilizamos um
referencial exclusivamente freudiano, as patologias que estamos
considerando podem ser definidas, desde o ponto de vista
fenomenológico, como transtornos do caráter ou "tipos
de personalidade", nos quais o determinante são as alterações
do "eu" no campo do narcisismo, sem chegar a constituir-se
como psicoses ou neuroses narcisísticas (melancolias), mas que
afetam o sentido e o valor do "eu" .
Se verifica um
tipo de escolha de objeto predominantemente narcisístico, com
relações de objeto de um caráter peculiar; um funcionamento
defensivo que envolve os mecanismos de recusa e dissociação com
produção de formações sintomáticas, condutuais e relacionais
de significação fetichística (as extravagâncias ou loucuras);
um funcionamento
presente, mas limitado, dos processos de elaboração psíquica
de tipo neurótico e segundo o princípio de prazer-realidade,
que ao falir, descompensar-se ou ser sobrepassado pelas tendências
narcísisticas e a compulsão de repetição, tende a funcionar
"para além do princípio do prazer", com
produção de sintomas psico-somáticos, "acting-out",
explosões de pânico e condutas aditivas.
As características
apontadas permitem associar estas formações psicopatológicas
com outros quadros que tendem a ser constituídos, hoje em dia,
como entidades nosográficas independentes como as adições,
anorexias-bulimias, doenças psico-somáticas, síndrome de pânico,
muitas depressões e certas perversões. Associá-las não quer
dizer reuni-las, nem fazê-las dependentes de um tipo de
personalidade. No entanto, as dinâmicas reconhecidas são úteis
para compreender os diversos quadros. Tendem a ser incluídas,
todas elas, numa denominação muito geral de patologias de borda,
ou patologias atuais ou contemporâneas, tanto pelo
caráter epidêmico, que muitas delas vêm adquirindo, como a
partir das linhas de trabalho que enfatizam em sua
determinação o papel dos modos hegemônicos de produção de
subjetividade. (ver Fuks, 1999).
Mas voltando aos
trabalhos, de certo modo históricos, já mencionados, se tende
neles a valorizar, cada vez mais, a incidência do meio ambiente
familiar, as características dos vínculos intersubjetivos, as
falhas dos cuidados parentais em épocas precoces.
Se criam ou
valorizam novos conceitos metapsicológicos, como o de "self",
"não-eu", "partes ou núcleos psicóticos"
etc., e se recorre a conceitos de outros campos: identidade,
individuação, personificação. Num trabalho renovado de
modelização, se valorizam diferentemente os mecanismos psíquicos
fundamentais e os secundários, nos processos constitutivos
e nos mecanismos patogenéticos, dependendo em grande medida, das
diferentes escolas e linhas teórico-clínicas pós-freudianas,
que se desenvolvem na história da psicanálise.
É interessante
o que dizia Pontalis em seu artigo "Nascimento e
Reconhecimento do Self", de 1973, comentando a literatura
psicanalítica anglo-saxônica: ele lançava de início uma
pergunta divertida, para uma leitura em tempos de globalização:
"o self é exportável?".
Sua conclusão,
a certa altura do trabalho, é interessante:
"Para o
psicanalista francês, o self pode ser visto como uma concepção
pré-analítica, de um sujeito unificado e unificante, de um
sujeito que pode reconhecer-se como si mesmo, si e mesmo, ou seja,
como unidade e continuidade, precária certamente, lábil, alterável,
mas susceptível de escapar em seu ser, à irredutibilidade do
conflito, à alteridade do inconsciente, ao inconciliável
das representações, à parcialidade das pulsões, à
multiplicidade díspar das identificações. Um século, hoje,
de experiência analítica, tem minado a ilusão de um sujeito
monádico, de uma pessoa total, segura de pertencer-se." (p.
159). Um século, hoje, de experiência analítica, tem minado a
ilusão de um sujeito monádico, de uma pessoa total, segura de
pertencer-se" (p.159).
Mas, diz
Pontalis, que se introduziram o self foi para resolver o problema
que lhes causava a análise de seus pacientes. "O momento em
que os conceitos são mais úteis é quando se estão formando".
Me ocorre que isto pode ser válido e útil para o trabalho de
compreender e teorizar as patologias contemporâneas na
atualidade. "Sou consciente - diz ele - do que tem de
oscilante em meu passo: sustento que a experiência clínica tem
tornado necessária a introdução do self, e ao mesmo tempo, que
o conceito não é aceitável." (p. 173). Emerge sim, como
uma intuição na espessura do trabalho clínico. "Creio que
se trata, tanto no paciente como no analista, de um fenômeno
subjetivo que advém ou que falta, que tende a descobrir o
término do self, muito mais que uma estrutura da pessoa
ou a pessoa mesma" (p. 174). Me parece interessante esta
posição; parece-me que, mais que manifestar uma duplicidade
incompatível na teoria, estimula a exploração, no campo da clínica,
da problemática da crença e do sentido nas vivências do "eu",
ou de seu bloqueio/desbloqueio, como no estranho-familiar, a
despersonalização , o "déjà-vu" etc..
Se valorizou
crescentemente o impacto do contexto sócio-cultural, as mudanças
nos modos do convívio familiar e as formas de sociabilidade, das
formas de individuação e de laço social, sob o impacto do
capitalismo avançado, da sociedade do consumo e do espetáculo
etc..
Cientistas
sociais, psicólogos sociais etc., passaram a ser interlocutores
importantes. Ao mesmo tempo em que os psiquiatras, a partir de
uma reativação de um pensamento positivista e uma fundamentação
organicista, querem desprender-se da linguagem da psicanálise,
os cientistas sociais tendem mais e mais a recorrer a ela,
especialmente no que se desprende das problemáticas que estamos
abordando, com o intuito de construir um perfil da subjetividade
contemporânea. Me proponho a enfatizar estes últimos aspectos
nas considerações que seguem:
Bleger (1967)
fala sobre pacientes que funcionam na ambigüidade, o que
implica em um "eu" constituído por diversos núcleos,
cada um dos quais se caracteriza por uma indiscriminação "eu"
/ "não-eu", correspondendo à organização mais
primitiva e indiferenciada ou fusional, em relação aos objetos.
O "eu", ele diz, não tem se interiorizado, está
basicamente constituído por um conjunto de papéis e a passagem
de um para outro produz um efeito de ficticidade. Isto supõe a
hipótese de que o ser humano parte de uma organização em
"sistema aberto" e que, gradativamente, vai se
individualizando e personificando (p.189). Quando estes processos
começam a acontecer, emergem os sentimentos de vazio, busca
ansiosa de um objeto que os preencha, que dê um sentido à sua
existência, o que pode conduzir à promiscuidade sexual ou à
acessos de bulimia, tendo todos o mesmo objetivo: preencher o
vazio. No horizonte, se buscaria que uma situação de
estabilidade permitisse enfrentar a crise e as confusões e
contradições resultantes da crise de identidade. Passar a
estruturar-se como "eu fáctico" consiste em aderir-se
caracteropaticamente a uma instituição, grupo, trabalho ou
pessoas, que contém e imobilizam o núcleo aglutinado - a área
de organização sincrética ou psicótica da personalidade - e
que passam a ser a identidade do sujeito. Estão totalmente
orientados para a ação, com pouco desenvolvimento de um
pensamento autonomizado do mundo externo que suporia a presença
de um "eu" interiorizado. Esse "eu fáctico"
é um "eu" de pertinência; não há um "eu
interiorizado" que dê estabilidade interna ao sujeito. (p.
245)
O que pode ser
observado através destas descrições, como
um negativo de uma fotografia, corresponde aos traços essenciais
de um modo de diferenciação e individuação que é próprio da
modernidade e que aponta a um imaginário de "interioridade".
A instauração
da propriedade e a constituição da privacidade, com a criação
concomitante de espaços diferenciados entre o privado e o público,
alcançam seu ápice com o indivíduo burguês, pelo menos no
mundo capitalista ocidental. (ver Galende, 1994)
Propriedade,
privacidade, individualidade e intimidade, a partir de um "interior",
permitem estabelecer e assegurar a relação com os outros e com
o próprio corpo. "A porta", essa figura tão presente
na literatura, dá um suporte imaginário à articulação entre
o espaço próprio do homem e o que está fora dele. George
Simmel, citado por Galende, diz: "é essencial para o homem,
no mais profundo, o fato de que ele mesmo se ponha uma
fronteira, porém com liberdade, ou seja, de maneira que também
possa superar novamente essa fronteira, e situar-se mais além
dela". (p. 65-66). Conforme esta concepção da
subjetividade, própria da modernidade, as figuras que delimitam
o normal e o patológico correspondem a estar "dentro de si"
ou "fora de si".
No entanto,
contemporaneamente, o individualismo como valor exacerbado,
somado à queda de valores do público, como espaço de cooperação,
emulação, concorrência e solidariedade, tende a
conformá-lo como lugar de massificação, promovendo a
indiferenciação e o predomínio da ambigüidade, no sentido de
Bleger, como dificuldade crescente de discriminação. A
individuação torna-se individualismo e este, por sua vez,
isolamento e indiferenciação.
Por outro lado,
os valores de profundidade e interioridade vão perdendo espaço,
tendendo a serem substituídos por valores referidos à
superfície e exterioridade.
Contribuem
para isso, as formas novas de sociabilidade, que tendem promover
a conformação das individualidades no modo de estilos,
estilos de ser e aparecer em uma cena social, configurada como
espetáculo.
O que se
denomina cultura pós-moderna gira em torno de um neo-individualismo
exacerbado e hedonista, associado a uma subjetividade consumista
e que, desde os primeiros trabalhos de C. Lasch, referidos ao
assunto, se considera freqüentemente como narcisista.
Ser homem
implica, nesta cultura, em ser reconhecido como imagem por outro
que também o é. O consumo requer um espectador ou testemunha.
Na composição
da personagem que identifica o sujeito neste cenário , a imagem
do corpo ganha um papel de relevância. A exacerbação desta lógica
de sujeitos-fachada, constituídos de imagem, sem volume nem
interioridade (Birman, 1999), terá fortes efeitos patogênicos
que envolvem a corporalidade, tais como anorexia-bulimia, compulsão
e adição às práticas farmacológicas, fisioterápicas, cirúrgicas
ou esotéricas de emagrecimento, rejuvenescimento etc..
O corpo fica
submetido aos mandatos do ideal. Sobrevalorizado e exigido,
acusando os efeitos do stress resultante, as culpas por suas
alterações e sofrimentos serão apontadas na conta do seu
portador, que deveria ser capaz, em nome de ilusão de domínio
onipotente sobre os limites fisiológicos, o envelhecimento e a
morte, de defender-se por si só de seus efeitos patogênicos.
A entrada em
anorexia terá como objetivo buscar um ideal absoluto e
hipnotizante que impõe o triunfo da imagem sobre a percepção.
É a partir daí que ela passa a ser quem dá as cartas: triunfa
sobre a necessidade alimentar, a sexualidade e as regras da
moderação. Forçada a comer, o desespero será dos outros. Alcoólatras,
toxicômanos e alguns perversos ficam fora do alcance da angústia
com o mesmo recurso.
História,
temporalidade e projeto, como mediação simbólica e regulação
narcisística desaparecem. As relações amorosas tendem a ser
superficiais e passageiras, com pouca tendência a transformar-se
em verdadeiros vínculos. Os afetos são tênues, sem
enigmas nem dramas. Igual as personalidades "como se",
de H. Deutsch, a relação se impregna de tédio, futilidade e
vazio.
Não havendo
perda, mas substituição, também faltam a nostalgia e o
reencontro. Não se cultiva a memória nem se dá lugar ao luto.
Nas situações
de convívio, o espaço intermediário que reúne e separa aos co-partícipes,
se vê submetido a flutuações dependentes de uma ilusão de
igualdade homogeneizante (ser idênticos) ou de rejeições e
encastelamentos defensivos, frente a cada movimento do outro
vivido como invasivo. O temido, no fundo, é o elemento
estranho e indeterminável do outro, que Bleger associou aos núcleos
sincréticos da personalidade, cuja mobilização ou perda de
controle seria a causadora da emergência do sinistro (unheimlich)
na relação.
A sobreadaptação
tende, nestas circunstâncias, a reduzir o espaço
intermediário, a obturá-lo com uma realidade totalmente "familiar".
Realidade fatual,
sem densidade significativa. É uma realidade que opera como
contracatexia, como elemento selante que é tanto mais eficaz
quanto mais se adira aos marcos convencionais da convivialidade
de moda.
Procuram-se
encontros extra-matrimoniais sigilosos, o que em si não
representa nenhuma novidade, mas que são estranhamente anônimos,
na procura de uma experiência leve, diferente e "segura",
destinada à consecução de um prazer vívido que ameaçava
desaparecer, mas destinadas prioritariamente a afirmar a ilusão
de que é possível um encontro desejante sem nenhum compromisso
afetivo .
A fuga da angústia
frente aos enigmas, incertezas, paixões ou perdas de amor que
a alteridade e a intersubjetividade podem acarretar, tem uma
presença quase universal nas patologias da contemporaneidade.
Obviamente são
produzidas depressões, mas são depressões sem luto, com
manifestação de sensações mais do que de emoções,
empobrecimento da fantasia e da imaginação e falta de transferência,
que nos fazem pensar num efeito cumulativo de perdas, que não
foram vivenciadas como tais porque os objetos sucessivos não
parecem ter sido investidos, mas consumidos.
Vamos, então,
à questão do consumo. Trabalhos atuais sobre subjetividade e
consumo mostram o seguinte: o consumidor deve ser um sujeito
que varia sistematicamente de objeto de consumo sem alterar sua
posição subjetiva. Desde criança, a vertiginosa substituição
de roupas e brinquedos o instaura numa lógica de equivalência
específica: o elemento novo da série é melhor porque é
novo.
O anterior
não cai por ter feito já a experiência subjetiva da relação
com este objeto particular, mas pela pressão do novo que vem
desalojar o anterior (Lewkowicz, 1998).
O objeto
anterior cai sem inserir-se numa história, porque o novo, válido
em si mesmo, deve ter a capacidade de satisfazer integralmente o
sujeito. Os signos de reconhecimento devem ser passíveis de
desinvestimento afetivo e substituíveis.
No campo do
trabalho, em que a diversificação da produção vem a ser o
complemento deste tipo de consumo, a palavra de ordem, parece ser
a mesma: "Não deixe que nada grude em você!". (Sennet,
1999)
Esses objetos
constituídos pela lógica do consumo como aqueles dos quais não
se faz experiência subjetiva, corresponderiam aos que E.
Galende chama de objetos inertes, conotando tanto a
significação apontada, como a impregnação pela inércia das
relações afetivas que com eles se estabelece, seja como
parceiros do amor, do sexo, do trabalho, da amizade ou da terapia.
(Galende, 1997)
A "perda do
objeto inserido numa história" tem na psicanálise um papel
central na constituição do sujeito, a partir da constituição
concomitante dos objetos materno e fálico. É produzida uma
trama de perdas, deslocamentos, substituições, trocas. (Fuks,
1999)
Se tentarmos traçar
as etapas deste caminho, desde seu início, tentando defini-las
em términos da série de objetos parciais que vão se sucedendo,
poderíamos definir vários momentos.
O primeiro
momento corresponde à "experiência de satisfação" a
partir da qual, em um contexto de dependência total e
indiferenciação, o lactante tem a possibilidade de recriar,
através desse movimento psíquico, que Freud denomina
desejo, a imagem alucinada do seio. O objeto pode ser
concebido como um "boca-seio".
Um segundo tempo
seria o do narcisismo primário e da constituição do "eu",
onde é estabelecida uma diferenciação de espaços através de
imagens unificadas, a do "eu" e a do "semelhante",
captado como objeto exterior, em situação de presença,
em um contexto de dependência.
Neste contexto,
a mãe implica em braços que dêem suporte ao corpo e um olhar
que avalize a pertinência da imagem. Também requererá sua
presença e seu olhar, para vir a reforçar a imagem especular -
esse objeto narcísico por excelência que me faz ser "eu"
- quando o embate pulsional, o desprazer, a dor e o desamparo
venham ameaçá-la, fazê-la vacilar ou fragmentá-la. Mas o
objeto, como outro qualquer, se define aqui essencialmente, como
feixe de projeções e pólo de identificações. Catectizado
pelo sujeito sempre pode tornar-se parte do "eu". (Pontalis,
op.cit, p.181)
Segundo Kohut,
os transtornos narcísicos de personalidade terão como ponto de
partida as falhas do adulto para responder às necessidades de
reconhecimento e especularização, assim como a distância e ausência
de figuras idealizadas que possam ser objeto de identificação.
O terceiro tempo,
a partir uma perspectiva tópica, supõe a constituição do
"não-eu" e sua estabilização. Ao mesmo tempo,
implica em um desenvolvimento e enriquecimento do "eu"
em um contexto em que começa a haver diferenciação e autonomia.
A ausência da mãe torna-se suportável. Há um enriquecimento
da vida de representação e imaginativa e da capacidade de
manipulação e controle dos objetos materiais. Mas, também, no
plano da realidade psíquica se estabelecem novas representações,
substituições, composições fantasmáticas, e eqüivalências
simbólicas. O "jogo do carretel" marca a possibilidade
de simbolizar o corpo da mãe em ausência, combinando o brincar
com objetos materiais e com os significantes verbais.
O "objeto
transicional" (Winnicott) enfatiza a construção criativa
de uma primeira possessão "não-eu", que representa a
mãe e o "eu" sem ser nem a mãe nem o "eu",
criando um espaço intermediário de experiência, tanto própria
quanto compartilhável.
Este espaço será,
também, o da construção de crenças e o da instauração de
fetiches.
O confronto com
a castração - quarto momento - resignifica retroativamente as
sucessivas perdas e separações, abrindo para o reconhecimento
das diferenças sexuais.
Este
reconhecimento não se produz de uma vez; implica em momentos de
recusa, reelaboraçôes através de certas crenças, as chamadas
teorias sexuais infantis (construídas, às vezes, em conjunto
com outras crianças), que serão novamente desmentidas,
construindo-se outras novas e, assim, sucessivamente.
Mas também pode
acontecer a instauração de fetiches. Ambos os fenômenos - as
crenças e os fetiches - se desenvolvem no plano da ilusão,
sendo efeitos da recusa de uma realidade que desmente uma
poderosa ilusão anterior. As crenças permitem manter investido
tanto o plano da realidade como o da imaginação, permitindo
uma alternância de detenções e progressos no trabalho de
elaboração psíquica.
A instauração
de fetiches opera um efeito de fascínio mas exige a repetição
contínua da recusa da realidade, através de uma atividade do
ego que coloca sempre um objeto presente ou com uma
disponibilidade controlada, que sutura a falta e recusa a perda.
A atividade, que caracteriza o funcionamento do ego fetichista,
é correlativa a um empobrecimento do desejo, da fantasia, do
investimento transferencial de novos objetos, da possibilidade de
agir sobre a realidade em função do prazer.
Diferente do
fetiche, a crença implica em uma dimensão propiciatória
de um jogo intersubjetivo, que no fetichista falta.
Se expressa nos jogos de magia e de prestidigitação, no esconde-esconde,
na mentira e nos disfarces onde cabe à testemunha, tanto o
momento da credulidade como o da descoberta do engodo. A construção
de crenças põe em marcha uma elaboração imaginativa que
servirá de precursor e suporte a representações conducentes à
assunção do próprio sexo, ao estabelecimento das identificações
secundárias, ao estabelecimento dos valores e ideais
constitutivos do ideal do ego e do laço social necessários à
elaboração de projetos vitais individuais e coletivos. Neste
aspecto, é também um precursor do recalcamento secundário. (Bleichmar,
1984)
Algumas questões
podem ser colocadas, no intuito de ligar as diversas ordens de
considerações:
·
Que tipo de objeto é, a partir do ponto de vista psicanalítico,
o objeto de consumo?
·
Que lugar ocupa o fetiche no campo do consumo?
·
Como chega a constituir-se este objeto chamado de "inerte"?
·
Que papel jogam os diversos objetos e mecanismos que temos
descrito?
O objeto de
consumo se oferece como equivalente ao da experiência primeira,
que traz a satisfação da pulsão e do desejo. Há ilusões em
jogo:
·
que o objeto corresponde à uma necessidade que o antecede,
recusando, com isso, o fato de que a oferta cria necessidades e
demandas que não existiam;
·
que o objeto era justamente aquele que o sujeito estava esperando
(primeiro tempo de Winnicot);
·
que o objeto venha a prover a satisfação total.
Esta última não
se cumpre, o que seria impossível do ponto de vista psicanalítico.
Para que o objeto caia e seja substituído pelo seguinte é
necessário que a satisfação não seja completa. A promessa
mantém o desejo "aceso" e mantêm a ilusão da satisfação
completa através do fluir substitutivo contínuo. É este fluir
de presenças sem corte o que será investido fetichisticamente.
A angústia fundamental, da qual o sujeito deverá defender-se, não
será provocada pela emergência da insatisfação, mas pela
emergência do vazio e o eclipse da imagem.
Porque o objeto
de consumo fornece, como vimos, não só satisfação mas também
consistência ontológica. Ter é ser, e ser é ser imagem. Neste
ponto, o objeto corresponde ao objeto narcísico da identificação
especular. Até pode tender a confundir-se com ele (no
engarrafamento narrado em "Auto-estrada do Sul", de
Cortázar, as pessoas se chamam pelas marcas dos carros).
Há uma
possibilidade ativa em selecionar o leque de traços que comporão
a imagem. O papel do terceiro, que sustenta o valor e a pertinência
da imagem, na cena do espetáculo (que poderia ser a instância
de auto-observação do sujeito), tende a ser depositada (como
nas formações de massa), num "metteur en scene" e
outros expertos que acabam expropriando a atividade de seleção
de traços, conforme os códigos que ele e outros expertos
conhecem e inventam e dominam. (Fuks, op.cit., p. 71-72)
A sucessão de
experiências de exaltação egóica e os medos das falhas que
provoquem colapsos narcísicos, somados à variação vertiginosa
dos códigos, criam um estado de sobrexigência e tensão que
desencadeia ou ameaça desencadear a série de descarga
acima apontados.
As experiências
de desilusão geram a alternativa entre a elaboração psíquica
e a reelaboração de crenças e projetos que lhe dá suporte, ou
a fuga rumo aos fetiches compensatórios que tendem a ocupar a
cena: o álcool, as drogas legais ou ilegais e todo o tipo de
condutas aditivas.
O objeto se
torna inerte, na medida em que a saturação da demanda,
resultante da oferta exacerbada, acaba provocando um colapso do
desejo.
É a
resposta anoréxica, o desejo de nada, a rejeição da experiência
de satisfação e, ao mesmo tempo, o recurso da presença do
objeto para controlar fetichisticamente a emergência de angústia.
Como vimos com
as "personalidades como se", o objeto tem que estar
fora e não dentro; aliás, não existe um dentro; o que pode
estar em si mesmo do outro é bem superficial, é como o tênue
reflexo num espelho, mas somente reflexo, nada de refração.
Por outro lado,
a dimensão traumática da imposição de consumo exacerbado, que
nos últimos tempos não respeita limites, nem direitos e nem
regulamentações, somada a uma quantidade de fatores de violência
que vão além da questão do consumo, levam os sujeitos à uma
retração narcísica secundária, defensiva, acompanhada de um
desinvestimento libidinal do objeto.
Nos desfechos de
tipo drogaditivo, uma incorporação do objeto de caráter narcisístico,
parece produzir-se. Só que isto nos aproxima, do ponto de vista
clínico e metapsicológico, para o campo das neuroses narcisísticas,
provavelmente da melancolia. Sua consideração excede os
objetivos que temos colocado para este trabalho. Sua menção nos
parece, no entanto, válida, porque aponta para uma problemática
premente que traz desafios para um trabalho clínico e teórico
em psicopatologia que se referencia, tanto quanto se insere, numa
análise crítica da subjetividade contemporânea.
BIBLIOGRAFIA.
BIRMAN, J. A
psicopatologia na pós-modernidade. As alquímias do mal-estar
na atualidade. Revista Latinoamericana de psicopatologia
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Mario P. Fuks
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