Manifesto antropofágico: 70 anos depois

Paulo Sergio Rouanet

* Publicado originalmente no caderno "Idéias/Livros" do Jornal do Brasil de 22.08.98.

Contra a antropofagia caeté, pela antropofagia tubinambá. Os caetés nunca saíram do lugar. Os tupinambás viajaram muito. A antropofagia dos caetés é provinciana. A antropofagia dos tupinambás é cosmopolita. Os caetés se gabam de terem comido um bispo português. Coisa de nada. Foi uma pequena fome, um canibalismo chauvinista, incapaz de alterar os rumos da história mundial. Os tupinambás têm uma grande fome, que não recua diante da própria cultura tubinambá. Antropofagia autofágica, heterofágica, panfágica: antropofagia da grande taba do mundo. Os caetés são filhos de sua tribo.

Comem e absorvem, comem e expelem, mas só absorvem o que for útil para a tribo, só expelem o que não for bom para a tribo. Os tubinambás, não. Sabem ser nativos, mas também sabem ser exilados, e enquanto exilados vêem tudo de fora, julgam tudo de fora, e decidem absorver ou expelir segundo critérios diferentes dos critérios tribais. Os caetés querem ter raízes. Os tupinambás querem ter asas. Agora o esquisito é que os tupinambás se pelam pelas raízes dos caetés. Descem do céu que nem passarinhos e comem todas as raízes dos caetés. Não sobra nem um inhame para contar a história.

Mas não querem ser inhame não. Nem mandioca. Querem mesmo é ser periquito. Ter asas. Ou guelras. Peixe também serve. Gostam demais de sair do Xingu, desovar no Sena e hibernar no Volga. Nomadismo. Uma sala de jantar domingueira, um inglês magro lendo um tablóide e Maricota tecendo uma tapeçaria prá quando Ulisses voltar. Universalização. Sincretismo. O que interessa na Pomba Gira é que ela é também Maria Padilha, amante de um rei de Castela, D. Pedro o Cruel. Sol, mãe dos viventes: de todos os viventes, e não só de alguns.

A Cobra Grande ficou grande demais para caber num rio só. Perguntei a um homem o que era a identidade brasileira. Ele me respondeu que era a síntese de Deus e da família. Comi-o. Fiz a mesma pergunta a outro homem e ele me disse que era o resultado do casamento de um pajé com uma mãe de santo. Comi-o. Um senhor grisalho, citando Derrida, disse que era a gramatologia: desconstruí-lo a dentadas. Só ficou o esqueleto, todo branquinho, uma beleza. Outro me disse que era uma broa de milho. Tirei-lhe um naco do pescoço, mas não pude comer ele não, porque a carne era muito dura. Comi a broa. Depois comi um bolinho chamado madeleine e também gostei. Saudades do bacharelismo. Bacharel citava o Corpus Juris Civilis em latim.

Os rábulas de hoje não sabem mais latim. Bem feito para eles. Foi porque o Bacharel de Cananéia citava Virgilio em latim que conseguiu dormir com todas as índias da vizinhança. Índia adora ser chamada de ninfa ou de pastora. Quando homem branco chama índia de Amarilis, e diz que ensinou a floresta a repetir o nome dela – "formosam resonare doces Amaryllida silvas" – ela gosta que se enrosca e dá uns gritinhos de gata do mato do fundo de sua rede. Os caetés fizeram muito mal em expelir, sem aproveitar nada, os manuais de lógica que os jesuítas lhes deram. Com isso fica muito difícil conversar com seus descendentes, os brasileiros de hoje. Eles não sabem defender racionalmente as virtudes do irracionalismo. Eles querem ser bárbaros, mas não é bárbaro quem quer. Só é bárbaro quem consegue convencer disso os outros, usando aquele tipo de silogismo que os escolásticos chamavam bárbara.

Entendeu? Sem bárbara não tem bárbaro, e quem não gostar do trocadilho tacape nele. Assim é a lógica tupinambá, que ficou igualzinha à lógica universal, depois de muito jesuíta devorado. A lógica dos caetés é só deles. Eles passam a limpo a lógica dos brancos antes que ela possa valer em Pindorama. A ciência, a moral, a estética, todas essas coisas têm que ser filtradas à luz da realidade de Pindorama. A mentalidade caeté continua viva em seus tataranetos, conforme percebeu o caeté Graciliano Ramos. Todo mundo no Brasil virou caeté. Caetés os românticos, que para se livrarem dos natchez inventaram os tamoios. Caetés os modernistas de direita, que puseram a anta no lugar da raposa. Caetés os modernistas de esquerda, que puseram o pau-brasil no lugar da faia. Caetés os sociólogos do Brasil patriarcal, que mandaram as mucamas costurar vestidos no próprio engenho, em vez de importarem roupas do Reino.

Caetés os apologistas do Estado-Novo, para os quais a democracia era um transplante europeu. Caetés os intelectuais do ISEB, que inventaram uma antropofagia chamada "redução sociológica", para a qual as idéias estrangeiras só podiam valer no Brasil depois de transformadas pelos sucos gástricos nacionais. Caetés os militares, que recusavam o marxismo por ser uma doutrina exótica. Em suma, os caetés tomaram conta do país. Os mais ortodoxos continuam até hoje roendo o fêmur do bispo Sardinha. Mas depois de quatro séculos e meio, quase todo o tutano acabou. Por isso a maioria prefere iguarias mais finas: gordas idéias européias, nédias como frades, roliços filmes americanos, nutritivos como um Big Mac. Na hora do brinde, os convivas repetem o grito de guerra dos caetés: morte aos modelos estrangeiros.

A antropofagia que eles praticam virou gastronomia oficial. Só que ela ficou muito esquisita. Ou os alimentos saem tais como entraram, sem nenhuma transformação. A passagem pelo tubo digestivo não altera nada, e o que era americano continua americano. Ou há uma pequena confusão na hora de sair. Em vez de guardar as proteínas da cultura estrangeira, devolvendo o resto, os caetés de hoje fazem o contrário. Eles rejeitam o que a cultura gringa tem de suculento e só absorvem o que ela tem de indigesto. Os caetés primitivos, ao menos, comeram a carne e a gordura do bispo, e não suas partes coriáceas, como os calos do pé. Os antropófagos de hoje só gostam dos calos. É preciso acabar com esses canibais incompetentes. Tá na hora de soar o boré para acordar os guerreiros tupinambás. Queremos oferecer a nossos curumins uma comida abundante e cheia de vitaminas. Só nos interessa o que não é nosso.

Não comemos para formar nossa identidade, mas para desfazê-la e refazê-la. Identidade nômade. Inacabada. Nossa antropofagia é artigo do bom e do melhor. Devoramos Hegel, e por isso nossa dialética é produto fino, com certificado de qualidade assinado pelos melhores peritos alemães: comer, para nós, significa aufheben, isto é, negar, preservar e transcender, o que equivale, em língua de antropófago, a mastigar o alimento, recebê-lo no estômago e transformá-lo. Nossa antropofagia consiste em negar todas as particularidades, em preservá-las e em integrá-las, dialeticamente, num universalismo concreto que conserva e transcende as diferenças. Caetés precisam de raízes. Tupinambás precisam de asas. Ou de guelras. De preferência as duas coisas, como aqueles peixes voadores que Hans Staden viu quando embarcava para o Brasil, onde quase virou comida de índio. Seres voadores e nadadores, os tupinambás visitaram várias vezes a Europa. Com isso se desprenderam de sua cultura de origem.

E não entraram na cultura nova. Uma vez três deles tiveram um encontro com um morubixaba francês, Carlos IX. Eram expatriados e por isso mais lúcidos. Vendo a França de fora, viram o que os franceses não podiam ver. Prepararam com isso um novo paradigma. Epistemologia do saber excêntrico: visão mais clara, porque vinda de um olhar estrangeiro. Filosofia da moral excêntrica: descentramento, descontextualização, capacidade de distanciar-se de qualquer cultura. Novo calendário. Ano zero da nova era: o encontro com Michel de Montaigne. Através de Montaigne, as opiniões dos tupinambás chegaram à Revolução francesa. Graças aos tupinambás, Montaigne fixou a própria forma genérica do descentramento, tanto em questões cognitivas como morais. Usbek, Micromégas, E.T. Só pode conhecer quem vem de fora, só pode julgar quem vem de fora. De Sírius. Do Brasil. Tupinambá, modelo de uma humanidade nova.

Homo excentricus. Em casa no mundo todo, exilado em toda parte. Seu terreno de caça é a cosmópole, a cibérpole, a urbs da democracia universal, da sociedade civil universal, em que todas as identidades serão múltiplas, em que todas as cidadanias se interpenetrarão. Nesse mundo inventado à imagem do tupinambá, não há nem matriarcado nem patriarcado. Nem totem nem tabu. O tabu é a tirania do pai morto, o festim totêmico é a tirania da comunidade. Em vez disso, a organização democrática do clã dos irmãos. Desterritorializado, esse clã vai ocupar em breve o mundo inteiro. Porque fome de tupinambá é grande demais. É uma fome transcultural, transtribal. Catiti catiti, imara notiá, notiá imara, ipeju. Caeté tem raízes. O sertão virou mar. Mare nostrum. Tupinambá tem guelras. Nadamos.


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