A piada e sua relação com o inconsciente ou
a psicanálise é muito séria

Abrão Slavutzky

Porque aprendi luchando
que es mi deber terrestre
propagar la alegria

Odes elementares- Pablo Neruda

O escritor Anton Tchekov ensinou que o trágico e o cômico são apenas duas janelas diferentes, que dão para a mesma paisagem atormentada. O homem para resolver seus enigmas foi inventando mitos e deuses, filosofias e artes, para expressar suas idéias, sua perplexidade frente a vida. Olhar para poder penetrar os mistérios humanos e naturais. Foram os gregos que na antigüidade criaram o teatro e a filosofia, a política e a literatura para expressar uma nova fase de descobertas, sobre quem realmente é este estranho ser humano, que sabe chorar e rir, que vai do sofrimento a felicidade, da paz a guerra, que encerra tantas contradições. Nos famosos festivais de teatro na Helade, durante um dia inteiro, toda a população da cidade assistia tragédias e comédias, as diferentes janelas para a mesma paisagem humana, que escreveu Tchekov. Freud que tanto contribuiu para compreender a realidade psíquica via o drama humano através de qual janela ?

Octave Mannoni publicou uma carta de Dora( uma adolescente tratada por Freud) à senhora K, a mulher de pele branca que tanto excitava o seu pai. Na carta Dora escreve que havia nele uma estranha contradição: "Estou sempre dizendo para que os senhores me façam proposições, mas é para rechaçar e esbofetear. Parecia importante, mas Freud não me disse nada. Se ao menos tivesse rido. É um homem elegante fisicamente. Cheira a charuto e a água de colônia. Se houvesse se atrevido a lançar uma boa gargalhada, dizendo: Você queria que eu fizesse proposições para dar-se ao gosto de esbofetear-me? Então haveria rido também, haveríamos rido( não se ri nunca) e isso quem sabe, nos teria aproximado a compreensão da contradição". Mais adiante Mannoni que inventou esta carta, insiste em enfatizar que Dora era jovem e Freud era sério, mortalmente sério. Sigmund Freud, ao que tudo indica era muito sério no seu consultório. Nos seus famosos casos clínicos, ou em seus diversos artigos de técnica, não há referência ao humor, a piada, ou alegria na relação entre psicanalista e paciente. A tragédia de Édipo Rei, bem como Hamlet são importantes nas suas elaborações teóricas, mas não há referências a obra de Aristófanes e também Moliere.

O Que é o humor?

A palavra é latina humor, humoris, é líquido, fluido, humores do corpo humano como o sangue, a linfa, a bílis, enfim as seivas da vida. Portanto sua origem é médica, revelada pelos gregos cujos traços principais foram dados por Hipócrates, que estabeleceu relações entre os temperamentos e os humores, líquidos corporais. Segundo esta fisiologia, que vai até o fim da Idade Média , os humores do corpo humano influiriam no caráter dos indivíduos, no seu temperamento. Foi só no século XVII, que a palavra começou a ter o significado atual. Em 1906 Louis Cazamian, um jovem professor de literatura inglesa escreveu um artigo cujo título era: Porque não podemos definir o humor. Título paradoxal e bem humorado, pois em seguida tenta definir o humor desde seu mecanismo estético. Em 1950 o mesmo Cazamian escreveu um livro sobre o desenvolvimento do humor inglês, mas renuncia a definir o humor. A renúncia de definição revela a dificuldade, mas Luigi Pirandello num livro sobre o humor escreve "o humorismo consiste no sentimento do contrário, provocado pela especial atividade de reflexão que não se esconde, como geralmente na arte, uma forma de sentimento, mas o seu contrário, mesmo seguindo passo a passo o sentimento como a sombra segue o corpo. Para o humorista, segue Pirandello, as causas na vida, não são nunca tão lógicas, tão ordenadas, como nas nossas obras de arte comuns. A ordem? A coerência? Mas se nós temos no interior quatro, cinco almas em luta entre si: a alma instintiva, a alma moral, a alma afetiva, a alma social? E conforme domine esta ou aquela compõe-se a nossa consciência, e nós consideramos válida e sincera aquela interpretação fictícia de nós mesmos, do nosso ser interior que desconhecemos, porque não se manifesta nunca inteiro, mas ora de um modo ora de outro como queiram os casos da vida. O humorista decompõe o caráter em seus elementos; mostra as suas incongruências". O sentimento do contrário tão bem descrito por Pirandello é uma das essências do humor, que permite relativizar tudo e quebra toda seriedade teórica e prática seja do que for.

O humor não reconhece heróis; diverte-se em decompor, mesmo quando não seja um divertimento agradável. Parte do sentido em busca do nonsense, ao contrário da interpretação que parte do nonsense, para buscar um sentido. É um ato de desdobramento no ato mesmo da concepção; por isso, todo sentimento, todo impulso, todo pensamento que surge no humorista, se desdobra em seguida no seu contrário: todo sim em um não que assume o valor de sim. O humor, como diz Jankélévitch, " caminha sem alvo sobre a terra, não tem tese, não advoga, vai sempre mais além, está sempre a caminho; mesmo no fundo da infelicidade extrema e da vergonha, o gracioso arabesco, o bizarro, faz emergir o sorriso do deslumbramento. A ironia é a arma dos fortes, enquanto o humor é a única arma dos fracos, pois a humildade humorística permite ultrapassar a humilhação. O humor é a arma dos desarmados e não triunfa pois o humor goza a si mesmo. O humorista traz à tona a dúvida e a precariedade, sempre busca a liberdade de brincar com o poder de qualquer ordem. O humor não leva a sério nada, nem a si mesmo".

O humor interno, independe das condições da vida: até na infelicidade o gracioso pode emergir, e por isso Freud relata, no final do livro das piadas, a história do delinqüente que levado ao cadafalso numa segunda feira, manifesta: "Ah!, começa bem a semana! Este condenado a morte mantém o seu humor e assim nos economiza desprazer, pois frente a morte ele nos faz rir-um riso contido, até um pouco tristonho, mas também de alívio. Freud volta a esta piada no início do texto sobre o humor, quando define este como sendo rebelde, e diz que o essencial do humor é mostrar o seguinte: Vejam este mundo que aparece tão perigoso, é um jogo de crianças, bom nada mais que para brincar sobre ele".

Caracterizado o humor, ficam as dúvidas sobre as relações deste com a comédia, o cômico, o riso, a piada - enfim quais são as semelhanças e as diferenças. Peter Gay em O Cultivo do Ódio decide sabiamente desprezar estas sutilezas para concentrar-se no componente agressivo em seus variados disfarces. Realmente estabelecer diferenças precisas não é fácil e as vezes pode até ser inútil. Pirandello e Freud fazem força para provar que existem estas diferenças entre o cômico e o humor. Entretanto em um recente livro sobre a história cultural do humor, da antigüidade aos dias de hoje, os vários autores preferem definir o humor de forma ampla, isto é como qualquer mensagem que busca o sorriso ou o riso. Justificam esta definição como a única forma de estender as investigações da antigüidade até os dias de hoje.

O cômico como fenômeno antropológico responde ao instinto do jogo, ao gosto do homem pela brincadeira e pelo riso, a sua faculdade de perceber aspectos insólitos e ridículos da realidade física e social. O cômico libera, já o humor é grandioso e edificante. O cômico expõe uma contradição engraçada e o humor cria uma reflexão, daí o seu riso filosófico. Para Freud o que tem de grandioso o humor provém do narcisismo e da invulnerabilidade vitoriosa do eu. Já a comédia vem do grego Komedia, onde komos era o desfile e a canção ritual em homenagem a Dionísio. Os três critérios pelos quais se opõe a tragédia, sua irmã maior, são: os personagens são de condição inferior, o desenlace é feliz, a finalidade consiste em provocar o riso do espectador.

Como escreveu Aristóteles " a comédia é uma imitação de homens inferiores". Não se nutre do fundo histórico ou mitológico, suas conclusões em geral são otimistas, o riso do público é de cumplicidade, protege-o da angústia trágica, dando-lhe um sentimento de superioridade ante os mecanismos de exagero. A tragédia não é obrigada a terminar em morte, mas traz sempre muito sofrimento, atua em nossas angústias profundas, enquanto a comédia sensibiliza nossos mecanismos de defesa contra estas angústias. A tragédia é um gênero literário e o trágico um princípio antropológico e filosófico. Finalmente o drama é uma síntese da comédia e da tragédia. Talvez, como escrevi antes o melhor teria sido seguir o conselho de Peter Gay, pois as definições ajudam, mas criam dúvidas e as vezes são contraditórias. De qualquer forma, para pensar a visão trágica da psicanálise seria preciso fazer um estudo histórico de todas estas questões. Como esta tarefa aqui seria impossível, pode ser útil uma breve história do humor, para aí sim estudar as difíceis relações entre o humor e a psicanálise.

O Humor tem uma história

No final do Banquete, Aristodemo recorda que Agatão, Aristófanes e Sócrates seguiam conversando, quando já cantavam os galos e escutou Sócrates defender a idéia, que um mesmo homem deve saber fazer uma comédia e uma tragédia, e que o poeta trágico é também um poeta cômico. A tragédia grega ficou tão famosa que em geral a comédia fica esquecida. Werner Jaeger destaca com sobra de argumentos, como a comédia era valorizada pelos gregos do século de Péricles. A comédia de Aristófanes tem uma liberdade de espírito que lhe permite encarar como efêmeros os sucessos da vida cotidiana. As loucuras e fraquezas humanas precisam ficar em liberdade plena, para que não falte a beleza eterna do riso, condição indispensável para viver bem. Para Jaeger a cultura ática não pode manifestar a amplidão e profundeza de sua humanidade com maior clareza do que por meio da diferenciação e integração do trágico e do cômico, operada no drama ático. Portanto bem antes de Tchekov, a Grécia que inventou o teatro, ressaltava a importância da comédia ao lado da tragédia. Luigi Pirandello questiona a existência do humor em Aristófanes, bem como Theodor Lipps, mas quando Sócrates assiste As Nuvens, comédia onde é criticado, e ri do escarnio que dele fez o poeta, demonstra ter o sentido do humor.

No Velho e no Novo Testamento o humor está quase ausente, um dos raros risos é o de Sara, esposa de Abraham, daí o nome de seu filho Itzhaac, que deriva do verbo tzochek que é rir. O escritor Moacyr Scliar defende a idéia que a história de Jonas é um exemplo de humor. Certamente se pudesse ser perguntado ao profeta que foi engolido pela baleia, como castigo, não teria porque sentir o humor divino, a não ser o mal humor. Mas é interessante destacar que o humor tem uma dimensão subjetiva tão importante, que dificulta uma definição precisa. Grandes lideres como Moisés e Jesus Cristo são sérios quase sempre. O riso já ocorre nos grandes festivais religiosos em homenagem a Dionísio que depois darão origem ao teatro. Demócrito o filosofo alegre, ao contrário do triste Heraclito, dizia que uma vida sem os festivais religiosos era como uma estrada sem pousadas.

No livro O Nome da Rosa de Umberto Ecco, é possível imaginar como a religião na Idade Média, associava o riso ao diabo. Ao final do livro o monge Jorge explica que "a comédia nasce nas komai, ou seja, nos vilarejos dos camponeses, como celebração jocosa após um banquete ou uma festa. Explica que o riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez de nossa carne....o riso libera o aldeão do medo do diabo. E o que seremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos?`....E este livro, a segunda parte da Poética de Aristóteles, sobre a comédia, a sátira e o mimo é um remédio milagroso, pois produzem a purificação das paixões através da representação do defeito, do vício, da fraqueza, induzindo os falsos sábios a tentarem redimir(com diabólica inversão) o elevado, através da aceitação do baixo". Impressionante as críticas ao riso por parte da religião na Idade Média, que Umberto Eco tão bem reproduziu no seu romance.

Com o Renascimento vai nascer a Commedia dell’ Arte na Itália e escritores do teatro como Ben Jhonson na Inglaterra que em 1599- Cada homem fora de seu humor- propõe uma nova teoria do humor: baseado na concepção médica dos quatro humores que regem a conduta humana, aponta a criação de personagens-tipo, determinados psicologicamente e que atuam em função de um deles, mantendo um comportamento idêntico em todas as situações. Este gênero se aproxima a comédia de caracteres. Mas foi outro inglês, William Shakespeare, que ao inventar um personagem como Sir João Falstaff em As Alegres Comadres de Windsor ou O Sonho de uma noite de Verão, consolidam a comédia e o famoso humor inglês. Hamlet, sua grande tragédia, possui passagens bem humoradas como o dialogo entre Hamlet e quem haviam sido seus amigos: Rosencrantz e Guildenstern. Em seguida vira Cervantes na Espanha com o Dom Quixote, a primeira criação humorística moderna. As histórias do humor e da comédia que sempre estão próximas unem-se em Molière, com um humor lúcido, com o qual ataca a tolice e a maldade no interesse da humanidade sofredora e iludida. Suas comédias expõe o riso e a melancolia, como no O Doente Imaginário, ironia voltada contra si próprio, ao satirizar os médicos que lhe minaram a saúde. O que impressiona em Molière é a sua atitude bem humorada perante as desgraças da vida, sua capacidade de fazer comédia com as dificuldades do viver.

A palavra humor no seu sentido moderno aparece em 1682 na Inglaterra como uma disposição mental ou temperamento. Lord Shaftesbury’s em 1709 no seu famoso Sensus communis: na essay on the freedom of wit and humour dá o sentido atual da palavra humor. Voltaire defende que a palavra tem origem no francês: humeur mas Victor Hugo em 1862 reconhecera a palavra como de origem inglesa. Jean Paul, o poeta do movimento romântico alemão, escreve em 1804 Propedêutica da Estética, onde define o humor como um riso filosófico em que o homem compara a finitude do mundo com o infinito da idéia. Neste livro a palavra witz, que vem de wissen-conhecimento, vai adquirir a nova dimensão de graça, piada. O humor seria a forma do cômico própria do espírito romântico. No Oxford Dictionary o humor é definido como a faculdade de perceber o que é ridículo ou divertido, ou expressar através da conversação, da escrita, ou outra forma, a imaginação ou abordagem jocosa de um assunto. O humor judaico terá um grande desenvolvimento a partir do século XIX, nas escolas rabínicas das schtetls o que permitiu a Freud ir colecionando histórias alegres até escrever o seu livro sobre a piada. Finalmente neste século das grandes guerras mundiais, o gênio de Charles Chaplin, que entre tantos filmes fez O Grande Ditador em 1940, uma genial sátira política contra o Nazismo que aterrorizava o mundo naquele momento. Chaplin, o maior humorista de todos os tempos através da comédia trata temas trágicos e difíceis, enfrenta a difícil realidade cotidiana com graça.

O humor como tudo tem uma história, mas não se sabe quando começou, sempre fica mais fácil avaliar o humor de um povo a partir de sua literatura. O humor oral nem sempre é acessível como pode ser o das tribos indias ou africanas , que deve existir mas fica difícil avaliar. A literatura e o teatro são as duas artes que o humor foi sendo desenvolvido, neste sentido o aparecimento da imprensa e o Renascimento vão contribuir para um crescimento do humor. Ben Jhonson , Shakespeare , Moliere e a Commedia Dell’ Arte, só para citar algumas referências, mudaram a historia do humor. O homem aprende a viver com uma nova liberdade trazida pelo riso, com esta forma filosófica que dá o humor de rir de si mesmo e dos seus semelhantes, dos problemas, enfim o humor e a alegria cresceu nos últimos séculos a ponto de ir ocupando um espaço cada vez mais destacado em todas as artes, na propaganda e na filosofia. Freud tinha um interesse especial pelo tema, manifestado pelo seu livro sobre a piada e a sua volta ao tema no artigo do humor, mas teve dificuldade de entender a sua verdadeira importância para o ser humano. No texto de 1927 escreveu: " O campo em que nos sentimos seguros é o da patologia da vida anímica; aí vemos nossas observações, aí adquirimos nossas convicções". Um dos maiores problemas da psicanálise talvez seja o de dar uma grande ênfase para a psicopatologia, como se os problemas e conflitos psíquicos sempre fossem vistos com uma lente de aumento. Já o humor e a alegria é olhada com uma lente de diminuição. O humor goza das nossas dificuldades e ao fazer isso diminui os nosso problemas, e mesmo que sejam alívios temporários, fazem muito bem para a vida. Porque viver seus problemas com bom humor, é sempre viver melhor pois é transformar o narcisismo e diminuir o sofrimento. No final do seu texto Freud reconhece que "nem todos os homens são capazes de uma atitude humorística: é um dom precioso e raro, muitos até são incapazes de gozar do prazer humorístico que se lhes oferece". Este é ponto chave talvez: como adquirir este dom raro de desfrutar a vida com humor? Um outro trabalho talvez pudesse ser sobre a conquista do humor.

A Resistência da Psicanálise

E. Gombrich autor da História da Arte, escreveu " que Freud não foi adiante no seu livro, porque qualquer tentativa de tradução de uma piada está fadada ao fracasso. A piada interdita qualquer distinção entre forma e conteúdo. E é precisamente esta separação que Freud pesquisava em seu trabalho clínico. Ele considerava a si próprio como um tradutor capaz de interpretar, por conta de seus pacientes, o conteúdo secreto de seus sonhos e de seus sintomas. Interpreta-los significaria simplesmente lhes dar uma forma verbal". Gombrich não é psicanalista, mas crítica a tendência da psicanálise em estar sempre buscando explicações.

Após anos e anos interpretando e sendo interpretado, o psicanalista vai desenvolvendo uma máquina de pensar, de interpretar, criando assim muitas vezes a ilusão de estar explicando o cotidiano humano, a arte, a vida e a morte. A linha do raciocínio psicanalítico oscila entre o trágico e o dramático. A tragédia é monótona, pois a ação cumpre o seu destino, estava escrito desde o início. Já no drama pode haver mudança, não é preciso seguir o destino tragicamente. O drama no teatro passa a ser uma síntese entre a tragédia e a comédia. Mas no drama psicanalítico há pouco espaço para a comédia e o humor. O psicanalista busca o conflito como um caçador, um caçador de conflitos, que existem, não é que sejam inventados, o problema é o enfoque, a escuta dramática. Ricardo Piglia, escritor argentino, em uma conferência disse "que ao lado da resistência a psicanálise, esta visão gera muita atração, pois é um dos aspectos mais atraentes da cultura contemporânea, e isso porque todos nós queremos ter uma vida intensa. Gostaríamos de admitir que em algum lugar de nossas vidas banais, experimentamos grandes dramas, que quisemos matar nossos pais e que portanto vivemos num universo de grande intensidade, vencendo assim o tédio, a monotonia em que estamos mergulhados. O psicanalista nos convoca como sujeitos trágicos, diz que há um lugar em que todos somos sujeitos extraordinários, lutando contra tensões e dramas profundíssimos, e isso é muito atraente".

No tratamento psicanalítico o personagem central é o paciente que fala, o analista como o público escuta. Um teatro diferente onde o artista paga, saindo feliz ou infeliz, alegre ou triste, mas com o sentimento que foi escutado. A janela pela qual a psicanálise vê o teatro do mundo é geralmente a trágica, um mundo difícil, onde o sofrimento e a tristeza são valorizadas, um caminho lento que promete muito. Agora a vida como um drama, é exclusividade da vida psicanalítica, ou esta reflete o cotidiano difícil do ser humano? Certamente a janela da tragédia predomina sobre a da comédia, partindo da imagem de Tchekov sobre a realidade do mundo. Ao pensar as instituições psicanalíticas, os livros e revistas, as relações entre psicanalistas, é possível associar sempre a uma seriedade que impressiona. Seriedade na defesa de teorias que revelam a verdade, sejam de que linha ou escola forem: todo psicanalista aprende a argumentar para justificar teoricamente a sua clínica. Pontalis escreve um artigo cujo título é Fora do templo, onde revela que "deveríamos nos inquietar ao ver, como freqüentemente acontece hoje em dia, analistas que parecem nunca ter tido experiência de outra coisa a não ser a análise, sempre lendo Freud ou Lacan, e dispensando a experiência do estrangeiro". A experiência do estrangeiro também seria ler as críticas a psicanálise de forma diferente, isto é sem ficar na defesa e criticando rapidamente os que ousam desprezar as verdades do templo, usando para isso o conceito de resistência. Situação perigosa que revela a resistência a pensar as críticas a Psicanálise. Muitas vezes nas festas institucionais, nos intervalos de jornadas e congressos, os psicanalistas revelam uma capacidade de alegria e humor que aparece, rompendo as barreiras da formalidade.

Humoristas como Quino, Caloi, Millor Fernandes, L.F.Veríssimo, Woody Allen e tantos outros que gozam Freud e os psicanalistas, poderiam ser um bom ponto de partida para uma reflexão diferente. Será que há possibilidades de abrir um espaço para repensar a clínica psicanalítica, e alterar este clima de seriedade tão estruturado? O crítico de literatura Harold Bloom no Cânone Ocidental, escreve sobre Dom Quixote, valorizando seu romantismo, sua loucura literária. Recorda a parábola de Kafka A verdade dobre Sancho Pança, na qual é este que inventa o Dom Quixote como o seu demônio imaginário. Bloom defende o herói que luta contra os moinhos e não é bobo ou louco e sim alguém que joga como cavaleiro andante. O contraste do cavaleiro andante é o Alonso Quijano que ao fim morre religiosa e sadiamente. Aí Bloom lembra seus amigos de juventude que passaram décadas de interminável psicanálise, para terminarem murchos e secos, esgotados de toda paixão, prontos para morrer analítica e sadiamente. Fiquei surpreso com o comentário agressivo de Bloom, pois em seguida considera Freud o maior pensador deste século, mas é interessante pensar se a psicanálise segue sendo uma aventura como foi a de Freud, Klein ou Lacan, verdadeiros Dom Quixotes.

Agora porque a ênfase no humor? Amos Oz, escritor israelense em uma recente carta ao escritor japonês e Nobel de literatura Kenzaburo Oe escreveu sobre o humor e o fanatismo: " Se o senhor prometer que me acompanhará com uma boa dose de ceticismo, posso até lhe dizer que descobri a cura para o fanatismo. A cura é o bom humor. Nunca vi um fanático bem humorado, nem alguém bem humorado se tornar fanático...o fanatismo é contagioso, pode-se pegá-lo no próprio ato de tentar curá-lo. Conheço o perigo de se tornar um fanático anti-fanatismo", conclui Amós Oz. E a psicanálise, como se situa neste jogo entre o humor e o fanatismo? As vezes fica cômica muitas discussões teóricas, sempre na defesa de verdades, da "verdadeira psicanálise", seja na IPA, em Lacan, ou nas instituições independentes. Há uma luta, um confronto político de poder que mobiliza o templo na busca de novos fieis. Óbvio que a psicanálise não é uma religião, mas às vezes as obras dos mestres hipnotizam, porque há uma identidade a preservar, e nessa identidade há uma característica fundamental: a seriedade. A Psicanálise é séria, bem como todo psicanalista deve ser ser sério. No conflito entre escolas, o critério de seriedade nos estudos ou no atendimento clínico é muito usado para avaliação. Além do que a psicanálise é considerada um tratamento mais sério que os outros tipos de atendimento psicoterapeutico, há como um ar de superioridade relacionado à imagem do ouro, do valor, da profundidade que chegaria uma análise.

A seriedade que Sigmund Freud imprimiu à sua obra foi todo um esforço para demonstrar a sua cientificidade, logo a sua verdade, palavra esta sempre muito valorizada. Mas o que é a seriedade? Para Schopenhauer o contrário do riso e do risível é o sério. Em decorrência disso, este consiste na consciência da total concordância e congruência do conceito, ou pensamento, com o concreto ou a realidade. O sério está convencido de que pensa as coisas como elas são e de que elas são como ele pensa. Quanto mais a congruência parece perfeita, mais facilmente pode ser revogada por uma incongruência inesperada, e é por isso que a passagem do sério ao riso é tão fácil. O sério, no seu limite, é a aparência de uma congruência que não existe. Esta reflexão sobre o sério e riso pode ser lida no interessante livro O riso e o risível na história do pensamento. A falta de humor e do riso na história da Psicanálise pode ser atribuída talvez ao excesso de seriedade, como se esta qualidade fosse prova da verdade. Os pacientes contam seus dramas, seus sofrimentos, suas angústias que não são fáceis e tampouco motivo de riso. O problema não é só o que conta aquele que procura o psicanalista, mas a forma como é escutado. A escuta psicanalítica é estimulada a buscar o conflito, levantar as resistências, desafiar as defesas: as transferências vão sendo levadas à neurose de transferência e uma vez resolvida esta, após muitos anos, o paciente ficara curado.

A neurose de transferência se resolve? Se for aquela que se desenvolveu artificialmente com o analista, freqüentemente sim; mas e a neurose que cada psicanalista ou paciente desenvolve com a própria psicanálise? Um exemplo onde ocorre esta seriedade psicanalítica são as discussões clínicas,pois é impressionante como ao ir analisando o paciente a discussão fica trancada na psicopatologia e vai sendo profundamente analisado os conflitos, as fixações, o recalcamento, as defesas, enfim com tudo isso, não pode ser surpresa a duração dos tratamentos, que foram passando de meses na época de Freud para anos e anos nos últimos 50 anos da psicanálise. Fica a pergunta: será que hoje o tratamento psicanalítico é muito melhor que na época de Freud? Octave Mannonni propõe que a função do analista é a mesma que Sancho Pança tinha com Dom Quixote: quando queria que este voltasse a razão, dizia simplesmente: Mire vuestra merced lo que dice senhor. A função do analista seria ser um Sancho que acompanha seu paciente Dom Quixote na incrível aventura de suas lutas contra seus moinhos gigantescos. Winnicott em O Brincar e a Realidade diz, numa das raras autocríticas públicas que um psicanalista escreveu: "a criatividade do paciente pode ser roubada pelo terapeuta que sabe demais. Fico desolado quando penso nas modificações profundas que impedi, pela minha necessidade de interpretar. O caminho seria o espaço de brincar que se cria entre paciente e analista". Brincar é preciso, analisar não é preciso, recordando a frase atribuída a Fernando Pessoa, em que navegar é preciso e viver não é preciso. Uma das leitura desta frase que navegar é preciso, porque há precisão em navegar dado pela bússola, pelas estrelas mas a vida não é precisa, porque não há precisão, tantos são os fatores que surpreendem e mudam.

No consultório, o psicanalista é visto como um rei, o famoso sujeito suposto saber ou suposto poder. Poderá o analista desenvolver em geral na clínica uma atitude bem humorada ao escutar tantos problemas, sofrimentos, dores, doenças, angústias? No ponto VIII do Mal estar na Cultura, Sigmund Freud analisa o supereu e escreve que a "angústia frente a esta instância crítica(angústia que está na base de todo vínculo), ou seja a necessidade de castigo, é uma exteriorização pulsional do eu que ficou masoquista sob o influxo do super eu sádico". Isto é o eu emprega um fragmento da pulsão de destruição interior, preexistente nele, numa ligação erótica com o supereu. Ora, esta é uma das perguntas em relação ao tratamento psicanalítico: a dose de masoquismo do paciente e do sadismo do analista, que está em jogo na relação. Neste mesmo livro Freud descreve a arte assim: A ligeira narcose em que a arte nos mergulha é fugaz; simples recuo frente às duras necessidades da vida, ela não atinge um ponto tão profundo para nos fazer esquecer nossa miséria real. Esta impressionante idéia sobre a arte como narcose, parece que vale também para o humor quando escreve que este se aproxima dos processos regressivos o reacionários que tão amplamente achamos na psicopatologia. Freud ora enaltece a arte e o humor, e ora os caracteriza como narcose e alívio momentâneo. Assim foi estimulando a crença que só uma análise seria capaz de profundas e duradouras mudanças.

O humor é uma forma de enfrentar o difícil mundo que se vive, e Kohut destaca que: "o sentido do humor é uma adquisição singularmente humana. O sentido de humor como o narcisismo cósmico constituem transformações do narcisismo que ajudam ao homem a alcançar um domínio final sobre as exigências do self narcisista, ou seja, a tolerar o reconhecimento de sua finitude". Finalmente explica que o sentido de humor não representa um quadro de grandiosidade e euforia mas de sereno triunfo interior, com uma mescla de melancolia não negada. Voltando ao início, para imaginar a boa idéia de Tchekov sobre as formas de ver a realidade humana: Porque um psicanalista tem mais dificuldade para ver pela janela cômica, ou escutar o lado alegre das novelas familiares? Talvez o problema, o sintoma não seja só dos psicanalistas, mas mais geral, é sabido que tragédia vende muito mais jornal que uma comédia da vida cotidiana. As manchetes em geral são de guerras, violências, notícias assustadoras. O homem é trágico, a doença e a morte, os perigos econômicos, a violência, enfim como escreveu Guimarães Rosa: viver é perigoso. O primeiro livro da literatura ocidental, a Ilíada começa com a palavra ira e sua trama ocorre durante a guerra de Tróia. A Bíblia enfatiza a ira divina contra os homens pecadores, logo a janela trágica é a mais ampla e dominante. Por este ângulo a Psicanálise estaria certa, mas a comédia e o humor sendo criações humanas permitem uma forma diferente de viver ou de enfrentar o sofrimento, bem como revela através da surpresa um lado esquecido da realidade, que a visão habitual não consegue aprender. Uma vez recebi de um paciente uma história em quadrinhos da Mafalda, famosa personagem de Quino. A menina estava em um bosque com árvores todas com troncos lisos e iguais, mas de repente vê uma toda torta e diz: Esta árvore, certamente não foi analisada. Bom presente do paciente, como a me dizer se já não era hora de aceitar a vida como ela é.

O psicanalista as vezes não fica só atras do divã, mas sim atras de repetidas explicações que buscam quase sempre exaltar seus sucessos e muito pouco os fracassos, frente a um mundo bem mais veloz do que uma valsa vienensse . Para concluir uma história que Antônio Carlos Jobim relatou sobre João Gilberto e publicada na Folha de São Paulo há muitos anos atras: Um dia em Salvador João Gilberto buscou um analista, ao azar, para conversar sobre si. Pela janela do consultório era possível ver o vento que estava forte. João disse calmamente que o vento estava despenteando a árvore. O analista respondeu que a árvore não tem cabelos João , e este concluiu que tem gente que não tem imaginação. Essa história bem humorada, revela não só como as vezes um psicanalista pode ser mais pobre de imaginação que o seu paciente, mas também a picardia do brasileiro, a incrível capacidade de fazer piadas, de rir, enfim a importância do humor. A psicanálise ganharia se pudesse abrir espaço para esta irreverência do humor em diferentes níveis. Será que as perspectivas da psicanálise não estão ligadas a uma maior capacidade de imaginação criativa?

Abrão Slavutzky
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