Proust e Freud: Memória involuntária e o estranhamento familiar
Noemi Moritz Kon1
Noemi Moritz Kon (Noni): psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autora de Freud e seu Duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. São Paulo, Edusp/FAPESP, 1996.
Meu objetivo aqui, é procurar estabelecer as semelhanças e diferenças, enfim, o parentesco entre duas experiências: a do "estranhamento familiar" descrita por Freud em seu artigo "O Estranho" (2)2 e o advento da memória involuntária, tal como é narrada por Marcel Proust em Em Busca do Tempo Perdido. Focalizo dois momentos da obra do escritor francês: o episódio da madeleine, que se encontra em No Caminho de Swann e a "A Recepção da Princesa de Guermantes", cena final de O Tempo Redescoberto (3)3.
A estranha familiaridade entre estas duas experiências surge da minha própria sensação, que sugere, de imediato, embora com alguma surpresa, uma identificação recíproca entre o que é testemunhado pelo psicanalista e o que é narrado pelo escritor. Mas, se uma similaridade pode ser ressaltada, uma diferença surge, igualmente, como irremediável: à felicidade plena e à certeza alcançadas pelo herói acometido pela memória involuntária, opõem-se o terror e a angústia desencadeados no Unheimliche freudiano.
Das ressonâncias às incompatibilidades entre estas duas experiências surge o percurso que pretendo percorrer.
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Uma das mais belas e mais conhecidas passagens da obra maior de Marcel Proust é aquela narrada No Caminho de Swann, no momento em que o herói é surpreendido por uma sensação de extrema felicidade, ao provar um pequeno pedaço de bolo - sua madeleine - embebido em um pouco de chá que lhe fora oferecido pela mãe.
Esta sensação fugaz de alegria vem romper o instante anterior povoado pelo tédio, marcado pela experiência de impotência junto à rememoração fornecida pela "memória da inteligência" - sua memória voluntária -, de uma infância que não fosse aquela das angústias extremas, do desamparo diante de sua fragilidade e da necessidade inadiável da presença materna; todos sentimentos que parecem estar ancorados no "drama da hora de dormir" (4)4, uma cena primária que precede a eclosão da memória involuntária desencadeada no contato com a madeleine.
Assim, em oposição ao tédio e à impotência frente à vida e as suas possibilidades, surge a magia, daquele sabor e daquele aroma, que dá, ao herói, a sensação de plenitude e felicidade, de um prazer delicioso, isolado, sem noção de causa; e este prazer experimentado o preenche de uma preciosa essência, essência que não estava nele, que era ele.
Aqui, neste primeiro momento do desencadeamento da memória involuntária, é a felicidade em forma pura que nasce, de imediato, da sensação, sem fornecer pistas de sua significação. O herói se esforça, então, para fazer brotar, novamente, aquela experiência de plena felicidade; mas, por mais que refaça seu gesto, tornando a sentir o sabor da madeleine, por mais que, como um caçador, silencie-se e se prometa aquietamento para que a caça não perceba sua presença e seu desejo de tê-la, estes gestos, de ataque e esquiva, não lhe permitem, novamente, acesso à sensação. Num novo movimento o herói procura, então, criar um vácuo sobre a sensação, distrair-se para pegar de surpresa aquela imagem, sensação visível, que ligada ao sabor tenta seguí-lo. Mas seu artifício é em vão; por mais estratégias que utilize, de enfrentamento ou de espera, a felicidade evocada pelo naco de madeleine embebido no chá, foge a sua vontade.
Pergunta-se, o herói, a respeito desta essência e percebe que ela surgiu do sabor da madeleine, mas sabe, também, que esta sensação a ultrapassa, que um segundo gole não traz novo conhecimento e que, ao contrário, só diminui a virtude do primeiro. Indaga-se, então, sobre como encontrar esta verdade, como reencontrá-la. "Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? não apenas explorar; criar"5. É o questionamento a respeito da felicidade em sua essência que leva o narrador a perceber em si as virtudes de seu gesto: não lá fora, na realidade que o circunda, mas nos sentidos impressos em seu ser.
É com a desistência de domar a presença daquela impressão, na afirmação de uma impotência de domínio, que a sensação de bem estar pode reaparecer; retornando por si mesma, por seu próprio desejo, por puro capricho. E desta vez, as sensações puras comparecem acompanhadas de sua significação: "Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação." (6)6.
O herói pode, agora, retomar aqueles momentos que lhe pareciam perdidos, momentos em que, como outro ele mesmo, desfrutava deste mesmo aroma e sabor, tantos anos antes, em companhia de sua tia Leôncia. E toda uma outra Combray, diferente daquela assombrada pela angústia e impotência, que lhe parecia apagada, inexistente ou perdida para sempre, lhe surge com um novo frescor.
"E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (...), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais ao fundo da mesma (...); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia dágua pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja de Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardim, da minha taça de chá" (7)7.
Esta é a cena inaugural da memória involuntária: desencravada da sensação pura, do sabor e do aroma, reaparece toda uma lembrança, de um outro tempo e de um outro lugar, que se supunha perdida ou inexistente, mas esta recordação ressurge através de uma história nova que, paradoxalmente, re-aparece, e não pelo gesto autônomo da vontade do herói, não por seu esforço, não por sua inteligência, mas sim, por um movimento autônomo da sensação, do acaso, da necessidade desta memória readquirir contornos próprios no presente. A felicidade e a certeza desencadeadas pela sensação, parecem, então, neste primeiro momento, provir do reencontro com um passado aparentemente perdido.
O texto de Proust é engenhoso; seu encontro com a felicidade, seu desamparo frente a sua perda e a impotência em mantê-la ou reencontrá-la, a surpresa reeditada de seu reaparecimento formulado, agora, como recordação, toca seus leitores com o que, dentro de uma tradição psicanalítica, denominaríamos de estranha familiaridade.
É pela identificação com a narrativa de estranhamento de Proust que podemos retomar, através da espontaneidade de nossa memória, circunstâncias singulares que povoam nossa existência e que demonstram este mesmo poder por serem indeléveis. Aqui temos a sensação de familiaridade com a experiência de outro.
Mas apresento um segundo estranhamento e este, talvez, não seja tão familiar. A cena tão ricamente narrada por Proust garante a sensação de felicidade. A aparição da sensação que elicia a memória involuntária quebra o tédio e permite um acesso inusitado à plenitude. Identificada à cena narrada por Proust, identificada à emoção de surpresa, incitada a pensar no Unheimliche freudiano, desoriento-me quanto ao sentido de felicidade.
Isento-me de apresentar minhas próprias experiências junto à memória involuntária ou àquilo que procuro denominar, em eco, de estranha familiaridade; mas devo enfatizar que, para mim, apenas em raras ocasiões o que resulta deste encontro insólito é o acesso ao bem estar e à plenitude. Talvez seja bem mais o contrário que apareça: a desorientação e a tentativa de evitar esta sensação. E nem sempre este encontro com o inusitado se traduz na captura de um tempo guardado, em um tempo, supostamente, perdido: este tempo mítico das origens.
Visto pelo vértice do estranhamente familiar, o que faz diferença é a questão do tempo enquanto recordação e do belo enquanto felicidade.
Talvez as diferenças devam mesmo ser mantidas, mas meu interesse aqui é o de procurar o parentesco de experiências, forçando suas semelhanças, para entender melhor as minhas diferenças.
Em seu artigo "Le Fantastique", Thoret (8)8, narra uma passagem Unheimlich da vida de Freud: estava Freud tomando uma xícara de café com seu amigo Ferenczi em um agradável salão, divertindo-se e conversando, quando, repentinamente, empalidece. Petrifica, olhando uma senhora que caminha em sua direção. Freud crê ser esta uma paciente sua que morrera, subitamente, durante um tratamento. Ao estender sua mão, esta se apresenta - desfazendo a surpresa, explicando o insólito - como a irmã gêmea da paciente em questão.
A surpresa de Freud não lhe permite a antecipação de sentido algum. A irrupção do fantástico retorno da morta [e, também, na narração proustiana, é sua tia Leôncia, morta, quem retorna] acontece de maneira imprevista, trazendo a um só tempo aquilo que é estranho mas, concomitantemente, familiar. Temos, então, a suspensão do juízo de existência e da prova de realidade, trazendo emoções que não se ancoram em nenhuma significação a priori.
Mas quem passa por uma experiência como essa não pode se demorar em restabelecer suas certezas habituais. É como se a figura do duplo, após sua aparição, novamente se destacasse do sujeito assustado e, ao se afastar, permitisse que ele se reencontrasse mais uma vez em face de si mesmo. A atenuação do perigo faz com que o sentimento de identidade se reconstitua e o sujeito aceite não ir longe demais na compreensão de certas coincidências estranhamente familiares.
A estranheza inquietante fascina pela ausência de objetividade. Não é o objeto que desencadeia o fenômeno; é justo a queda do objeto diante dos olhos que remete a uma experiência de indeterminação. Na experiência do Unheimliche o mundo objetivo desaparece. Isso vai implicar numa experiência subjetiva a mais enigmática possível, em que domina a onipotência do pensamento (um desejo pode realizar-se imediatamente), que traz a impressão angustiante do retorno dos mortos. O que se revela é irredutível à imagem e se dá em um efeito relâmpago, como uma ligação direta sem mediação (nem palavra, nem pensamento), num curto circuito onde o sujeito é lançado inadvertidamente em um lugar inesperado9.
"O estranhamento familiar", diz Freud, "nasce na vida real quando complexos infantis recalcados são reanimados por uma impressão exterior, ou quando convicções primitivas superadas parecem ser novamente confirmadas" (10)10. São, como na narrativa proustiana, impressões exteriores as que desencadeiam a experiência de estranhamento, através de uma vivência esquecida, superada ou recalcada que é animada novamente. A noção de tempo reencontrado está aqui implícita: aquele das memórias infantis - e de seus desejos -, que devem permanecer secretas, recalcadas e, assim, mantidas, e um outro tempo, um tempo superado, o tempo primitivo, mas que retorna, no Unheimliche, em plena forma.
Vemos, desta maneira, que alguns vetores fazem confluir a experiência da memória involuntária de Proust ao estranhamento familiar freudiano: o que é revelado não se apoia na sensação, esta apenas desencadeia a experiência; há uma revelação direta, sem intermediação da palavra ou do pensamento que não comporta uma significação a priori; o mundo objetivo desaparece, resultando na suspensão do juízo de existência e da prova de realidade; tem-se a invocação da morte e da mulher (é a mãe de Proust quem lhe serve o chá, e é sua tia morta quem lhe reaparece); alcança-se a ressurreição da memória. Mas há também uma diferença irredutível: o afeto desencadeado nas duas experiências parece ser radicalmente oposto; a angústia presente, na versão freudiana, contrasta com a felicidade da experiência descrita por Proust.
Assim, podemos observar, em ambos, o rompimento das relações habituais com o mundo: a sensação simples, - a visão, o sabor, o aroma -, quebra a certeza sobre o mundo e rompe o sentimento de identidade. Mas, se em Freud, o movimento seguinte é o de procurar recuperar esta certeza, acertar o desfocamento, apurar o juízo de realidade, para reocupar o estado anterior de entendimento, impedindo a intromissão da angústia, em Proust, este movimento parece ser o inverso: soltar as amarras, dar voz à impressão desconcertante, pedir dela que mostre suas representações e, assim, guardar a felicidade em estado puro.
Em ambos os casos, temos a ruptura do pensamento embasado nas categorias de tempo e espaço. Mas, permanece a marca diferencial indelével: a oposição entre angústia e felicidade. Nos domínios psicanalíticos associaríamos ao recalque, à castração, à perda, com os quais Proust não teria se confrontado.
Estaria aqui uma das marcas distintivas entre o fazer psicanalítico e o fazer artístico? O artista se compraz, quando nada nos mares dos processos primários, sem ter que suportar a angústia contida no estranhamento e na ineludível castração?
Deixemos, por enquanto, em suspenso estas interrogações e passemos a um outro momento de Em Busca do Tempo Perdido, em que o herói, já no último volume da obra maior de Proust, não se contenta mais em ser apenas visitado pela sensação de felicidade e pelas recordações correspondentes, mas, ao contrário, procura ativamente entender o sentido desta felicidade, resolver seu enigma.
Chegando à casa da Princesa de Guermantes o herói é novamente atacado pela memória involuntária. Evitando ser atropelado por um carro que vinha em sua direção, o herói afasta-se rapidamente, recuando e tropeçando em pedras irregulares do calçamento. Neste momento, ao procurar se reequilibrar, sobrevem-lhe, novamente, a mesma sensação de felicidade que lhe fora suscitada em diversas épocas de sua vida: pela visão de árvores que lhe pareciam as mesmas de Balbec, pelos sons que lhe transportavam aos sinos dos campanários de Martinville, pelo sabor e odor da pequena madeleine que lhe trazia uma outra Combray e por outras tantas sensações que pareciam precipitar-se nas últimas sonatas de Vinteuil. Aqui, como nestes outros momentos, todas as suas dúvidas e inquietações são dissipadas.
A felicidade, conclui o narrador, era a mesma, a diferença residia nas imagens invocadas. Se a madeleine invocava sua infância em Combray, a irregularidade do calçamento lhe trazia a sensação experimentada sobre dois azulejos desiguais no batistério de S. Marcos, em Veneza, recuperando outras recordações desta época e local.
Pergunta-se Proust: "Mas por que me tinham, num como noutro momento, comunicado as imagens de Combray e de Veneza uma alegria semelhante à da certeza, e suficiente para, sem mais provas, tornar-me indiferente à idéia da morte?" (11)11.
E toda uma outra série de sensações invade o herói: o ruído feito por uma colher, transporta-o ao momento em que a roda do trem que o levava em viagem é consertada; a sensação do tato desencadeada pelo contato com o guardanapo engomado o leva a Balbec, mas não à Balbec em seu passado, pois agora Balbec era livre das imperfeições de sua percepção, pois agora nenhuma fadiga ou tristeza o tomava. Diz Proust: "a impressão foi tão intensa que tomei pelo atual o momento imaginário"(12)12.
Neste momento, não é mais suficiente o encontro com o passado revivido, tal como o fora na cena inaugural da madeleine. Não é ao momento anterior, o passado tal como teria sido, que se dirige Proust, não é um passado revisitado que o herói descobre ou cria, mas sim aquelas sensações que, guardadas pelo esquecimento e que, conservando seu lugar, seu tempo, sua distância, podem ser respiradas como "um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado, e o ar mais puro que os poetas tentaram em vão fazer reinar no Paraíso, e que não determinaria essa sensação profunda de renovação se já não houvesse sido respirado, pois os verdadeiros paraísos são aqueles que perdemos"13.
E, assim, o narrador alcança a sua proposição: "Deslizei célere sobre tudo isto, mais imperiosamente solicitado como estava a procurar a causa dessa felicidade, do caráter de certeza com que se impunha, busca outrora adiada. Ora, essa causa, eu a adivinhava confrontando entre si as diversas impressões bem-aventuradas, que tinham em comum a faculdade de serem sentidas simultaneamente no momento atual e no pretérito (...), fazendo o passado permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, o ser que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal, repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia quando, por uma dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia situar no único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do tempo" (14)14.
O que vemos aqui é a explicitação da sensação de felicidade, experienciada sem distanciamento, junto à madeleine. Mas seu desejo é o de entender a razão, a lógica da certeza evocada por estas sensações naturais de odor, sabor, tato, audição e visão. E, aqui, o simples reencontro com a memória de um acontecimento passado - o saborear da madeleine junto à tia - não é mais suficiente para dar conta da experiência de plenitude. Aqui o tempo encontrado não é o do passado experienciado, mas sim um tempo fora do tempo, uma experiência sem objeto suporte. O que se procura guardar e definir não é a memória dos acontecimentos, mas uma nova-velha memória, que sem presente ou passado, cria uma outra realidade, inserida em um outro tempo.
É o encontro com a quebra da realidade habitual - "a experiência foi tão intensa que tomei pelo atual o momento imaginário" -, com a concomitância dos tempos - "um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado" -, com a duplicidade do ser - "o ser que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal, repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia quando, por uma dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia situar no único meio onde poderia viver, gozar da essência das coisas, isto é, fora do tempo". O herói encontra, assim, uma fenda para ver e ser visto, dentro de uma brecha do tempo, do tempo fora do tempo.
É Proust quem escreve, ainda no manuscrito XIV (1909 -1911), da brecha pela qual desvendamos nosso espírito: "(...) Somos como um pintor que segue por um caminho desnivelado em relação ao lago que circunda e que tem sua visão bloqueada por uma cortina de rochedos e árvores. Por uma brecha ele o percebe, ele o tem inteiro a sua frente. Ele pega seus pincéis. Da mesma forma, nosso espírito está também completo perante nós. Nós o possuímos, podemos descrever cada uma das elevações que o dominam, cada um dos véus que são retirados de sua superfície. Mas cedo virá a noite, quando não poderemos mais pintar, e depois da qual o dia não se levanta mais" (15)15.
E é assim em relação ao tempo, como o é em relação ao espaço: um espaço que pede o reequilíbrio do ser - na irregularidade do calçamento -, um espaço que não é lá, nem cá - "a sensação comum buscara recriar em torno de si o lugar antigo, enquanto o atual que o substituía opunha-se com toda resistência de sua matéria a esta imigração"(16)16. Temos a criação de um novo-velho espaço, o espaço do entre, o espaço do não espaço, o espaço fora do espaço.
Este novo mundo criado é aquele habitado pelo artista, aquele que vive a verdadeira vida. O herói, o artista, é este ser estrangeiro, habitante deste mundo dos extras: extra-temporal, extra-espacial, extra-sexual. Este é o homem capacitado para extrair ou criar as regras gerais, perdidas na mediocridade da vida, explicitando a lógica invisível que a tece.
Este é o ser que pode "imobilizar, isolar, um pouco de tempo [e espaço] em estado puro". "Mas que um som já ouvido, um olor outrora aspirado, o sejam de novo, tanto no presente como no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, logo se libera a essência permanente das coisas, ordinariamente escondida, e nosso verdadeiro eu, que parecia morto, por vezes havia muito, desperta, anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem. Um minuto livre da ordem do tempo recriou em nós, para o podermos sentir, o homem livre da ordem do tempo. E é compreensível que este, em sua alegria, seja confiante, apesar do simples gosto de uma madeleine não parecer logicamente encerrar as causas de tal alegria, é compreensível que a palavra "morte" perca para ele a significação: situado fora do tempo, que poderá temer do porvir?"(17)17.
O que vemos surgir aqui é o nascimento de um novo homem, aquele que alcança a essência das coisas, aquele que, para além das categorias arbitrárias de tempo e espaço, de realidade e imaginação, de coisa e de idéia, reencontra a verdade, a essência, a certeza, a plenitude e a eternidade. É neste momento em que podemos nos tornar indiferentes à idéia da morte. É este ser que é criado num para além - estrangeiro -, das dualidades habituais que norteiam nosso pensamento: palavra e coisa, realidade e fantasia, hoje ou ontem, aqui ou lá, começo ou fim. Este é o artista, ser genial, que alcança a verdadeira vida, a essência das coisas e de si mesmo; mas este também é Deus que onisciente, onipotente, atemporal, nos olha. Será que nesta visão teríamos o reencetamento da origem divina do mundo, o olhar de Deus?
A felicidade consiste, então, em viver dentro do que denominaríamos, depois de Freud, de regras do inconsciente: nasce o ser atemporal, o ser para além das regras de contradição e identidade, para quem o não inexiste, que se movimenta por deslocamentos e condensações, um ser supradeterminado, regido pelo princípio do prazer.
É aqui que a noção de morte, evocada tanto na conceituação freudiana do Estranho, como na tentativa de resolução do enigma da felicidade em Proust, pode ser de valia. Para Proust, a experiência de felicidade evocada na memória involuntária anula a morte: sua posição não difere daquela trazida pela crença céltica (18)18, à qual Proust se refere ainda na cena da madeleine, em que os mortos habitariam seres inferiores e que esses poderiam ser ressuscitados através de um encontro casual, desfazendo, assim, o encantamento. Para Freud, o Estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar, ligado à onipotência dos pensamentos, à pronta realização dos desejos, ao retorno dos mortos e à presença materna. Em Freud o reencontro com o desejo é ambivalente; no Unheimliche temos a presença do desejo secreto mas que veio à luz; é algo conhecido, recalcado, que se apresenta novamente e que, familiar, torna-se então estranho. Aquilo que deveria estar morto, superado, ou seja, os desejos infantis e primitivos, ressurge com força renovada: é a admissão de que o princípio de realidade e de que os processos secundários não são vitoriosos, de que a razão não tem as rédeas em suas mãos e que um mundo invisível força passagem explodindo a organização. São os desejos infantis primitivos do passado, que deveriam estar mortos, superados e enterrados, que readquirem vida e retornam como fantasmas para assustar o eu.
É a questão da angústia, da perda, da castração, do recalque, que, presentes no Unheimliche freudiano não tem espaço na formulação proustiana.
Sabemos que este último volume, O Tempo Redescoberto, foi escrito concomitantemente ao primeiro, O Caminho de Swann(19)19. Proust, portanto, tal como um Deus onisciente trabalha o começo e o fim, percebe-se como herói - aquele que trafega tanto no plano divino como no plano humano -, tendo, desde sempre, em si, tudo o que cria já a beira da morte (19)19... O que se tenta discutir é que ou a experiência estética é uma capacidade para transitar no espaço inconsciente, que a tudo se identifica com o espaço divino, ou então que ela traduz uma denegação da angústia de morte, enfim, da castração, que nos insere no mundo simbólico e nos limites da Lei.
É a mãe de Proust quem lhe serve o chá (20)20 - "e nosso verdadeiro eu, que parecia morto, por vezes havia muito, desperta, anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem"(21)21. O herói, primeiramente, nega; depois, hesita, mas, finalmente, acaba por aceitar o oferecimento. Esta cena, que resulta no desenlace da memória involuntária junto à madeleine (22)22, funciona como uma cena primária, como o vórtice do furacão que só faz puxar para perto de si outras tantas sensações que são ressignificadas por esta primeira imagem. Por que teria o herói hesitado ante o oferecimento de sua mãe? Por que em todos os manuscritos esta cena da hesitação é mantida? O que é oferecido pela mãe?
Ora, sem querer praticar psicanálise selvagem, mas deixando-me levar por minhas associações, lembro-me da cena anterior ao episódio da madeleine; sabemos que era o "drama da hora de dormir" a cena manifesta. Esta pôde vir à consciência, com a dor, a angústia e a impotência correspondentes. Aqui a doação materna é admitida, mas só em virtude do deslocamento da relação erótica para a leitura, para a literatura; apenas nesta versão, a memória espontânea pode vir à tona. Mas o que mais oferece a mãe que deve ser evitado, e que, caso aceito, leva-o a um estado de total felicidade, de alcance das essências... ao gozo supremo, em que tempo, espaço e dor não podem advir?
Não se trata de fazer uma psicanálise à revelia de Proust, do narrador, do herói... o que tentamos aqui pensar é na oposição entre a felicidade e a angústia. E esta diferença, vista da perspectiva psicanalítica, aponta para a questão da morte - ou de sua negação - e da relação primária com a mãe.
É o que podemos ver no capítulo I de "O Mal-Estar na Civilização" (23)23 em que Freud discute a idéia de "sentimento oceânico" que lhe foi trazida pelo escritor francês Romaind Rolland (24)24. Freud trata de discutir "um sentimento que ele [Rolland] gostaria de designar como uma sensação de "eternidade", um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - "oceânico", por assim dizer. (...)Trata-se de um sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo"(25)25. O psicanalista aponta as suas próprias dificuldades para entender um sentimento como este, nunca experimentado por ele - não negando que este possa acometer outras pessoas - e adianta que seu olhar científico não é um instrumento adequado para entender tais sentimentos; mas, apesar destas ressalvas, Freud apresenta seu ponto de vista inicial, de que o sentimento oceânico seja apenas uma percepção intelectual, não acreditando em sua natureza primária. Afirma, ainda, que este sensação de vinculação direta de homem e mundo não cabe na concepção psicanalítica; passa, então, a procurar uma explicação, em sua próprias bases, para a colocação do artista.
O psicanalista apresenta, então, suas descobertas em relação ao ego e seu desenvolvimento, buscando encontrar a gênese psicanalítica para a idéia do sentimento oceânico, desta vinculação, sem mediação, entre eu e mundo: se o ego apresenta-se como autônomo e limitado, a nossos olhos, isso é apenas uma aparência enganadora. O ego se abre para o interior em relação ao id, sem que haja uma delimitação interna precisa. Em relação ao exterior, porém, o ego parece manter linhas de demarcação claras e nítidas, apesar de exceções em que estas fronteiras não se apresentam tão bem estabelecidas: na paixão e em certas patologias algo pode falhar.
Mas, nem sempre o ego foi como se apresenta para o adulto: a criança recém-nascida não distingue seu ego do mundo exterior. Ela aprende, gradualmente, a fazer esta distinção, separando as fontes de estimulação interiores e exteriores, identificando seu corpo como fonte de excitação ininterrupta, diferentemente de outras fontes, - as externas - que só aparecem de quando em quando e em função de alguma ação específica. Assim, pela primeira vez, o ego é contrastado do objeto, que aparece, agora, como algo exterior a ele. É, também, através da sensação de desprazer que o ego pode aprender a distinguir o exterior do interior: da estimulação externa desprazerosa pode-se, no mais das vezes, fugir, da interna não. Desse modo, dá-se o primeiro passo para a introdução do princípio de realidade e a introdução da distinção interno/externo.
Diz Freud: "Desse modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou, numa expressão mais correta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento de ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário de ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado de um sentimento de ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de vínculo com o universo - as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento oceânico "(26)26. Freud conclui: "Assim, estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento oceânico existe em muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer a sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do ego"(27)27.
Ou seja, nesse momento, poderíamos aliar as concepções de Romain Rolland, analisadas por Freud, àquelas trazidas por Proust, estendendo esta análise freudiana do sentimento oceânico às concepções de Proust quanto à felicidade e à plenitude desencadeadas na experiência da memória involuntária. Os artistas comporiam, nesta perspectiva, o grupo de pessoas em quem o sentimento primário de ego persistiu em alto grau, e que guardam, em si, este sentimento de identidade e fusão com o mundo, - a plenitude e a felicidade de Proust, no advento da memória involuntária, e o sentimento oceânico de Rolland -, próprios de uma fase primitiva do sentimento do ego.
Difícil para alguém, oriunda do campo psicanalítico, não utilizar essas armas em sua reflexão; mas devemos sublinhar que este apontamento da falta da concepção de recalque em Proust, da negação da morte e do desejo pela mãe, que se baseiam todos, em última análise, em uma idéia de narcisismo primário ilimitado, fazem parte de uma leitura específica, a psicanalítica, que não dá conta da plenitude da obra de arte. Procurando pensar a partir de um outro pólo, o estético, encontraríamos o anverso da moeda, que nos permite, inclusive, ressignificar o pensamento psicanalítico. Daí o valor de se trabalhar em um campo limite, entre a psicanálise e a arte, pois, se a psicanálise viabiliza certas aberturas para o olhar crítico sobre a obra de arte esta é, por sua vez, capaz de revidar o gesto, interrogando o pensamento psicanalítico, forçando-o a adotar direções inéditas.
Podemos, então, avaliar que a diferença de posicionamento entre Freud e Proust, frente à experiência com o inusitado, refere-se à uma questão maior: uma noção de mundo e de homem, implícitas nas formulações dos dois autores, radicalmente diversas.
Bernardo Carvalho, em um artigo instigante denominado "O Unheimlich em Freud e Schelling"28, discute uma questão que se revela, em muitos aspectos, a mesma que procuramos abordar aqui. A partir de uma citação do filósofo romântico alemão, utilizada por Freud em "O Estranho" (29)29, Carvalho procura desvendar uma antinomia, negada pelo psicanalista, entre o sujeito psicanalítico e o "sujeito" romântico de Schelling. O autor aponta: "O problema é que Freud, para estabelecer a modernidade dessa nova identidade psicanalítica - ou melhor, a delimitação de um sujeito psicanalítico, a produção de uma nova subjetividade -, precisará abafar, ou mesmo destruir, o projeto romântico de Schelling, que apontava não para uma identidade ou autonomia de um sujeito cindido do resto das coisas (um sujeito que passa a existir na cisão entre realidade e imaginário, entre o eu e o outro), mas, ao contrário, para uma total identificação entre sujeito e natureza, entre real e imaginário"(30)30.
Adotar a perspectiva psicanalítica para procurar entender a experiência da memória involuntária de Proust é tomar parte desta mesma vertente "destrutiva" frente ao projeto do escritor, como a apontada por Carvalho.
Mas, sigamos com suas reflexões: "Enquanto Freud pretende mostrar como esse sujeito não-delimitado, identificando imaginário e real, resulta em desespero e angústia, Schelling tentará pensar exatamente essa identificação (entre real e imaginário, entre real e ideal) como fonte da serenidade do homem dentro da natureza"(31)31; e esta é, exatamente, a questão que estamos procurando abordar.
E o autor continua: "Se para a psicanálise essa situação denota, como mostra o ensaio de Freud, uma dissolução de limites, uma ausência de delimitação do sujeito em relação ao outro, que produz necessariamente angústia e terror, para Schelling será somente com essa identificação, com essa dissolução de limites, que poderá vir à luz a realização mais alta da cultura humana: a mitologia. Esta é nada mais nada menos do que a identificação transparente do mundo do espírito e da arte, do real com o imaginário, do natural com o sobrenatural, experimentados como um mundo único e indivisível. (...) A mitologia não é uma explicação fornecida pelo espírito humano para dar conta de fenômenos incompreensíveis, de um mundo natural incompreensível, mas a própria criação desse mundo. O mundo nasce com a mitologia. (...) Desse ponto de vista, mitologia e psicanálise são incompatíveis, pois a vocação desta última é se apropriar da primeira numa segunda leitura, como representação, como explicação do mundo e não como o mundo em si, nascendo, auto-afirmando-se. Desse ponto de vista, é impossível haver mitologia - ou nascer uma nova mitologia - num mundo codificado e mapeado pela psicanálise. (...) Vejamos, no caso do Unheimlich, como essa questão se evidencia. O Unheimlich só pode existir num mundo cindido, alegórico, não mitológico. Assim como o sobrenatural, ele só é possível num mundo onde o espírito e o real estejam separados. (...) Na mitologia, aqui e além, natural e sobrenatural, são uma coisa só. Por isso não pode haver terror na mitologia, pois não existem corpos e espíritos, mas corpos-espíritos. Para Freud, por uma inversão astuciosa, o Unheimlich deixa de ser visto como consequência da ausência da mitologia para surgir da identificação entre real e imaginário (que ironicamente era a característica mitológica fundamental). Isso porque a psicanálise, para existir, precisa se fundar sobre a cisão do imaginário e do real (e, mais tarde, do simbólico). Ela não pode existir num mundo mitológico, onde é impossível a interpretação, já que as coisas imaginárias, assim como as da natureza, não são nada além delas mesmas, encontrando-se totalmente indiferenciadas. A psicanálise assim como o Unheimlich, não pode existir num mundo totalmente identificado como o da mitologia exaltada por Schelling. Logo, o Unheimlich de que fala o filósofo existe e provoca terror não porque identifica imaginário e realidade, abolindo dessa forma os limites do sujeito, como quer Freud, mas antes porque é o próprio resultado desse mundo já cindido, resultado de uma eventual identificação entre imaginário e realidade onde isso já não é possível. O que se manifesta, e não deveria, o que antes era identificação mitológica da produção do espírito com a natureza, passa a ser, agora que tudo está separado, assombração (o sobrenatural só é possível, como já afirmamos, num mundo onde a natureza não forma mais um todo mitológico). O que deveria ficar velado, e reaparece, de Schelling, não é, então, recalque, como pretende Freud, mas uma decorrência da perda de identidade entre todas as coisas, o advento de um sujeito transcendente. O Unheimlich seria, nesse sentido, a identificação entre o natural e o sobrenatural sim (que havia sido transparente num mundo mitológico), só que vista e distorcida por um sujeito que a transcendesse" (32)32.
Esta longa citação serve como uma luva para nossos propósitos; poderíamos trocar o nome de Schelling pelo de Proust sem correr riscos. Os assinalamentos de Carvalho vão na mesma direção daqueles a que nos propomos. Portanto, desta perspectiva, torna-se difícil reclamar da falta de certa conceituação na obra de Proust (como o fez Carvalho, em relação à Schelling), já que a noção de recalque, por exemplo, só é possível dentro desta nova concepção de homem, em uma nova subjetividade, conformada pela civilização moderna. E é só nessa civilização que a psicanálise pode advir.
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A perspectiva freudiana apoia-se num mundo cindido e, apesar de procurar rompê-las, ampara-se em dualidades: sujeito-objeto, mente-corpo, espírito-matéria, representação-coisa, real-imaginário. Para Freud, a dissolução dos limites entre estas dualidades convoca a angústia e o terror. Ora, o ponto de vista oposto parece ser aquele adotado por Proust: é com a dissolução dos limites, é pela transparência da relação do mundo da natureza com o mundo do espírito e da arte, pela relação de imediatez entre o real e o imaginário, entre o natural e o sobrenatural, que se alcança a verdadeira vida, a essência das coisas e de si mesmo, e é só nessa ruptura de limites que o mundo pode ser experimentado como único e indivisível. Daí sua experiência de felicidade e plenitude.
Proust retorna à mitologia que a ciência positiva do século XIX aboliu. Na mitologia não se trabalha por alegorias: o mundo arcaico grego tem na narrativa homérica não uma representação do mundo ou sua explicação, mas sim, o próprio mundo e sua criação. É o mito de sua própria vida, ou da verdadeira vida dos homens que está sendo gestado na obra proustiana. Mas não o mito do homem moderno, daquele que se apoia no realismo ingênuo - como diria Merleau-Ponty -, que ancora seus movimentos no tempo e no espaço do arbitrário. Proust aponta, diferentemente, para a brecha que permite a cada um de nós viver esse ser mitológico, através da experiência estética que procura romper com a mesmice do mundo.
Proust redescobre a origem mitológica de um ser divino, que todos somos, aquele que cria no mesmo ato sua realidade e sua subjetividade, antes mesmo de ser apossado pelas categorias do pensamento. É o ser pré-reflexivo de Merleau-Ponty, é o bebê que cria e recria seu mundo dentro do espaço de ilusão, do espaço transicional, do espaço potencial conceituado por Winnicott.
Mas este é um reencontro em segundo tempo, pois, não sendo mais bebê, não comungando mais com o mundo mitológico dos antigos gregos, o artista tenta reencontrar um tempo anterior ou melhor, um tempo fora do tempo - que não poderia, então, em sua origem, ser formulado através de representações. É falar do próprio nascimento, da inclusão no corpo materno, antes mesmo da morte, da finitude e da diferenciação serem apresentadas. É o encontro com a quebra do juízo de realidade, mas com o momento em que este ainda não havia sido formulado, onde a indiferenciação reina; mas esta experiência é vivida dentro da duplicidade, de um grande e de um pequeno, de um mesmo que se olha como dois, como outro, reconhecendo-se e distinguindo-se no momento mesmo em que são criados. É a busca de dar palavras para representar uma cena original que não necessitava delas para se inscrever. É a tentativa de falar a origem, mas não desde o antes, e sim a partir do fora, dos "extras"; assim o artista atinge o início com as armas do fim.
Não tratamos aqui do retorno do recalcado, na linguagem freudiana, mas do retorno ao recalcado, àquilo que foi recalcado pela civilização moderna. Um desejo de reencontrar o primeiro momento de chegada e constituição do mundo, de fazer fogo com as fagulhas da origem. Mas este é um reencontro, e para este retorno se traz uma nova bagagem constitutiva que carrega um outro olhar, que ressignifica a origem a partir de um segundo tempo, regido, agora, pela secundariedade. E esta é uma busca de encontro com a morte e com a mãe - um fim imbricado em um início -, na constituição de um novo tempo, que não cabe mais na linearidade, e que se conforma, então, em um tempo circular, ou num tempo puntiforme.
Talvez estejamos em um momento de ressaca frente à modernidade. Se esta época capacitou-nos a viver dentro da perspectividade do ser, levou-nos, também, à inserção na vida através da cisão e, com isso, à impossibilidade de viver em harmonia. Das inscursões da ciência - como A Nova Aliança33 da física de I. Prigogine -, até as concepções filosóficas, - como as de Merleau-Ponty -, a tentativa parece ser, agora, a de superar as concepções modernas de um sujeito multifacetado, conflituoso, condenado a viver dividido, pensando-se através de dualidades como consciência-mundo e fantasia-realidade. Trata-se, talvez, de um movimento que busca o retorno ao mundo mitológico, no desejo de superar esta visão dicotômica. Mas este é um retorno em segundo grau, pois atravessamos a modernidade e possuímos seu olhar; o que tentamos constituir é uma mitologia com o perdão da má palavra - "pós-moderna"... As novas tentativas dentro da disciplina psicanalítica vão no sentido de procurar sair de um pensamento calcado em dualidades realidade-fantasia, consciência-mundo, palavra-coisa, procurando alcançar uma nova postura que utiliza em seu pensamento a idéia de paradoxo. É Winnicott, psicanalista inglês, quem vai trazer para dentro do campo psicanalítico esta lufada de esperança: o paradoxo entre percepção e criação leva-nos a uma nova mitologia, na defesa de uma origem divina, do grande criador, para cada novo ser que nasce.
Enfim, talvez possamos mesmo afirmar que o desencadeamento da memória involuntária de Proust é uma experiência semelhante ao Unheimliche freudiano; quem sabe, uma mesma experiência, só que vivida e entendida a partir de concepções absolutamente contrárias. Será que esta acentuada diferença de posição entre os dois autores é o resultado de uma postura, que poderíamos denominar, estética de Proust, contrária a uma postura científica de Freud? O olhar científico do psicanalista, adotado por Freud, o faria entender o estranhamento familiar a partir de uma visão dicotômica? O papel do artista seria, então, o de tornar evidente que nosso mundo não é aquele, - ou somente aquele - construído pelas teorias científicas e filosóficas, que se apoiam na idéia de desvendamento do mundo, do encontro de leis gerais e de uma verdade presente, desde sempre, na suposta realidade que estudam?
Talvez, seja a experiência estética que nos permita reviver a criação do mundo, ainda em sua origem; temos, então, a cada sinal grafado no papel, a cada pincelada depositada na tela, a oportunidade de vislumbrar, em câmara lenta, o gesto original do ser divino, do grande criador. E esta concepção do valor de criação presente na atividade estética nos permite encontrar um caminho para entender a diferença entre Freud e Proust. Para o psicanalista, o homem é o ser da linguagem, um ser falhado, submetido ao recalque e às leis simbólicas; este homem é o sujeito psicanalítico. Em Proust, há a criação de um "sujeito estético", de um ser divino, ou feito a sua semelhança, um ser para além da linguagem, ancorado no mundo das sensações. Creio que nos identificamos com a postura destes dois autores, pois guardamos, em nós, estas duas vertentes, estas duas vertigens, e suportamos a concomitância da plenitude e da falta. Ambos falam e contam de nós, de nós em estratos diferentes, como seres divididos que um dia fizeram parte da natureza, na indiferençiação narcísica, no caldo primordial de nossa origem e que desejam, então, um reencontro, na criação de uma origem sempre continuada.
Noemi Moritz Kon
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NOTAS
1 Noemi Moritz Kon (Noni) é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autora de Freud e seu Duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. São Paulo, Edusp/FAPESP, 1996. Este texto foi escrito, em 1997, para o curso do Prof. Dr. Phlippe Willemart, da FFLCHUSP, a quem agradeço pelo acolhimento e reflexões.
2 Freud, S., "O Estranho"(Das Unheimliche) [1919] in Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Ed., vol. XVII, 1976.
3 Utilizo, neste trabalho, a tradução brasileira. No Caminho de Swann, (Du Côté de chez Swann, 1913), vol. I de Em Busca do Tempo Perdido, tradução de Mário Quintana, Rio de Janeiro, Editora Globo, 1981. O Tempo Redescoberto, (Le Temps retrouvé, 1927), Vol. VII, último volume de Em Busca do Tempo Perdido, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Rio de Janeiro, Editora Globo, 12a edição.
4 Proust, M., No Caminho de Swann, op.cit ., p.27-44.
5 Proust, M., No Caminho de Swann, op.cit ., p. 45.
6 Proust, M., No Caminho de Swann, op.cit ., p. 47.
7 Proust, M., No Caminho de Swann, op.cit ., p. 47.
8 Yves Thoret, "Le Fantastique", in LInquietante Étrangeté, Paris, Centre de Recherches et dÉtudes Freudiennes, 1988. Apud França, M. I., Psicanálise, Estética e Ética do Desejo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1997.
9 Utilizo aqui, na discussão do Unheimlich freudiano o trabalho da psicanalista Maria Inês França, Psicanálise, Estética e Ética do Desejo, op. cit., 1997.
10 Freud, S., "O Estranho"(Das Unheimliche) [1919] in Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Ed., vol. XVII, 1976.
11 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 149.
12 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 150.
13 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 152.
14 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 152.
15 Proust, M., La Petite Madeleine, Esquisse XIV, p.698.
16 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 155.
17 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 154-155.
18 Proust, M., No Caminho de Swann, op.cit ., p.44-45.
19 Agradecemos ao Prof. Dr. Phillipe Willemart por tal informação
19 O manuscrito XIV (p. 701) já conta com uma visão incipiente da irregularidade do calçamento do batistério em Veneza e da idéia do "homem extratemporal" desenvolvida por Proust em O Tempo Redescoberto. É importante ter em mente que Marcel Proust , quando revisava incansavelmente seus manuscritos junto a seu editor Gallimard, estava muito doente e tinha plena consciência de seu estado terminal.
20 No manuscrito XIII ainda é Françoise quem lhe oferece o chá (p. 696).
21 Proust, M., O Tempo Redescoberto, op.cit ., p. 153-154.
22 Arriscaríamos, aqui, a sublinhar que Madeleine - Madalena é, também, um nome feminino, presente de maneira inequívoca na tradição cristã. Sua forma de concha poderia nos fazer lembrar, habitualmente, de um útero. Proust a descreve como "(...) aquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob a sua plissagem severa e devota" (No Caminho de Swann, op. cit., p. 47).
23 S. Freud, "O Mal-Estar na Civilização"(1930[1929]), in Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Ed., vol. XXI, 1976, p.81-91.
24 Romain Rolland escreveu uma carta, para Freud, em cinco de dezembro de 1927, a respeito do "sentimento oceânico", logo após a publicação de "O Futuro de uma Ilusão" (S. Freud, 1927, in Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Ed., vol. XXI, 1976).
25 S. Freud, "O Mal-Estar na Civilização"(1930[1929]), op. cit., p.81-82.
26 S. Freud, "O Mal-Estar na Civilização"(1930[1929]), op. cit., p.85-86.
27 S. Freud, "O Mal-Estar na Civilização"(1930[1929]), op. cit., p.90.
28 B. Carvalho, "O Unheimlich em Freud e Schelling", in Percurso, Revista de Psicanálise, São Paulo, Revista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ano II, no 3, 1989.
29 S. Freud, "O Estranho", op. cit. A citação a que Carvalho se refere é a seguinte: "Chama-se Unheimliche tudo o que deveria permanecer secreto, escondido, e se manifesta".
30 B. Carvalho, "O Unheimlich em Freud e Schelling", op. cit., p. 18.
31 B. Carvalho, "O Unheimlich em Freud e Schelling", op. cit., p. 19.
32 B. Carvalho, "O Unheimlich em Freud e Schelling", op. cit., p. 20-22.
33 Prigogine, I. e Stengers, I., A Nova Aliança, Brasília, Universidade de Brasília, 1984.
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