a questão da formação do analista

            s, analistas, freqüentemente comparecemos em público com este ou aquele assunto, mas a questão é que nunca falamos de nossa origem! De onde vêm os analistas... de que matéria são feitos? Que órgão “forma” um analista, quais as regras e as leis que estão em jogo? Existe, sim ou não, algum órgão, uma “Ordem dos Psicanalistas” – tal como encontramos, por exemplo, a Ordem dos Advogados – que determinaria os rumos de uma “formação” do analista? O que me autoriza, ou melhor, o que me permite exercer a prática psicanalítica? Qual a lei que se coloca no exercício desta prática... qual o desejo em questão? Que Outro encontramos implicado nesta questão? Enfim, o que autoriza alguém a exercer a prática da psicanálise? Como é que se “faz” um psicanalista?

Encontraremos nas primeiras relações de Freud com seus discípulos as questões pertinentes à “formação” do analista: a preocupação com o futuro da descoberta freudiana possibilitou um encaminhamento específico daquilo que seria a transmissão da psicanálise. Como a psicanálise se transmitiria de um para outro e quais as precauções devidas para que esta descoberta se mantivesse com sua virulência? Sabemos como as idéias de Freud encontraram fortes resistências em todos os segmentos sociais daquela época, que identificavam naquelas idéias a ameaça de um perigo público, à medida que denunciava o mal-estar frente à sexualidade humana.

Muito cedo, os analistas que seguiam Freud, a partir desta ou daquela argumentação, passaram a constituir “Institutos” para formar analistas, objetivando não somente uma suposta “preservação” da descoberta psicanalítica, como também apresentando o intuito explícito de responder às demandas de “terapias”, que proliferavam. A partir desse processo de institucionalização inicial, estabeleceram-se algumas exigências básicas para se “formar” um analista: a análise pessoal, seminários e supervisões. Essas exigências são aquelas minimamente necessárias para se constituir um analista. O que não se pode conceber é a maneira e a imposição institucionalizadas daquelas exigências, acreditando ser possível estabelecer uma ordem, uma lei “exterior” ao desejo de um postulante, lei que se estabelecia como um verdadeiro dogma, no sentido de arbitrar e determinar os rumos de uma formação do analista.

Um sujeito X, Evangélica, por exemplo, buscaria um Instituto de Psicanálise porque apresentava o desejo de ser analista. Ora, o Outro garantidor dessa empreitada era logicamente o Instituto que, com suas regras, normas e leis (portanto, uma ordem), circunscrevia os ideais institucionais aos quais a nossa Evangélica iria se conformar, sem que houvesse nenhum questionamento sobre esse seu desejo de ser analista. Já a partir das entrevistas, e do processo de iniciação daí decorrente, Evangélica se identificaria e permaneceria alienada aos ideais próprios das instituições, constituindo uma máxima conformista, que amputa a presença do sujeito do inconsciente, naquilo que norteia a essência mesma de um desejo verdadeiro.

Daí que a afirmação de Lacan de que “a psicanálise é intransmissível” (donde a necessidade de que cada analista reinvente a psicanálise, a cada momento) vem nos mostrar a impossibilidade de se transmitir, de se passar a psicanálise de um para o outro, a não ser... na análise pessoal. Uma “formação” psicanalítica é a resultante contingencial de um intenso e longo trabalho numa análise pessoal, não-sem a elaboração de uma prática teórica a partir dos lugares de transmissão que se articulam no espaço de Escola de psicanálise. Não há como pegar a postulante Evangélica, colocá-la numa instituição e formá-la como analista. Nenhuma ordem ou lei “externa” ao desejo detém essa capacidade, mesmo que Evangélica estivesse convicta no seu desejo de ser analista, freqüentasse os seminários, as supervisões, a sua análise. Só isso não bastaria.

Não é possível, por um processo linear de acumulação de saber, nem mesmo emprenhado numa dogmática que nos remeta a uma regulamentação técnica; isso não é condição alguma no que diz respeito ao tornar-se analista. A passagem de psicanalisando a psicanalista é da ordem de um tornar-se: um sujeito particular torna-se analista a partir de sua própria psicanálise pessoal; é a partir de uma profunda e reiterada transformação subjetiva, onde se inscreve uma destituição subjetiva, que levará este passante numa psicanálise a freqüentar o discurso do analista. Esta nova ordem, uma ordem desejante que emerge nessa passagem, é a verdadeira ordem de uma psicanálise. Esta ordem trilhará os lugares de transmissão que regem os fundamentos reais de uma formação que habita uma instituição que se quer analítica. Ela fundará, portanto, a transmissão da psicanálise, como uma experiência de inconsciente, naquilo que nos permite reafirmar a experiência original inaugurada por Freud.

Ao afirmar que a única formação que existe são as formações do inconsciente, Jacques Lacan desloca a questão da “formação” do analista para o plano do inconsciente, ou seja, uma ordem interna ao desejo, uma ordem ética. Portanto, uma instituição terá que criar as condições necessárias para que o psicanalista aconteça como uma formação do inconsciente. Na ´proposição de 09 de outubro de 1967, sobre o psicanalista da Escola, Lacan enuncia o aforismo que permanecerá na história da psicanálise como uma afirmação fundadora: “O psicanalista só se autoriza por ele mesmo ...e por alguns outros”; ou seja, no momento do ato analítico o analista está só, não se garante por nenhum Outro: nenhuma instituição, nenhuma ordem... a não ser aquela do seu desejo, que se escreverá como desejo do analista. Tem a morte como sua companheira, no franqueamento desejante, de um encontro sempre faltoso do real!

Portanto, o autorizar-se analista, naquilo que de uma solidão se evidencia, não está adstrito a nenhuma outra ordem senão àquela referida ao estatuto ético do inconsciente como um lugar vazio, esburacado, habitado serenamente por um não-saber, onde o silêncio ensurdecedor de uma moção pulsional questiona e pontua todo e qualquer descaminho inocente, travestido de uma boa intenção grupal. O desejo do analista, rastreando todo o processo do tornar-se analista e de sua autorização não se pretende nem inocente, nem vulgar. Este desejo, que tão bem instrui dialeticamente o projeto de uma instituição que se pretenda analítica, somente ele, na particularidade que se lhe confere, poderá reger tudo aquilo que diz respeito às relações de um psicanalista com a transmissão da psicanálise, seja no que diz respeito à sua prática clínica, seja na relação com a teoria freudiana, que funda a consecução serial de uma doutrina.

Este aforismo do autorizar-se analista por ele mesmo não o exime de se entregar de corpo e alma ao processo de sua formação. Isto é, de dar provas constantes junto a seus pares, subditos à autoridade simbólica da teoria freudiana: “A psicanálise tem a consistência dos textos de Freud”, nos ensina Lacan, e isso no sentido de se fazer relançar os efeitos de uma castração presente nessa doutrina como uma descoberta originária. Os lugares de transmissão de uma Escola de psicanálise atrelados à lógica do só-depois, que se escrevem como estrutura de cartel e dispositivo do passe, acedem a um possível franqueamento naquilo que não cessam de afirmar que “uma análise é necessária, mas não é suficiente”.

Portanto, o trilhamento de um percurso no ensejo de se constituírem novos e futuros analistas passa, necessariamente, pela construção de uma estrutura que permita a dialetização dos efeitos reais de uma análise particular com os lugares de transmissão de uma instituição. É aqui que uma teoria, aquela que habita e concerne ao retorno a Freud de Jacques Lacan, fundará a disjunção necessária para que se criem os elementos de estrutura que dão suporte aos pontos tensionais que permeiam as relações entre os pares no âmbito de uma Escola. A garantia implicada nesse percurso jamais poderia ser concebida antecipadamente; ela é regida pela mesma lógica do inconsciente, o só-depois: é o “ele mesmo” de cada um, colocado em questão na psicanálise pessoal, que fundará o garante que franqueia o necessário estrutural de uma formação do analista.

A garantia que se inscreve na “formação” de futuros psicanalistas passa, necessariamente, por modulações discursivas que se presentificam no leito mesmo desse percurso, num engajamento efetivo no que é de escritura textual: é como instalação de uma ética que se inscreverá, na carne de um sujeito, o desejo do analista. Não se trata, portanto, de uma aventura inocente, em que o postulante a analista se isentaria de uma culpa originária, tal como se entrega passivamente nas mãos daqueles institutos que oferecem uma garantia soberana e antecipada para se concretizar uma “formação” de analista. Desejo de ser analista é radicalmente distinto e antinômico ao desejo do analista: enquanto o primeiro é mero assanhamento neurótico, daí sua condição de ser interpretável..., o segundo, o desejo do analista, interpretante em sua essência, comparece como a única sustentação possível para que haja uma transmissão da psicanálise: uma ordem ética.

José Nazar
 
Psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise


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