ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE DE SÃO PAULO
Plenária de 7 de novembro de 1998
Presentes:
Ana Maria Medeiros da Costa
Rodolfo Ruffino
Ana Cleide Guedes Moreira
Suzana Alves Viana
Joel Katz
Marly Goulart
Anna Maria Amaral
Luiz Eduardo P. Aragon
Clarissa Silbiger Olitta
Suzana Kiefer Kruchin
Luciane Sant'Anna de Menezes
Paulo Roberto Ceccarelli
José Carlos Garcia
Sara Hassan
José Carlos Moreira de Mello
Sérgio Telles
Tânia Corrallo Hammoud
Jorge Broide
Maria de Fátima Siqueira
José Miguel Bairrão
Regina Orth de Aragão
Rubens Coura
Nelson Magalhães Carrozzo
Carmen Cerqueira Cesar
Maria Cristina Rios Magalhães
Miriam Chnaiderman
(A reunião começou a ser gravada logo após o início da conversa. Algumas falas se perderam:)
Cristina Magalhães:
... Como vamos organizar o que estamos chamando de Estados Gerais, que se organiza também em outros lugares do Brasil e em outros lugares do mundo.A Regina Aragão me disse que viria a essa reunião. Ela e Luis Augusto Celes assumiram iniciar a organização de um grupo em Brasília. Ela vem para contar um pouco desse grupo. Estou para receber notícias do grupo do Rio através de Helena Viana, que esteve numa reunião dos Estados Gerais que aconteceu agora no mês de outubro, em Paris. Mas estas notícias ainda não chegaram.
Os trabalhos também estão se organizando em função do que cada um tem interesse em estar discutindo, do que cada um quer trabalhar. Qual será a organização que cada um quer para si para realizar esses trabalhos de pensamento, de discussão?. Acho que podemos constituir uma situação privilegiada de interlocução para o que estamos pensando.. Bom, acredito que as questões que estão em discussão reaparecerão no transcorrer da reunião. E de qualquer forma, temos as notas da última reunião. Elas serão passadas. Um problema que eu não sei se a gente vai discutir agora talvez nem seja o caso ou talvez seja é a circulação de coisas entre nós.
O correio vai crescendo e talvez precisássemos organizar algum tipo de caixa para sustentar e aprimorar essa comunicação. Então, eu acho importante, por exemplo, que as pessoas que não têm e-mail possam estar recebendo os trabalhos que agora estão começando a aparecer. Já não são mais cinco folhinhas que eu tenho que passar por fax. Começam a aparecer trabalhos alentados.
Então, precisamos fazer uma caixinha. Penso que circulação das propostas e dos trabalhos deveria dar-se não só entre o nosso grupo. Tenho mandado também, tudo que circula entre nós para os comitês de organização de outros grupos no Brasil e espero, receber os trabalhos desses grupos. Uma das coisas importantes que podem acontecer nos Estados Gerais é essa grande circulação, debate e interlocução de trabalhos.
Bom... quem quer a palavra?
O Sérgio tem um site ... http://www.priory.com/brazil.htm
Sérgio Telles:
Você deu uma olhada?
Alguém:
Qual é o seu site?
Sérgio:
Psychiatry on line, que é uma revista de psiquiatria onde estou assinando a página de psicanálise. Eu coloquei o material, mas a pessoa que montou a página montou errado. Mas deu para ver que estava lá?
Cristina:
Deu para ver. O site está no resumo da reunião que eu passei para vocês.
Suzana Viana:
É uma pergunta organizatória para nós que estamos chegando pela primeira vez:, você estava falando em princípios dos Estados Gerais. Dá, de uma maneira sucinta, para colocar quais são os pontos desses princípios? Porque eu acho que o espírito geral, pelo menos do que eu tinha apreendido dessas reuniões, será uma reflexão sobre a assim chamada crise na psicanálise, não é? Agora, eu não sei se vocês estão, nas outras reuniões, especificando alguma coisa a mais ou se estão tendo alguns princípios norteadores ...
Cristina:
Então, os Estados Gerais não podem ser de alguém, nem de alguma instituição. Eles são das pessoas que participam. Não tem alguém que decide como vamos funcionar e o que vamos fazer.
Não tem alguém que possa decidir por você eu espero (risadas) , qual é pra você a definição do que é a crise da psicanálise neste momento. Desde o meu entendimento, não é só a questão do que é a crise da psicanálise num sentido mais social do termo, mas também, o que é para nós a crise com o tal paciente, naquele tratamento ...
Os Estados Gerais têm essa característica: Seu andamento depende de nós.
Em termos de princípios, não existe censura em relação ao que pode ser assunto nos Estados Gerais. Claro, alguém pode chegar com alguma coisa e outros discordarem. Mas mesmo assim, esta pessoa, se ela achar interessante, ela pode manter sua proposta de trabalho. Enfim, não existe nenhuma restrição.
Sérgio:
Pelo que você está falando ... não sei se a Suzana já leu os textos do René Major ... As duas convocatórias falam dos princípios ...
Suzana:
E aquela entrevista também da revista ....... Achei bem interessante ...
Alguém:
Eu ia te dar essa sugestão. Essa é minha primeira reunião também, mas eu li uma série de materiais que já estão sendo produzidos, que é uma forma de você acompanhar e ter uma visão mais ampla desse movimento.
Cristina:
Existe a questão da depuração dos princípios, foram surgindo questões de organização, e têm as questões em discussão.
Uma das discussões fortes, houveram várias, é a da nossa posição nas nossas interlocuções com os estrangeiros. E se levantavam questões que são cabeludas, do tipo: "por que é que quando escrevemos os nossos trabalhos, citamos só os nossos colegas renomados, estrangeiros e não citamos (ou nem mesmo lemos) o trabalho dos colegas?" ... a gente está pagando um preço altíssimo por isso. Em muitos sentidos.
O primeiro, é que não desenvolvemos, com mais vigor, uma psicanálise aqui. Se bem que, eu acho que existe uma grande diferença de dez anos atrás para cá. Uma diferença gritante. Mas essa é uma questão que teve repercussão. Uma outra discussão foi a respeito das ligações perversas entre os analistas e os seus pacientes ou dos analistas entre si.
Discutimos também as relações que os psicanalistas desenvolvem com a psiquiatria biológica, com as ciências contemporânea, e discutimos também os ataques que tem sido feitos à psicanálise. A coisa vai por aí. Fiz um arrolamento das questões . Vocês devem tê-las recebido por e-mail, fax, correio,etc .. Tem um trabalho da Maria de Fátima Siqueira, que também está circulando, pensando a crise da psicanálise.
Sara Hassan:
Eu queria fazer uma colocação. Eu entendo que esta nossa reunião aqui não é, ou ainda não é, um grupo. Eu entendo mais como um lugar de encontro nesse momento. E o que me ocorreu é que é alguma coisa que está circulando e que a gente não sabe direito o que é ... bom, este é um lugar privilegiado para circular; é, digamos, um lugar de encontro. E tem a circulação via textos ... Então, aquilo que está circulando tem essas duas formas, por enquanto. Só que eu não entendo aqui como grupo. Até agora é mais um lugar de convergência. Um lugar de encontro.
Cristina:
E aí eu sinto que fica uma questão importante: como é faremos a integração? É diferente ler as propostas dos Estados Gerais e de apropriar-se delas. Eu mesma estou entrando, e sentindo que lugar é esse. É um lugar que teremos que constituir e organizar.
Ao mesmo tempo tudo isso é muito desafiador, ninguém sabe no que está entrando. Não é uma proposta constituída. Para conhecê-la temos que nos envolver.
Suzana:
A questão de um trabalho a se constituir eu acho muito interessante, pelo fato de que, se conseguíssemos dar voz àquilo que vai dentro de cada um de nós num encontro, como você falou, já seria uma coisa bastante conquistada do meu ponto de vista ...
Uma das coisas que me ocorre é essa relação que você disse entre o estrangeiro e o nacional, a perspectiva de colocar a nossa voz, a nossa experiência, aquilo que realmente a gente tem aprendido consigo, com a clínica, com a análise, ao longo destes anos, e que é propriamente nosso. Talvez até o fato de ter ido ao estrangeiro nos permita voltar de uma maneira mais consistente para o que é nosso, para tentar dizer o que é nosso . Eu teria, em relação a esses encontros, uma expectativa que vai nessa linha.
Eu li o trabalho da Fátima e particularmente queria dar uma resposta para ela. Eu gostei porque é uma fala nova, uma fala daquelas que mantém um frescor Às vezes o que tem acontecido comigo é pegar determinados textos, determinados discursos, que por mais inovadores que possam ser para quem escreveu, estão tão embuídos de uma certa fala, que não toca mais. E por isso eu gostei do seu trabalho, do que foi apontado, do que foi sendo trazido e com esse espírito que eu estou chegando aqui. Para ver se a gente consegue fazer uma fala nossa.
Cristina:
Eu vou dar umas sugestões de encaminhamento para esta reunião. Primeiro: a qualquer momento, quem quiser toma a palavra. A segunda coisa: é pensar como organizamos os trabalhos. A outra proposta é discutir esse fio que já está aí, que é: como é que conversamos com os estrangeiros? Que eu acho que toca ... nem sei como o Paulo (Cecarelli) está pensando o trabalho dele, mas eu o imagino também contendo essa possibilidade. Segundo o que localizamos na última vez, tem uma relação perversa que rola.
Paulo Roberto Ceccarelli:
Não é nem lá nem cá ... é uma relação ...
Ana Maria da Costa:
Eu também gostaria, fiquei pensando agora,
de dar um depoimento. Eu
estive na nossa última reunião e levantei uma série de coisas
em relação às preocupações que surgiram , expressando a
nossa forma de lidar com a nossa própria produção. Eu acho que
precisamos romper com alguma coisa que faz com que nossa
produção não tenha um encaminhamento mais interessante. Me
parece ser uma desconfiança nossa.
Nós somos extremamente desconfiados em relação uns aos outros. Cada vez que eu participo de reuniões em lugares diferentes, sempre tem essa coisa do preâmbulo: "bom, não somos uma instituição, não vamos formar um grupo..." Tem uma certa fobia, vamos dizer, a reuniões. Como se essas reuniões pudessem se ornar sempre do mesmo jeito. Eu acho que isso produz um certo percalço. É preciso algum tipo de suporte para que a nossa produção circule. É preciso uma transferência que permita que a nossa produção circule entre nós.
Eu tinha me proposto a participar da reunião dos Estados Gerais em Paris, porque estaria lá na Europa em função de uma outra reunião, mas tive que retornar antes da data da reunião dos Estados Gerais. Mas participei de uma outra iniciativa de analistas, que eu não sei se vocês conhecem, que se chama "Convergências".
E é engraçado, nessa reunião, quando se propôs uma reunião de analistas entre os brasileiros (que tinham um número expressivo lá, cinqüenta colegas foram), gerou-se um desconforto ... o que quer que fosse de uma organização do Brasil, não andou. Enquanto que os colegas argentinos e os colegas franceses têm uma organização entre eles e isso viabiliza o lugar de suas produções dentro do campo analítico.
O que eu percebo é que tem essa trava inicial: de como vamos nos reunir, em nome do quê, em nome de quem, que sempre produz essa espécie de desconforto, de desconfiança inicial ... Enfim, é o que eu tenho percebido. Eu não sei como, não sei com que movimento, mas eu tenho participado de todos os movimentos para viabilizar uma inserção mais interessante da nossa produção, porque é isso que me interessa. Enfim, eu estou disposta a trabalhar para isso.
Paulo:
Essa Convergência foi onde, em Paris também?
Ana Maria:
Não, a Convergência foi em Barcelona e
reúne 43 instituições e analistas
avulsos e ...
Paulo:
Esses brasileiros moram em Barcelona?
Ana Maria:
Não, são os brasileiros daqui, que foram daqui para apresentar...
Cristina
Conta um pouco ...
Acho que esse é o centro da nossa discussão, acho que cabe.
Ana Maria:
A Convergência teve uma série de iniciativas e fez uma 'serie de reuniões de analistas. Uma delas foi a Lacano-americano que serviu, no meu entender, para reunir colegas argentinos que brigavam entre si, se detestavam e não se falavam. Essa é uma forma meio ... crua de dizer a coisa, mas tudo bem. Em todo caso, eles tiveram bastante sucesso no sentido de reunião entre analistas argentinos.
Enquanto reunião de produção é muito complicado, porque não facilita o trabalho, não facilita discussões de trabalho. Então, acabou se tornando mais uma reunião política e isso permitiu que as instituições argentinas se reunissem para fundar uma certa base de um movimento. Depois, surgiu um movimento francês chamado Interassociativo (que é um pouco o espelho da Lacano-americano), É um movimento francês, que se inspirou na Lacano-americano, tendo a mesma intenção. Entretanto, os argentinos tomaram a frente e propuseram uma outra forma de reunião onde houvesse possibilidade de trocas. Desta forma surgiu o movimento de Convergência.
Esse movimento reúne franceses, italianos, pessoas dos Estados Unidos, do Brasil, da Argentina. Na Convergência podem se inscrever ..., tem espanhóis também, alemães ... Os colegas espanhóis foram os que organizaram as duas reuniões.
Surgiu um movimento que me parece de peso. Os colegas argentinos, por terem resolvido essa dificuldade da desconfiança, tomam a cabeça do movimento e fazem uma certa mediação interessante em relação aos franceses, que tem mais dificuldades com reuniões. Os brasileiros, que estavam lá e nós que estamos nessa reunião, estamos ainda sem muito rumo.
O que eu percebo há muito tempo, a partir de todas essas iniciativas internacionais, é essa necessidade da gente construir um suporte de transferência de trabalho, sem muita embananação, para fazer o que eu acho que é fundamental. Não é possível a gente participar de trabalhos internacionais se não tiver um trabalho entre nós. Essa é a minha opinião.
(Troca de fita. A discussão prossegue sem ser interrompida. O início da fala se perde. Ana Maria estava falando que foi ouvido numa reunião em que ela participou (Convergência, em Barcelona), que os brasileiros estavam ali, como sempre, para "dançar". Retomando:)
Ana Maria:
...Essa é a brincadeira que eu fiz numa análise que eu mandei, que a gente dança realmente.
Paulo:
Dança e dançou, né?
Sérgio:
Foi um "dançou" desrespeitoso, você achou?
Ana Maria:
Completamente. É claro que foi feito em off, mas nós ficamos sabendo. É por isso, que eu estou interessada em participar de qualquer iniciativa de reunião no Brasil . Esse é um testemunho que eu queria colocar.
Cristina:
Acho que a Regina pode dar alguma notícia do que tem acontecido em Brasília.
Regina Orth Aragão:
Passei a convocação para algumas pessoas em Brasília, onde eu moro, e há sim um interesse bastante firme, até agora pelo menos, em participar e produzir trabalhos. Eu vim aqui nessa reunião ... aliás, vocês já tiveram umas duas ou três reuniões antes desta, eu vim para principalmente ouvir, e também para poder trazer esse interesse do grupo de Brasília, onde se ligam diferentes analistas, pertencentes a diferentes instituições.
Nós estamos começando a pensar sobre nossa participação, mas há um interesse bastante grande. Por enquanto, não temos sentido lá essas preocupações colocadas nesta reunião. (a gente está um pouco fora dos pólos mais centrais do Brasil). Quem sabe vá surgir, mas por enquanto elas ainda não apareceram. O que nos preocupa lá, é como viabilizar essa participação. Talvez seja isso que vocês estão discutindo também: de que modo organizar, quais as temáticas dos trabalhos, se há uma delimitação das sistemáticas ou não, como os trabalhos serão apreciados, como circularão. É essa a questão que está nos ocupando agora, lá.
Suzana:
Quando você falou no "dançar", eu fiquei pensando se a gente poderia aproveitar a situação para uma interpretação. É que a gente, concordou com um sentido dela, mas podemos pegar num outro sentido, do dançar mesmo, enquanto flexibilidade, enquanto alegria, enquanto movimento corporal, enquanto algo que pudesse dar, pudesse servir de caminho para uma fala diferente da fala francesa e da fala argentina. Nesse sentido, acho que valeria a pena pensar e agarrar o termo, fazer um bom samba, um movimento novo da música popular brasileira, não é?
Regina:
É porque me parece que quando se fala que nós dançamos, se diz que nós só dançamos, ... Eu acho que ainda bem que nós dançamos, mas talvez a gente precise não só dançar. Aliás, eu acho que a gente não só dança.
Suzana:
Eu acho que a gente dança mais mesmo, num sentido ...
Paulo:
Mas pelo que eu entendo do que ela falou, não é a questão de dançar ou de não dançar. Eu acho interessante o que você falou, mas a questão é como ajeitar o ritmo? Porque o que eu senti que você trouxe, Ana, é que existe uma isso que você ouviu em off descredibilidade em relação ... que é o que a gente está discutindo. Que talvez exista até entre a gente, não é?
Eu não sei se seria o caso, mas podemos levar a reflexão um pouco mais longe, no seguinte sentido: será que esse é um fenômeno entre psicanalistas ou é um fenômeno brasileiro em relação à produção nacional? Assim a coisa é mais complicada de combater. Mas não é impossível. Por que é que existe essa mitificação do que não é brasileiro? Isso em todas as áreas, não só em psicanálise; o que vem de fora é um negócio assim ...
Recentemente eu vi na Folha, pessoas que trazem coisas dos Estados Unidos. Eu me lembro do que um desses sujeito falou. Ele trazia uns perus congelados para serem comidos aqui. Trazia-os numa geladeira e a propósito disso disse não ser não igual ao pessoal do norte do Brasil, que traz em isopor. Quer dizer... O jeito de se falar é um problema endêmico no Brasil. Mas eu acho que isso não impede, de maneira nenhuma, que saia, pelo menos da gente aqui, alguma proposta de trabalhar. Agora, como? Eu acho que é essa a questão. Lá, os argentinos botaram o tango para tocar e acertaram o passo. Agora, vamos tentar fazer o mesmo.
Ana Maria:
Eu acho, pelo que eu tenho escutado dos trabalhos dos colegas argentinos e franceses, que a criatividade dos brasileiros é muito importante para o rumo da psicanálise. Nós temos simplesmente que dar suporte a essa criatividade. Porque não é possível que a gente continue não reconhecendo a importância que tem o arejamento que a gente pode produzir. Essa questão da crise da psicanálise, eu entendo como uma certa crise em relação à transferência, com uma forma de psicanálise que a Europa tem trazido.
Paulo:
Concordo plenamente. É uma crise interna.
Ana Maria:
Então eu acho que é fundamental nossa participação.
Cristina:
Por aí eu lembro desse trabalho da Fátima que está circulando. Me lembro que lá ela ressalta de que não dá para fazer psicanálise, se a gente não gosta de gente e se a gente não gosta de psicanálise". Não dá. Fica aí um não gostar. Fica uma desvalorização.
Sérgio:
Eu não sei se todos leram o trabalho da Miriam. Eu recebi por e-mail, não sei se as pessoas já tinham lido... Eu acho muito pertinente dentro do que nós estamos discutindo aqui. O seu trabalho pega muito bem tudo isso. Articula muito bem e eu acho que o que está em jogo nessa situação, é a questão da nossa identidade brasileira, cultural-brasileira e psicanalítica.
Essa questão que a Miriam aborda, eu achei muito bem colocado aí tanto de nós sermos, permanentemente, o paraíso para os europeus, o Éden, como em termos exóticos, em termos de ditadura, de sermos os eternos torturados, marcam uma determinada figura, um estereótipo. A questão da dança é um exemplo disso que nos estreita muito, nos diminui muito, porque nós não somos só isso. Nós não somos o exótico, o torturado ou o que dança o samba. Eu acho que essa é a nossa possibilidade de encontrar nossa identidade na psicanálise, discutindo aqui. Mas também acho que este é um problema muito mais amplo, que este é o problema da nossa identidade cultural mesmo.
A própria Bienal, como todos devem ter lido, visto e examinado, é a questão da antropofagia, também citada pela Miriam, é nosso eterno dilema, o de estar permanentemente deglutindo, recebendo essa informação do primeiro mundo.
Informação da qual, de fato, nós dependemos. Eu penso assim, sem nenhum sentimento de diminuição. Acho que devemos reconhecer os nossos pais, no sentido de que realmente recebemos e precisamos desse aporte muito grande, não é? Agora, a devolução, a digestão, o que nós fazemos com isso é que eu acho que tem sido extremamente problematizada . O que a gente faz com a digestão, o que produzimos e a conotação original disso é que eu acho muito problemático. Eu não sei se nós ainda conseguimos produzir isso. A psicanálise é um conhecimento muito específico e que depende muito de determinadas pessoas.
Às vezes eu penso que a questão da geografia da psicanálise ... eu me pergunto se é uma questão tanto de geografia espacial ou se não é mais de filiações.
A psicanálise inglesa é feita por uma alemã, uma judia-alemã, que foi Melanie Klein. Não existe uma psicanálise vienense ou psicanálise austríaca. Existe Freud, existem grandes autores, grandes pensadores, que deram grandes contribuições. E eu acho que esse é um problema que não deve ser escamoteado também. Eu penso, por exemplo, no Brasil. Nós não tivemos ainda, e acho que não estou sendo levado pela inveja nem por uma cegueira gerada pela rivalidade, mas acho que ainda não tivemos um grande autor, não temos ainda uma produção efetivamente de peso.
Até mesmo na Argentina, que tem todo um trabalho em cima de grandes textos clássicos e de grandes autores, também não há um pensamento muito original, e ainda não apareceu um grande autor. Eu digo isso para enriquecer um pouco a nossa conversa e para retomar um pouco o que eu acho central, e que Miriam aborda muito bem, que é a questão da nossa identidade, de não aceitarmos esse estereótipo do torturado e nos fecharmos nisso.
Como sou muito ligado em literatura, acho que isso é uma coisa muito própria, também, da literatura, quero dizer, o europeu não entende que possa existir uma
Clarice Lispector, alguém que está longe desse exotismo tropical de Jorge Amado, de Gabriela Cravo e Canela, mas que é alguém que pensa. Nós temos uma subjetividade, nós temos uma interioridade, nós temos uma dimensão psíquica tão grande, igual ou ... enfim ... é evidente, não?
Então eu acho que a questão é como produzir isso em termos de psicanálise. Essa sim é a nossa questão. Eu acho que uma linha interessante de produzir aqui é isso: como deglutirmos, como, na nossa antropofagia necessária e constitucional. Nós nos constituímos alienados no outro, como Lacan diz (e é verdade), então, como fazermos essa separação, sem negar o que recebemos. Conseguir fazer uma coisa original, própria e sem sentimento de inferioridade, que é um outro grande problema nosso.
No congresso de psiquiatria de onde eu vim agora, assisti a uma palestra do Gambini, não sei se vocês conhecem ... Roberto Gambini, ele é sociólogo, formado na Universidade de Chicago, que depois formou-se analista junguiano em Zurique ... Achei uma pessoa brilhante .. Ele estava justamente falando sobre a questão da identidade brasileira, desse nosso endêmico e perene sentimento de inferioridade.
E que nós temos, eu tenho, de parar de negar essa situação. E, sem negar esse sentimento de inferioridade, poder resgatar as nossas qualidades, a nossa originalidade, a nossa capacidade de dançar, de ser criativos. Eu acho que esse é um rumo que podemos seguir aqui. Questionando também o que fazemos da nossa produção, como produzimos, de que maneira conseguimos produzir, sem negar os aportes necessários vindos de fora ...
Cristina:
Uma coisa que eu pensei enquanto o Sérgio falava é que essa questão não é só entre nós e os estrangeiros. As questões das quais estamos tratando, estão também aqui entre nós. Têm os que são sabidos, os donos da palavra, os que estão sempre nessa posição, e tem os que comem, comem e não acontece nada. Então, eu acho que a utilidade de estar pensando essas questões não é só na nossa relação com os estrangeiros do além-mar, ou qualquer coisa assim, mas também na relação que nós desenvolvemos entre nós .
Miriam Chnaiderman:
Eu acho que sim. A gente está aqui por uma convocatória que veio da França e eu acho que o que eu procurei historiar nesse meu artigo é a história disso tudo... Eu acho que existe essa questão dos que deglutem e produzem, dos que deglutem e ... enfim ...
Cristina:
Que tal você dar uma resumida no seu artigo? Sabe por que? Porque tem gente aqui que não recebeu.
Miriam:
Vou contar. Bom , é um artigo que está também na revista Percurso. O nome é "Existe uma Psicanálise Brasileira?" E no final eu vou concluir que existe, assim como existe uma nigeriana, uma australiana, uma inglesa, uma francesa, porque toda psicanálise acontece marcada pelo contexto onde acontece. A gente não paira acima do onde, da história que essa psicanálise tem, de onde ela acontece.
Para chegar nisso eu vou historiando o fato de um encontro que aconteceu em 80, ligado ao René Major, lá atrás, com o grupo Confrontation. Era um encontro franco-latino-americano. Tem um número da Confrontation com o que foi exposto naquele encontro.
Era um ano onde estava em todas as bocas, o horror do caso Amilcar Lobo e numa fala do Derridas, sobre o que ele chama geopsicanálise, ele discute pontos super importantes. Discute se existe uma geografia para a psicanálise. Ele faz a análise de algumas propostas da IPA, onde a África, América Latina, para a Europa ficam como o lugar nenhum, o lugar sem nome, o lugar a ser colonizado por uma psicanálise. Fica o resto do mundo.
Vai, a partir daí, discutindo também as posições da IPA em relação às violações dos direitos humanos. Ele coloca que o uso de uma linguagem jurídica não dá conta da questão e propõe uma geopsicanálise. Uma geografia que leva em conta a terra, o lugar onde a psicanálise acontece. Aí eu dou um pulo e vou para 88, 89, não lembro. Foi um encontro da Associação Freudiana em Paris.
Um encontro franco-brasileiro, que tinha como proposta uma convocatória que partia do Manifesto Antropófago do Oswald de Andrade. Na proposta, eu faço uma análise, tinha uma leitura do Manifesto que eu acho horrível. Era, e é a idéia de que o Brasil tem muito para ensinar para a Europa, no sentido de ser o lugar onde houve a tortura, o terror de estado . Por que a gente tem esse lugar a gente pode ensinar aos europeus ... uma coisa muito confusa, muito complicada, que eu analiso e depois vocês podem ler.
Depois eu parto do Lacan na América Latina. Eu vou pincelando como o Contardo fala criticamente do Jacques Alain Miller, mas eu também critico a posição do Melman, que fala de um destino de colonização. Ele fala que a gente tem isso marcado e que não tem como escapar dessa marca que é a nossa origem. Eu discuto isso, mas o que ele fala nesse texto no qual eu me baseei é uma coisa de um destino de um lugar, o que você foi na tua origem, você carrega e não tem jeito. Você vai ser sempre o colonizado. E ele diz que está se baseando na análise de pacientes desses países colonizados. Ele não fala quais países, mas fala em América do Sul, em África.
Paulo:
Estados Unidos ...
Miriam:
Segundo ele, também. Aí eu tento pensar a partir do Manifesto Antropófago, a partir de um livro do Todorov que eu acho lindo, que é a Descoberta da América, esse lugar que a gente já nasce como o outro. A noção de alteridade, a identidade européia, é dada por essa descoberta da América. Eu discuto isso, discuto muito o manifesto, a questão da utopia, o lugar da utopia que a gente ocupa e que a gente entra.
Existem alguns movimentos como o do Magno, no Rio, que entra nesse lugar da utopia. Enfim, uma discussão que eu vou fazendo por aí, pensando a partir do livro da Cecília Coimbra, "Os Guardiães da Ordem", vou falando de alguns movimentos que buscaram o resgate desse lugar numa produção própria, tentando resgatar assim o que eu entendo que é a proposta do Manifesto Antropófago, que não é o de um nacionalismo tacanho, de jeito nenhum. Ele não é uma proposta que vem do lugar do exótico, enfim, nesse artigo eu conto do Caetano Veloso que fala assim "bom, mas a gente tem mesmo coqueiros na praia, a gente também não precisa..."
Cristina:
Tem um artigo do Sergio Paulo Rouanet, que é muito interessante. Ele fala de diferentes tipos de antropofagia .Cita duas tribos: uma que era nacionalista e só comia gente da terra (risadas)., e a outra tribo que adorava comer estrangeiros.
Os primeiros foram minguando, em conseqüência de sua autofagia. Os outros comem gente da terra, estrangeiros, vão bem, porque inclusive podem se globalizar nesse momento (risadas). Então, se tomamos essas coisas como uma coisa nacionalista, acabamos matando a tribo.
Miriam:
Não é por aí. O que o Oswald propunha era uma revolução internacionalista Caraíba. Ele achava que a saída era o mundo fazer a revolução.
Cristina:
Tinha gente que queria mudar o nome dos Estados Gerais. A gente pode pôr Estados Gerais Caraíbas, em vez dos Estados Minas Gerais. Eu acho que Estados Gerais Caraíbas ...
Miriam:
O Caetano fala uma coisa interessante no livro dele, discutindo isso. Ele fala que não bastou a América ter sido descoberta, o Brasil teve de ser descoberto depois. E ele tenta pensar essa história de um jeito ... eu não gosto do livro do Caetano, eu acho muito mal escrito, mas ele joga algumas idéias importantes que eu tento ver aqui.
Sérgio:
Eu não sei se você estava citando aí, porque eu li recentemente que o nome Brasil, (não sei se você estava se referindo a isso), era o nome de uma ilha mítica chamada Brasil desde 1300. Então, foi por isso justamente que, quando chegaram aqui, teriam dado esse nome, porque teriam chegado à famosa ilha Brasil.
Miriam:
É, existia esse mito lá atrás ... Eu falo que existe, não no sentido de uma psicanálise brasileira, mas que a psicanálise sempre vai estar marcada pelo lugar em que acontece. A psicanálise é uma produção social, também.
Sérgio:
É justamente esse ponto que eu estava querendo retomar no seu artigo. Não se pode negar o contexto e a tradição cultural local, a realidade local, a cultura, a língua e tudo, mas é interessante pensar que a psicanálise também é uma linhagem, são analistas que saem de Viena e que se espalham. Um êxodo. A psicanálise vai acompanhar essas pessoas. Vai sendo implantada por essas pessoas e por esses grandes autores, que vão criando grupos. É uma mistura de grandes autores, de grandes pessoas originais, dentro de uma determinada cultura.
Sendo que a própria psicanálise é originária de Freud e de um grupo praticamente judeu. Todo mundo sabe o quão Freud achou importante a aquisição de Jung. Ela significava tirar, dar uma conotação à psicanálise não mais de uma coisa judaica. Esse grupo todo se espalhou pelo mundo e, claro, assimilou a cultura, a língua, os costumes de cada região. Mas foram pessoas que levaram. Acho interessante pensar como essas duas coisas se juntam.
Paulo:
É interessante como cada cultura vai, de certa forma, oferecer uma resistência que lhe é própria. Eu fico pensando no que você falou desse êxodo do pessoal da Áustria pelo mundo afora. O Bettelheim escreve muito bem sobre a desilusão dele, ao tentar falar de psicanálise nos Estados Unidos. A cultura de lá não deixava entrar. E não é o que a gente vê acontecer aqui. Então eu acho que aí tem uma diferença.
Eu estava exatamente pensando no seu artigo, que aliás eu gostei muito, e que eu acho que tem uma coisa muito curiosa, que é quando o Melman fala que esse é o nosso destino. Não importa se ele está certo ou errado, não é por aí a coisa.
Eu segui bem o Fédida nessa estada dele aqui, e em vários momentos ele falava de como a gente está já no século XXI e uma porção de coisas,... mas o que chama a atenção nisso que você aponta no seu artigo, de certa forma, é de que até essa constatação de que nós estamos melhores, tem que vir de fora ... Tem um lá que fala "vocês estão muito avançados!" e aí a gente fica todo "ah! O francês falou que a gente está ... " Então é um negócio complicado, né? Como lidar com isso? Eu acho que o Melman não tem ... tem razão de certa forma ... não nesse destino, talvez...
(Nesse momento a fita do gravador termina. A discussão prossegue sem ser interrompida e parte do discurso se perde):
Cristina:
O jeito de lidar com isso é produzindo e pensando a produção. E revendo a produção e discutindo a produção. Acho que é o único jeito.
Outra coisa que queria dizer é que o Fédida dizia que a gente está no século XXI porque somos antropófagos . Ele acha que a psicanálise do século XXI, no mundo inteiro, vai tender a ser isso. Somos antropófagos desde a fundação, ele acha que isso, mesmo lá em 1500, já era um pé na contemporaneidade.
Paulo:
Talvez a gente tenha, antes de ser antropófago, de deixar cozinhar mais.
Cristina:
Tem que cozinhar bem.
Paulo:
Tem que incluir os temperos.
Cristina:
Ou então a questão é a metabolização. Parece que entra e sai. Então não há boa digestão.
Miriam:
Antropofagia é diferente de canibalismo. Eu acho que a antropofagia é um ritual super interessante, complexo, com todo. Um ritual importante.
Paulo:
Mas se acaba comendo, né?
Miriam:
Mas quem mata não come. Aquele que mata ganha o nome do que matou, tem toda uma ... É mais sofisticado.
Paulo:
Não come o que matou mas come outros que outro matou.
Miriam:
Não, tem toda uma distribuição de pedaços para as mulheres, para as velhas, para os sábios, enfim, tem toda uma coisa ... e é importante essa diferença, porque não é qualquer coisa essa diferença.
(neste momento houve um problema na gravação e parte da conversa se perdeu. Retomando:)
Sérgio:
... a "verdadeira" psicanálise, então os lacanianos, se é que acham que estão com a "verdadeira" psicanálise, eu acho que estão completamente equivocados. Assim como a IPA, assim como a psicanálise do ego, .. esta é outra realidade nova da psicanálise, a meu ver: uma perda da paradigmas. É claro que as identidades, as escolhas e as opções teóricas, e não sou eu que estou dizendo, mas todo mundo já leu muito sobre isso, estão muito condicionadas pelas identidades com os seus analistas, com as identidades de grupo, com as identidades institucionais.
Mas eu acho que no momento a psicanálise está vivendo uma situação que esta mesma identidade, (forjada nas identificações grupais e nas identificações com os analistas e com os supervisores, e até nas situações geográficas), se quebra um pouco, porque há várias linhas de psicanálise. Há várias formas de entender a constituição do sujeito. A forma como Melanie Klein entende a constituição do sujeito, a meu ver, é radicalmente diferente da forma como Lacan entende. Eu acho que esses confrontos teóricos precisariam ser vistos.
Paulo:
Independente do analista?
Sérgio:
Independente. O que a Fátima falou eu acho que é importante, porque fala que a questão, o problema da psicanálise é muito a questão do psicanalista. Eu acho que sim e que não ... que todos nós precisamos de mais análise, eu acho que sim, não é? Mais análise para todo mundo não seria ruim para ninguém, todos nós temos os nossos narcisismos, neurose ...
Paulo:
Recomendação freudiana ...
Sérgio:
Sim, sim, mas eu acho que a questão não é só uma questão transferencial. Eu acho que mesmo no corpo teórico há linhas divergentes, há propostas divergentes, com conseqüências técnicas divergentes.
Uma terapia de criança via Melanie Klein é uma coisa, uma terapia de criança via Françoise Dolto é outra coisa. Até se questionaria, eu questionaria, dentro de uma determinada visão, até que ponto uma psicanálise de criança se sustenta, efetivamente. Se você entende que a criança está inteiramente mergulhada no outro materno, a terapia é uma gota dágua num oceano imenso que é a relação que a criança está tendo com a mãe.
Eu acho que essas questões para mim são extremamente importantes. Eu não sei se vocês achariam isso interessante, pensar a perda do paradigma. Não se tem mais um paradigma freudiano, lacaniano, via psicanálise do ego. Eu acho que há a necessidade de um consenso, de enfrentar uma quebra narcísica, de crenças narcísicas e aguentar a insegurança que isso gera. Enquanto eu estou achando que estou com a verdadeira psicanálise, com a verdadeira teoria e que a minha teoria é a certa, frente a toda angústia do inconsciente, do desconhecido e tudo o mais, é uma grande segurança.
Agora, você dizer: "puxa, eu estou apenas com uma teoria e eu preciso confrontar essa teoria com esta com aquela e com aquela. E vamos estudar, vamos confrontar clinicamente. Então, você é lacaniana, você é kleiniana, vamos ver no material, de que maneira ele se organiza ... Eu acho que, em termos de idéias, sempre se fala nisso e até agora tem sido uma impossibilidade. Eu não sei se haverá uma possibilidade no futuro, mas eu acho que é uma questão muito importante.
Será que nós não deveriamos pensar, que em termos de Brasil, nós chegamos à adolescência da psicanálise? Eu estava pensando assim: que está na hora da gente dar um tempo com os pais, de ficar discutindo que o meu pai tem um carro mais bonito que o seu pai, e entrar numa coisa mais de grupo mesmo, de uma identidade grupal, onde cada um vai vir com a sua experiência.
E se a gente conseguir ter um clima de cooperação, de colaboração, as diferentes influências vão achar o seu lugar, quer dizer, não precisa todo mundo usar a mesma camiseta para ser do mesmo grupo. Então eu acho que esse momento é muito rico de possibilidades para nós. Eu acho que pode-se ver um momento de esperança agora. A gente deixa para trás um pouco a influência, que foi necessária, dos pais e agora ... vamos nós!
Rubens Coura:
Eu venho me preocupando muito com essa questão nossa dos Estados Gerais. Eu escuto falar disso, das diferenças institucionais, lacanianas, freudianas, kleinianas ... questões muito pertinentes, sem dúvida, mas uma que preocupa há tempos e que eu não vejo muito abordada é a questão Charcot. Eu vou explicar o que é: esse colóquio França-Brasil que a Miriam se referiu em 89, foi realizado, você se lembra, na Maison d' Amérique Latine, coisa que me chamou muita a atenção na época, porque era a casa onde o Charcot viveu. Era a mansão do Charcot, do neurologista, do hipnotizador que todos conhecem. Freud foi seu discípulo durante um certo tempo, todos sabem. Enfim, nos jardins daquela casa onde haviam os coquetéis, lá dentro nos salões do Charcot, onde haviam as reuniões, e as salas de psicanálise, me pareceram, todas elas, de alguma forma, contaminadas pelo Dr. Charcot.
Então? Por que eu digo Dr. Charcot, Professor Charcot? Não é que estavam contaminadas de neurologia, nem sequer de psiquiatria propriamente dita, mas contaminadas, infiltradas, no que isso pode haver de ruim e até de bom, não sei, mas de um saber maior, tecnológico.
Vejam vocês, a fala de Hanna Segal entre nós. O que chamou a atenção naquela entrevista famosa da Veja foi o Prosac, do "Matando Moscas a Marteladas". Ela disse corajosamente: "o Prosac não pode ser tomado desse jeito, indicado desse jeito, a torto e a direito. Isso seria matar moscas a marteladas, quando na verdade ..." O que ela queria dizer com isso? Ela dizia que não é preciso, para tratar de depressão, utilizar marteladas. Existem psicoterapias, existe a psicanálise ... mas era uma consideração médica do Prosac.
A outra consideração de Hanna Segal, nessa entrevista que foi discutida em São Paulo inteira, foi a questão das crianças. Ela foi também, corajosamente, contra essa coisa da criança como está sendo na Inglaterra. Ela é vigiada, filmada, quer dizer, a criança não pode ser maltratada, espancada ... mas não pode como? Não pode policialmente, pediatricamente.
E ela até disse : "não existe especialista em criança espancada, em criança maltratada, existem psicanalistas. Não tem psicanalista especialista nisso ou naquilo". Quer dizer, ela precisou desarmar uma coisa entre nós, uma coisa do Prosac, uma coisa da vigilância pediátrica, não é? ... Então eu penso que essa coisa médica fica permeando esses movimentos. Movimentos até como esse aqui, dos Estados Gerais. Eu tenho receio de até onde vai esse compromisso.... a tecnologia que o Dr. Charcot tinha na ocasião., fez com que até Freud saísse de Viena e fosse para Paris ...
Hanna Segal, embora não seja psiquiatra no sentido de psicofarmacologista... precisou falar de Prosac entre nós, para desarmar o nosso entusiasmo excessivo com ele. O grande entusiasmo dos psicanalistas inclusive. Estes, mesmo que não o receitem, têm uma preocupação muito grande, como todos sabem.
Será que essa coisa nossa com a França, com a Inglaterra, não passa por uma hightech, que na verdade a psicanálise só pegaria, só roçaria, só tocaria no sentido da cultura? Talvez nós nos equivoquemos e enxerguemos numa Hanna Segal, numa Danièle Brun, numa ida à França, numa vinda de franceses para cá, uma comitiva tecnológica, uma superioridade que seria de uma tecnologia, que sem dúvida eles têm. Os norte-americanos , os ingleses, também têm .... mas essa superioridade tecnológica diz respeito à psicanálise?
Além de dizer respeito à cultura, ela diz respeito à psicanálise? Porque os franceses, os ingleses vem para cá desarmando essas crenças em tecnologia, né? Parecem avatares do Dr. Charcot, que dizem "Não, vocês não tem que ficar hipnotizando, não é só isso que tem, vocês podem pensar em outras coisas ... Não, o Prosac não é indispensável ...Pode ser uma violência ..." Quer dizer, a fala desses estrangeiros dos países super-desenvolvidos, me lembra uma fala tecnológica, que diretamente não deveria ter nada a ver com a psicanálise. Uma fala hightech, uma fala de produtos farmacêuticos de última geração, uma fala de técnicas, de observação de crianças por vídeo ...
Para concluir, tenho receio de que nós embarquemos algumas vezes numa ilusão tecnológica, como se ela estivesse revestindo o psicanalista. E eu repito, fora da noção de cultura, porque aí a tecnologia vai envolver a todos nós, claro. Mas, será que nós, às vezes, não nos iludimos, fantasiando, imaginando, que há uma tecnologia, uma superioridade pela tecnologia, pela hightech, que envolve os psicanalistas do chamado primeiríssimo mundo?
Suzana:
Talvez aí a gente pudesse estabelecer duas coisas: o Sérgio estava falando de pessoas que pensaram mais profundamente a psicanálise: Freud, Melanie Klein, Lacan, Bion ... e nesse sentido, não existe uma nacionalidade, uma geografia da psicanálise. Mas por outro lado existe.
Pegando um pouco do que o Rubens está falando, se a gente puder pensar por aí, uma tecnologia da psicanálise, que, essa sim, é exportada geograficamente. De algum modo, o que Lacan, Bion e Melanie Klein falaram não corresponde, às deformações que chegam os seguidores no exercício dos seus pensamentos pelas bandeiras que tomam, identificados com suas escolas. Eu acho que aí vem o problema que a Maria de Fátima levantou, é um problema que não é atual. É um problema sempre existente e que nós vamos ter que conviver com ele sempre. Podemos pensar por que é que ele está mais emergente agora, não é? Acho que a formação do analista é mesmo um problema. Eu acho que vale a pena pensar essa dimensão .
Outra coisa que eu queria dizer, retomando a questão da desconfiança entre colegas, que eu associaria a ela uma contrapartida: a desconfiança de si mesmo, a desconfiança no próprio trabalho. É a insegurança de falar que acaba gerando esse movimento de ficar desconfiado e inseguro em relação ao outro. Os Estados Gerais realmente foram convocados pela França, por René Major. Entretanto, existe um grupo aqui hoje, muita gente, que mesmo antes de ouvir falar dos Estados Gerais, já tinha uma inquietação pela questão psicanalítica.
A inquietação roça em todos os lugares, em todas as instituições.
Então, por que é que nós não podemos liderar um movimento próprio? É preciso, de algum modo, que venha uma convocação externa para que a gente sente e diga: "A gente tem o que falar sobre isso"?
Cristina:
É por aí que eu penso que é importante que cada um, que estiver participando, tome a palavra. Porque senão saímos do jacazinho e vamos para o balaínho... Só para podemos nos organizar melhor, que horas vocês acham que terminamos essa reunião?
Alguém: Acho que duas horas de reunião ...
Cristina:
É? Então, existem algumas coisas que eu quero deixar acertadas.
Quem tiver o que dizer, faça circular o que está pensando. A circulação de pensamento não acontece só nas reuniões. Podemos nos comunicar por e-mail, fax e correio. Eu passei para vocês uma lista de muitos e-mails, podemos aumentá-la na medida do possível. Quem não souber passar e-mail, manda para mim que eu envio para o resto das pessoas. Em relação aos trabalhos, por enquanto, vocês mandam para mim que eu redistribuo. Isso é para darmos continuidade à comunicação e podermos fazer uma discussão mais ampla. Esta discussão pode se dar tanto aqui, quanto via correio, via internet.
A outra via que precisamos organizar é constituir um site para os Estados Gerais, Isso facilita muito. Essa é outra idéia. Sugestões de organização também podem circular por escrito. Não precisa acontecer tudo nessa reunião.
As pessoas podem também, se quiserem, fazer outras reuniões, como Clarissa e outras pessoas fizeram. Pode-se discutir e trazer coisas, ou para a reunião ou para a circulação geral. E tem também, o contato com outros grupos que acho que é importante.
Além disso. gostaria de dizer que, neste momento, penso em dois caminhos para esta reunião: podemos continuar com o que estávamos discutindo e ver onde vai dar, ou então, indagar, saber das outras pessoas presentes porque se interessaram pelos Estados Gerais.
Eu penso que o interesse de cada um é fundamental. É a partir daí, que nosso trabalho vai poder ser realizado. É a partir da preocupação e do que cada um tem a dizer que eu penso que os Estados Gerais tem alguma viabilidade.
Rodolfo Ruffino:
É minha também a questão de: por que é que as pessoas estão interessadas nos Estados Gerais ? Quando a Cristina abriu a reunião e pediu que quem tivesse algo a dizer, dissesse, eu não descobri o que eu tinha a dizer. Porque quando a gente diz, a gente mais ou menos supõe com quem está falando. Eu acho que os Estados Gerais são uma tentativa de resposta à uma crise. Talvez não exista, pelo menos de entrada, uma crise que a gente possa, no consenso, configurar: "o que é a crise?". Na saída, no final, quem sabe sim. Eu acho que cada um está aqui por estar enxergando essa crise por um determinado perfil, a partir de um lugar de onde começaram a olhar para essa crise. Eu estaria muito pouco a vontade no sentido de dar continuidade às falas já estabelecidas.
Cristina:
Mas isso não é necessário.
Rodolfo:
Sim...
Cristina:
Por isso eu estou falando da questão dos interesses ...
Rodolfo:
... Mas é necessário sim. Muitas vezes a gente pede o retorno de um anterior. O que eu gostaria de saber é isso: com quem eu estou falando. Algumas pessoas eu já vi outras vezes, outras não, algumas eu já vi mais vezes... com algumas eu estou habituado a trabalhar, com outras não ... O que eu gostaria era de ter um pouco essa idéia de por que cada um está aqui. Eu acho que é uma questão que a gente tem que dirigir a cada um. A resposta disso é singular. Eu gostaria muito de saber qual é a crise que cada um vê.
A gente ouviu algumas coisas, né?. Crise de paradigmas, de filiação, a questão de como somos vistos pelos estrangeiros, que necessidade é essa de buscar o aval do pai estrangeiro, tudo isso. Agora, não sei se é exatamente essa a crise que a gente vê no dia a dia. Qual é a crise que fez a gente, de algum modo, eleger uma convocatória de Estados Gerais como resposta? Mesmo historicamente, como no texto do René Major, os Estados Gerais eram convocados em momentos de crise, mas houve o momento em que os Estados Gerais substituíram o rei. Gostaria de saber qual é essa crise; eu acho que o povo francês soube qual era a crise e os fazia que substituíssem o rei.
Clarissa Ollitta:
Me diga uma coisa: você tem alguma sugestão de funcionamento que dê conta dessa questão? Por que eu estou exatamente com essa pergunta: que dispositivos internos criar para que as pessoas, inclusive eu, fiquem à vontade para se expressar. Então, como é que seria? Que sugestão concreta a gente teria? Eu acho interessante ...
Cristina:
A minha primeira sugestão é a chamada cara de pau. Essa é a primeira. Eu acho que a gente tem que se esmerar bastante na cara de pau e correr riscos.
Sérgio:
De se expor, você diz?
Cristina:
Que concordem ou que discordem, ou seja lá o que for.
Regina:
Eu tenho uma sugestão que é bem prática, pensando em tecnologia, de repente uma tecnologia de grupo, né? Vamos pensar que a gente não precisa só usar a psicanálise, mas talvez outras contribuições. Vocês são um grupo bem grande ...
Cristina:
Vocês, não. Nós ...
Regina:
É porque eu estou aqui e não estou, estou dentro e estou fora ...mas, enfim, estou aqui com vocês hoje ... Quem sabe organizar, de vez em quando, um trabalho em pequenos grupos, que permita que as pessoas se falem mais, já que nem todos se conhecem. Mas que esses pequenos grupos se desloquem, não sejam fixos; se desloquem e se comuniquem entre si. Eu acho que isso pode facilitar , até facilitar a cara de pau, quero dizer, fazer com que as pessoas possam se colocar mais facilmente. É uma sugestão prática, que em outras situações de trabalho institucional (não em instituições psicanalíticas, em outras instituições), a gente sabe que são bem operantes.
Miguel Bairrão:
Bom, para quem não me conhece o meu nome é Miguel..., estou aqui e já venho discutindo com alguns colegas as questões que são objeto do debate. Como introdução, e seguindo o conselho da cara de pau, eu gostaria de dizer o seguinte: na realidade me parece que quando se discute a questão da filiação ao estrangeiro, que se coloca a questão do estrangeiro, muitas vezes se escamoteia uma filiação, não ao estrangeiro, enquanto influência cultural, mas ao que há de estrangeiro na própria cultura brasileira. Se nós tentarmos encontrar ou resolver um problema de identidade nacional com significados muito acabados, não iremos muito longe. Estaremos tentando nos defender contra alguma coisa efetivamente bárbara, que é nossa. Afinal, a palavra bárbara significa isso mesmo, o estrangeiro.
Essa visão folclórica do Brasil, como a folclorização das culturas e singularidades locais feitas na União Soviética, levou muitas vezes a barbáries não propriamente pela violência. Porque em termos de violência e de carnificina, nós não devemos nada ... Nós as encontramos no episódio Amilcar Lobo, que é um indivíduo de uma instituição psicanalítica, num fenômeno interno à psicanálise, mas que também é algo que podemos localizar numa Sérvia, numa Croácia ... A Europa e a América Latina não se devem nada nesse aspecto, quer dizer, não temos que mostrar o horror para ninguém, eles tem horror suficiente para isso. Agora, parece que, muitas vezes, há um certo horror nosso em entrar em contato com o bárbaro interno:
A nossa filiação, a psicanálise brasileira, só vai ter um destino se, além dessa filiação houver uma porosidade à questão local, houver uma disponibilidade para ouvir determinadas questões. Eu relataria sumariamente uma situação comum, que para mim é paradigmática: uma paciente baiana, que se acha horrível porque etnicamente não é loira, européia, etc e que vai para a França e é vista como maravilhosa, fantástica, exótica, etc, etc, etc. Bom, essa dificuldade, esse precisar do olhar estrangeiro para se ver e se encontrar no século XXI é uma coisa que a psicanálise brasileira tem que dar conta aqui. Isso tem que ser escutado. Não esse pai Lacan ou sei lá, Melanie Klein ... não é esse pai que tem que ser escutado para haver uma renovação clínica e um crescimento no nosso trabalho.
É esse pai interno, esse pai bárbaro que faz com que ... esse pai que traz marcas está falando, está berrando ... e muitas vezes nos deixa sem saber como, tecnicamente, clinicamente, teoricamente, lidar com os desafios específicos da nossa singularidade canibalística. Canibal, para nós, não é bem uma coisa psíquica e tal ... é bárbaro mesmo. Há uma barbaridade, um estranho interno.
Acredito que o caminho para uma especificidade da psicanálise brasileira passaria por uma porosidade a isso e por uma disponibilidade para lidar com o estrangeiro interno. Como isso seria feito não sei, mas acho que é um desafio. Sob pena da extinção efetiva do nosso trabalho. Ou nós damos conta do Ratinho e do Leão livre efetivamente, ou então é melhor realmente ir fazer grupo de discussão de psicanálise em Barcelona e ficar por lá.
Jorge Broide:
Eu acho que quando nós estamos falando de psicanálise, na questão do estrangeiro e do nacional, o que mais pode nos orientar é, também a nossa realidade nacional, não é? Como é que nós nos vemos trabalhando nessa situação social concreta que nós temos. Se a gente estiver olhando para essa situação concreta, que é específica e que tem a ver com Brasil e com América Latina, e estivermos atentos a isso, com certeza vamos encontrando uma especificidade que é nossa. Então, a pergunta é: para onde estamos olhando? Está certo que é importante olharmos para aquilo que vem de fora, do conhecimento universal, mas para onde é que estamos olhando agora? Qual é o nosso olhar? Nós olhamos somente para lá ou olhamos aqui para a esquina, para a nossa realidade concreta e objetiva. Se a gente começa a pensar
(interrupção para troca de fita. A discussão continuou e parte da fala se perde. Retomando: )
Jorge:
... de estar trabalhando numa Febem, de estar trabalhando em São Miguel Paulista, de estar trabalhando nesta realidade e tratando de le-la a partir daquilo que se conhece, e que muitas vezes é a psicanálise, já traz uma especificidade outra. Isso tem a ver com a questão da Europa, ou do Estado do Norte, como a gente diz, no sentido de que, eu penso que aqui no Brasil, por exemplo, e na América Latina como um todo, nós temos um conhecimento do trabalho no campo social, concreto e objetivo, que o norte não tem.
Então, se nós fôssemos pensar nos sistemas de trocas internacionais, podemos dizer que nós necessitamos da tecnologia do norte, mas o norte necessita da nossa tecnologia de trabalho social, na realidade concreta. Eles estão tendo muita dificuldade lá e nós sabemos que aqui a gente inventou muita coisa. Pode não estar sistematizado, pode não estar organizado, mas eu acho que essa é uma especificidade que a gente tem. E só para terminar, repetindo: na medida em que a gente olha, vamos ascender à realidade, ascender ao concreto, chegar até esse concreto e pensar sobre ele a partir do que a gente conhece. Eu acho que isso traz uma especificidade nossa; quando a gente começa a olhar através de uma praxis, está pensando essa praxis, está pensando o que é isso, com certeza surge a nossa especificidade.
Regina:
--- É em relação à sua colocação, de que nós temos, sem dúvida, desenvolvido aqui no Brasil práticas e reflexões para as questões sociais que são próprias a nós, que nós temos isso desenvolvido e que eles não têm, eu primeiro diria que eles têm sim, com certeza, e muitas. ... Muito trabalho desenvolvido, também no campo social. Bom, isso é do ponto de vista do que é lá e aqui, mas eu faria um outro comentário: por que temos de nos referir à nossa produção como alguma coisa que nós temos e os outros não tem? Eu acho que nós podemos trabalhar com o que temos e com o que fazemos e que eventualmente os outros também possam ter...
Jorge:
Mas eu não falei isso. Eu falei a partir do conhecimento universal. É evidente que tem muitos trabalhos sociais na Europa, no Canadá, nos Estados Unidos. É evidente!. Mas estou me referindo às questões do agudo no Brasil e na América Latina. É essa a diferença, a questão do agudo. Então, se nos países do norte muitas vezes se trata com a pobreza, muitas vezes nós temos miséria. Então é este o agudo. E esta situação social distinta que produz conhecimento distinto. Evidente, jamais perdendo o conhecimento universal. Isso seria uma loucura, isso é xenofobismo.
Suzana:
Mais no sentido de troca, de intercâmbio, de que a gente tem algo singular. É importante que um tenha e que o outro não tenha, para que haja intercâmbio.
Cristina:
Ou que tenha também ... Que os dois tenham ...
Suzana:
Porque a gente fica sempre sem ter o que ofertar ...
Cristina:
Querer discutir questões técnicas dos tratamentos, bom eles fazem essas discussões também, mas e daí? Eu acho que estas coisas todas precisam entrar.
Rodolfo:
Eu gostaria de retomar a questão da gente poder estabelecer uma direção mais específica de trabalho para esse grupo. Há algum tempo atrás, a proposta foi sua ... como é seu nome?
Regina.
Rodolfo:
Sim, mas a Regina estava encaminhando alguma coisa no sentido de trabalhos em pequenos grupos. Que talvez grupos de trabalho diferentes pudessem se constituir a partir das questões que a gente recebeu. Quer dizer, quais são as pessoas que se interessariam por trabalhar uma daquelas questões específicas? E quem sabe a partir daí constituir grupos de trabalho... Estas reuniões são mensais não é?
É ...
Tem sido ...
Cristina:
Agora, também podem ser colocadas na rede outras questões que as pessoas queiram trabalhar e que possam ser propostas de agrupamento. Não só estas.
Rodolfo:
Eu estava supondo que aquelas questões que você passou ... não são questões amadurecidas no grupo?
Cristina:
Não, são levantamentos e são interesses detectados à partir das reuniões.
Rodolfo:
Ah, mas eu escuto elas ressoarem em outras pessoas, não só na correspondência que você colocou, mas essa questão toda do ...
Cristina:
Outras questões podem ser colocadas na rede ...
Rodolfo:
Podem ser outras, eu acho que se a gente constituir grupos de trabalho de 4, 5, 6, 8 pessoas, sei lá. Eu acho que dá para as pessoas se conhecerem mais na intimidade de como trabalham, não tanto no acesso ao e-mail, mas no trabalho efetivo.
Cristina:
E tem o espaço para o trabalho individual também.
Nelson Carrozzo:
Eu sou Nelson Carrozzo. Usando um pouco da cara de pau, como você falava, eu queria dizer que gostei muito dessa idéia da troca através da rede. Ainda não tinha experimentado isso. Achei muito interessante e ainda não tive a cara de pau de mandar alguma, coisa através da rede para socializar um pouco o que tem sido as nossas preocupações e crises.Vou começar a fazer isso. Quero agradecer aos que mandaram seus trabalhos, isso dá uma idéia de uma possibilidade de trabalho que excede em muito o que a gente pode fazer quando se encontra pessoalmente.
Acho que um encontro por mês é muito pouco para o tanto de coisas que a gente viu que as pessoas têm como vontade, ou até como necessidade, de poder trabalhar. A minha crise, não falo da nossa crise porque eu pertenço a uma instituição, que é A Casa, que tem feito sempre uso da psicanálise para tratar de pacientes que estão, não no divã, mas em crise psicótica, em tratamentos mais críticos.
Então a gente tem utilizado a psicanálise, usuários da psicanálise, nesse sentido, para fazer trabalhos que vão desde o acompanhamento terapêutico, o teatro, o próprio hospital-dia, o uso da moradia como instância terapêutica, uma instância de uso do cotidiano como algo que possa tratar de certas coisas que não estão no discurso, mas estão na possibilidade do uso, da apropriação do cotidiano para uma pessoa em crise. São questões que a gente está tentando enfrentar e que eu, de alguma maneira, vou mandar para vocês. Me interessa muito ver como é que isso pode ressoar. Eu acho que numa reunião como essa fica difícil. Mas eu acho que essa troca, no uso da rede, pode ficar muito interessante.
Cristina:
Você terminou? ... Estou pensando que poderíamos marcar uma reunião, a próxima reunião dos Estados Gerais, e marcar uma outra reunião para quem quiser ir discutindo o trabalho da Miriam e da Fátima... A Ana Maria está gerando alguma coisa que depois ela pode passar para a gente. Acho que é o momento de estar diferenciando essas duas situações. Ir fundo nessa reflexão. Talvez não possamos fazer isso sistematicamente numa reunião geral de Estados Gerais. Essa reunião geral tem que se ocupar da pluralidade.
Rubens:
Eu queria só esclarecer um instantinho o que eu estava dizendo do Dr. Charcot. Resumindo o que eu comentei com vocês: eu tenho a preocupação e já tenho há anos essa preocupação, de que em qualquer linha de trabalho nosso, e eu posso estar sendo muito onipotente ou pretensioso, mas eu intimamente gostaria que, quaisquer trabalhos que nós façamos, não tivessem, de alguma forma, a prévia marca de uma inferioridade em relação aos franceses, aos ingleses, aos americanos ou a quem quer que seja. Essa é a minha noção.
Aquilo que eu falei do Dr. Charcot, ou seja: que não havia ninguém no Brasil ou em outra parte do mundo latino-americano, a priori, melhor que o Dr. Charcot. Tanto que D. Pedro II foi se consultar com ele, porque tinha um problema neurológico qualquer. Aliás, D. Pedro II foi para lá, e quando voltou tinha perdido o trono. A República foi proclamada quando ele estava se consultando com o Dr. Charcot... E que por sinal, dizem que não tinha tratamento possível para o caso dele. .. A doença era o trono ...
Eu não queria que a nossa doença fosse a inferioridade, necessariamente. Nesse sentido, de que a psicanálise, como nós sabemos, não necessita da tecnologia de um Prosac, de um antidepressivo. Nós não precisamos ficar (a minha pretensão, a minha onipotência), como nos congressos psiquiátricos em geral pelo mundo, que ficamos sempre assim: "vamos ver o que os coitadinhos vão falar". E é sempre, a priori, inferior. Em geral o primeiríssimo mundo não reconhece uma igualdade entre os latino-americanos e os trabalhos deles. Deles que eu falo são ingleses, alemães, suecos, norte-americanos. Porque afinal, qualquer trabalho nessas áreas médicas e paramédicas, fica sendo de alta-tecnologia. Mas a psicanálise, obviamente, não é um fruto da alta tecnologia. Então essa é a minha preocupação, a minha pretensão, de que nós não sejamos, a priori, produzindo coisas para eles falarem: "olha só, no Brasil, como eles estão indo bem" ... os eternos iniciantes.
Cristina:
Eu esqueci da data, não me preocupei com isso ainda, mas tem o pessoal da Associação Internacional que está organizando um colóquio na Maison d' Amerique Latine, na casa do Charcot, sobre "Quem é esse outro?" ... e o objeto de pensamento são os latino-americanos. Isso só para vocês saberem. Vai acontecer agora em novembro, dezembro...... quatro jornadas de trabalho convocadas para pensar os latino-americanos.
Sérgio:
Eu gostaria de retomar a questão do complexo de inferioridade. Vocês provavelmente não assistiram à palestra do Gambini ...
Rubens:
"Complexo" de inferioridade ou inferioridade mesmo?
Sérgio:
Pois é, mas são duas coisas diferentes: quando eu citei isso, estava muito preso à palestra do Gambini. Foi uma das coisas que ele mais enfatizou quando estava falando sobre a alma brasileira. E isto é apenas uma outra forma de aceitar a posição do colonizado: o estar a priori como o colonizado, como o inferiorizado. Eu concordo com você, estava só pontuando de onde eu tinha tirado essa colocação. Agora, eu acho que a situação é um pouco mais complicada, a meu ver, porque se a psicanálise não exige uma tecnologia a la Prosac, de ponta, de bioquímica e tudo o mais, o próprio estudo da psicanálise, a transmissão, exige.
E todos nós sabemos disso. Mas no caso do outro, esse reconhecimento do outro que estamos falando aqui, será que é uma coisa do colonizador que de fato autoriza você, ou será que é uma coisa estrutural nossa? Nós precisamos do reconhecimento do outro para sair do narcisismo. Eu acho que, se eu sigo as teorias mais amplas de constituição do sujeito, de Lacan, você está alienado no desejo do outro, você está alienado na mãe, você precisa da mãe e depois você se rompe, ou a sua subjetividade é um movimento posterior de rompimento. Então, a questão do outro é muito complicada. Na verdade, para complicar mais ainda, eles dizem que nós somos o outro. Mas na verdade, estruturalmente, eu acho que o outro são eles, o Outro têm sido eles. E nós nos alienamos neste Outro.
Miriam:
Quem é sintoma de quem...
Sérgio:
Pois é, como organizar esta questão?
Rubens:
O Lacan fala da empresa universal da produtividade, segundo o "deus" da tecnologia e da produtividade ... O que eu estou te perguntando é se é possível a gente escapar dela, já que a psicanálise independe dessa classe de produtividade... Mas, ela pode estar sendo fascinada (a psicanálise entre nós, brasileiros), com uma roupagem desse primeiro mundo, que não deveria vestir a psicanálise, mas que talvez, aos nossos olhos, vista. Ou seja, quando eu vejo o Dr. Fèdida, será que eu vejo o Dr. Fèdida ou o Dr. Charcot? ... Será que eu vejo a Dra. Danièle Brun ou vejo a Maria Antonieta de França?
Sérgio:
Sim, qual será a repercussão imaginária ... Eu não teria uma resposta para isso, eu acho que estamos colocando questões para pensar. Eu acho que há uma produção que não é nossa; não uma produção tecnológica mas uma produção psicanalítica, na qual nós nos alienamos e nos constituímos, de alguma maneira. Eu acho que nós não temos ainda uma produção à altura e isto é duro de agüentar. Eu acho que no Brasil nós não temos uma produção psicanalítica à altura de grandes autores e de grandes pensadores da psicanálise. É uma coisa a ser pensada. Em termos de produção, eu acho que há uma produção externa, que não é tecnológica mas teórica...
Carmen:
Eu estava lembrando de um artigo que escrevi para um jornal, simplizinho, chamado "A potência possível", em função do Viagra e desses ideais. Eu colocaria esta questão dos ideais: por um lado, o que vocês estão falando de idealização com relação à cultura deste outro e com as idéias de performance, de tecnologia. Eu acho que seria uma questão de re-situar estes ideais, num lugar marcado pela falta e pelo que é possível. Qual é a potência possível? Eu acho que seria por aí a minha colocação: não idealizada, nem caindo na impotência ( por uma questão de performance), nessa relação com o outro. Eu acho que é por aí.
Oscar Miguelez:
Eu queria dizer uma coisinha só. Me chama muita atenção que essas reuniões estejam acontecendo no âmbito da Pulsional, que é uma intersecção de instituições psicanalíticas diversas. A minha impressão é que a convocação de René Major para os Estados Gerais tem muito a ver com algo que é internacional, que é o fracasso da instituição psicanalítica na produção dos membros que a compõem. Neste sentido, a convocação de René Major é internacional, já que na França as instituições psicanalíticas não têm dado conta de que seus membros produzam criativamente.
Cristina:
Segundo a Roudinesco, 50% do número total de analistas estão fora das instituições.
Oscar:
Neste sentido me dá a impressão que o nosso leito de trabalho é se seremos capazes de produzir enquanto grupo, fora das instituições dais quais fazemos parte e dentro das quais a produção não é grande coisa. Não é grande coisa aqui, não é grande coisa na França e nem na Argentina. As instituições psicanalíticas, a produção que é feita dentro das instituições psicanalíticas é pobre. Nós temos grandes mestres que são seguidos por bandos de gente, que repetem as coisas como papagaios. E neste sentido, tenho a impressão de que este grupo tem uma transcendência. Há que ver se nós, como grupo, não vamos institucionalizar e repetir os modelos de esterilidade.
Ana Maria:
Em relação a isso eu não concordo com você. Eu não faria disso uma afirmação genérica. A gente precisa considerar experiências de instituições que são diferentes e que têm produções interessantes. Se a gente pode pensar em fracasso institucional é interessante pensar que, de alguma maneira, uma instituição sempre traz um fracasso, naquilo que poderia ser a intenção de discurso único e de uma ideologia única ... isso sim. Se é nesse sentido institucional que você está colocando, eu concordo. Mas eu não faria uma análise genérica disso, mesmo porque eu conheço algumas experiências institucionais interessantes.
Cristina:
Vamos operacionalizar?
Rodolfo:
Pode haver mais uma fala antes? Eu fiquei muito bem impressionado com o calor que a discussão tomou na questão do brasileiro e do estrangeiro. Porque eu acho que tem algo aí para a gente se posicionar. Porém, eu não gostaria que isso virasse uma querela estéril. É importante a gente perceber que existe uma distribuição diferente do poder no mundo e nem tudo disso é fantasmagoria nossa. Eu não tenho a ilusão de que uma convocatória de nível mundial poderia partir de alguém da América Latina .
Eu acho que, de fato, partiria dos países do norte, no caso específico da psicanálise (tenho razões para supor que isso) partiria mesmo da França. E isso é uma constatação objetiva. Nem tudo é fantasmagoria. Lembrando a fala da Ana a respeito da experiência que ela teve em Barcelona.
O que a gente viu lá? Viu uma tentativa prévia a Barcelona, que foi a Lacano-Americano, onde, apesar de ser aberto a toda América Latina, serviu para que analistas argentinos de instituicões que não se viam pudessem ter uma interlocução. E isso possibilitou uma nova organização em relação ao que acontecia com a psicanálise argentina. Isso fez com que, posteriormente em Barcelona, os argentinos tivessem um papel de iniciativa no trabalho. Ou seja, é só a partir de uma resolução da crise como a que existia na Argentina, que os argentinos puderam fazer um giro e mudar de lugar.
Se a gente ficar apenas indo atrás de uma convocatória que veio do outro lado do Atlântico, ou fazendo o contrário disso, (que para mim daria no mesmo) e ficar lembrando: "Olha! Foi necessário um francês, um francês teve de fazer isso, etc", não vai nos levar a nada. Só se a gente tentar, não a partir da proposta, mais daquilo para o que essa proposta foi uma tentativa de resposta ... ou seja, é só a partir de uma localização do que é a crise que poderemos falar dela e fazer alguma coisa. Então, eu retomo aquela minha pergunta anterior: o que é que nós estamos vendo como crise? O que é que, do lugar singular de cada um, cada um está vendo como a crise, que nos mobilizou a estar aqui num final de semana?
Cristina:
Agora, vamos marcar as reuniões para a discussão dos trabalhos da Miriam, da Fátima e marcar a próxima reunião geral.
A reunião geral seguinte foi marcada para o dia 12 de dezembro de 1998.
A reunião para discussão de temas específicos foi marcada para o dia 21 de novembro de 1998.
(Transcrição das fitas feita por Maria de Fátima Siqueira)
clique aqui para voltar à página dos Estados Gerais da Psicanálise de SP