Uma nova visada sobre o tema da sublimação

Suelena Werneck Pereira

O tema da sublimação ocupou grande parte de meus estudos nos últimos dois anos. À medida em que me dedicava à compreensão do conceito e em contato com as questões que surgiam relativas a ele, tanto em debates com colegas quanto em dúvidas trazidas pelos alunos, fui me deparando com a necessidade de repensar determinados aspectos do tema, até então insuspeitos. Com a força da pulsão que a alimenta, a sublimação foi forçando um olhar diferente na direção de seus fundamentos. Assim é que perguntas surgiram e me vi compelida a tentar respondê-las.

A questão que mais freqüentemente se apresentou foi a relativa à coexistência entre sublimação e loucura, desrazão, adoecimento psíquico. Explicando melhor: posto que a criação artística é considerada, por Freud, como um dos dois melhores exemplos de atividade sublimatória - sendo o outro a produção científica -, como compreender a incidência de graves perturbações na vida anímica dos mais esplêndidos artistas que a humanidade já conheceu? Exemplos não faltam. Mesmo não produzindo a mesma sensação de estranheza, é, no mínimo, curiosa a idéia da loucura do cientista: louco é um aposto comum, e aceito sem maiores problemas, ao termo cientista.

Acrescenta-se a esse ponto a idéia amplamente difundida de uma certa fixidez do resultado de uma sublimação: é como se, uma vez atingida a meta sublimada, as coisas nunca mais pudessem acontecer de outro modo para aquela moção ou conjunto de moções pulsionais. Parecia-me, em determinados momentos, que se construía uma idealização em torno da sublimação. Outro aspecto que me chamou bastante a atenção, e me levou a refletir ainda mais, foi a forte presença de um julgamento de valor no próprio enunciado do conceito por Freud: a sublimação situa-se, desse modo, perigosamente no campo da moral.

Gostaria de deixar essas discussões para um momento posterior e inicialmente tentar introduzir o tema e traçar o percurso do conceito na escrita freudiana.

Sublimação significa, grosso modo, elevação. A palavra latina sublime, que está em sua raiz etimológica, designa aquilo que vai se elevando, que se sustenta no ar. Há dois campos semânticos para o termo sublimação: o da alquimia e da química, e o da moral. Se na alquimia sublimar significa elevar ao mais alto grau, na química moderna diz respeito à operação de passagem da matéria do estado sólido para o gasoso. Esse processo se manifestou, de início, como um procedimento de purificação. No registro da estética e da ética, o sublime mantém um sentido semelhante de ascensão: sublimar indica elevar à maior perfeição, mas também purificar, tornar ou tornar-se sublime. O termo aponta para aquele que atingiu um grau muito elevado na escala dos valores morais, intelectuais ou estéticos, aquele que é quase perfeito, admirável, e cujos méritos transcendem o normal. O sentido psicanalítico do termo engloba os dois campos de significação.

Em psicanálise, o conceito de sublimação designa um processo que explicaria atividades humanas sem nenhuma relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. A pulsão sublimada é derivada para um novo alvo não-sexual, visando objetos socialmente valorizados. São exemplos da sublimação a arte e a ciência. A sublimação constituiria um tipo particular de destino pulsional, com um papel fundamental no campo da cultura. (1)

O termo sublimação surge cedo no texto publicado e praticamente com o mesmo sentido que manterá até o final da obra de Freud. Assim é que lemos no caso clínico conhecido como "caso Dora" que as perversões são desenvolvimentos de germes contidos na disposição sexual indiferenciada da criança e que "sua sufocação ou volta na direção de metas mais elevadas, assexuais", a que Freud dá o nome de sublimação, "estão destinadas a proporcionar a força motora de um bom número de nossos êxitos culturais". (2)

Aí estão assentadas as bases do conceito: metas mais elevadas, não sexuais, e realizações culturais. Entretanto, antes mesmo do relato do caso Dora, a noção de sublimação se apresenta na correspondência para Fliess, numa carta de maio de 1897. Ali lemos que as fantasias "são estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento deles" (3), servindo, ao mesmo tempo, para o alívio pessoal. A sublimação faz seu début na pena de Freud articulada à idéia de fantasia, o que falaria a favor da possibilidade de estender o conceito, às vezes restrito a "um processo de transformação da energia de uma pulsão, que se dessexualiza para servir a um fim cultural, e que geralmente culmina com a criação de um objeto ético ou estético que ocupa um lugar material na realidade externa"(4), aproximando-o da idéia mais abrangente de elaboração psíquica.

Talvez possamos chamar de sublimação todo processo de inscrição psíquica bem sucedida, em oposição ao processo de recalcamento: assim, a produção de fantasias, o próprio pensamento, se incluiriam nessa vasto campo das atividades sublimatórias, satisfações não diretamente sexuais que são, adiadas, secundarizadas, das moções pulsionais. Entretanto, aquilo que leva à criação artística e à produção científica parece mais bem tratar-se de outra coisa.

Logo a seguir, no Manuscrito L, anexo à carta citada, lemos que "as fantasias servem à tendência de aperfeiçoar as recordações, de sublimá-las", ou seja, de servir de alternativa à recordação das cenas primordiais, fato que traria grande desprazer ao sujeito. O sentido da transformação de algo diretamente sexual em uma fantasia embelezadora, que visa o aperfeiçoamento, nos faz perceber desde já a referência a um juízo de valor.

A sublimação é conceituada no texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade": ligada à fixação de metas sexuais provisórias e à insistência na obtenção de um prazer que deveria apenas preparar o ato sexual, ela se inscreve aqui no registro do sentido da visão. Postula Freud que a curiosidade sexual é despertada pelo fato de a cultura exigir que o homem esconda seu corpo, e que essa curiosidade de desnudar as partes ocultas pode ser "desviada (sublimada) no âmbito da arte"(5). Esse "olhar colorido sexualmente" possibilita dirigir certa quantidade de libido para metas artísticas, mais elevadas.

Postula Freud que a cultura vai se edificar a partir do desvio das pulsões para outros alvos que não os originários e do uso modificado de sua energia. Durante o período de latência, o afluxo das pulsões não cessa e é às expensas delas que se executam essas construções tão importantes para a história da humanidade e para a cultura e desenvolvimento pessoais. A esse processo de desvio Freud dá o nome de sublimação, nesse momento da obra e até o último de seus textos. A sublimação, portanto, se apresenta durante o período de latência: a sexualidade infantil, que então se organiza no que Freud chamará de fase fálica, se demonstra inaplicável - pois as funções de reprodução estão adiadas - e perversa, por partir de zonas erógenas e se sustentar em pulsões cuja descarga trarão para o sujeito desprazer.

Desse modo, suscita forças anímicas contrárias que constróem os chamados diques psíquicos, que se opõem à livre satisfação da imoralidade sexual infantil. A noção de apoio é o instrumento central da teorização e Freud se vale da idéia de que os caminhos que levam ao apoio do sexual na satisfação de funções vitais são os mesmos que servem à atração das forças pulsionais sexuais em direção a outras metas, não sexuais. São, portanto, vias transitáveis nas duas direções. Nesse momento, o conceito postulado se aproxima muito do que conhecemos como formação reativa. Numa nota de rodapé, acrescentada em 1915, Freud comenta que a sublimação pode se dar por outros caminhos, indicando, assim, a segunda hipótese acerca do mecanismo em operação na sublimação. É, entretanto, aquele o modelo que vai vigorar no texto sobre Leonardo.

Freud opta, para inaugurar seu texto sobre a sexualidade humana, pelo recurso a uma perversão específica, a homossexualidade masculina: trata-se de uma estratégia para poder combater a idéia da reprodução como finalidade "natural". A homossexualidade masculina é também a organização privilegiada por permitir a discussão em torno da indeterminação do objeto: se cai por terra a questão da reprodução, também passa a não mais valer a pré-determinação do objeto. Assim, pode Freud chegar a dizer que são frouxos os nexos entre a pulsão sexual e seu objeto. É justamente essa característica da pulsão, a da contingência de seu objeto, que vai permitir a Freud postular a incrível plasticidade das pulsões sexuais e sua aptidão em se satisfazer com outros alvos e também com outros objetos. A pulsão sexual se presta a mudar de via por sua extraordinária deslocabilidade.

Do mesmo modo, Freud vai trabalhar com a homossexualidade de Leonardo da Vinci como um dispositivo de demonstração do conceito de sublimação. Como o texto metapsicológico provavelmente escrito acerca da sublimação se perdeu, o artigo sobre Leonardo se converte no material privilegiado sobre o tema, a sua mais extensa exploração. Num texto de 1908, anterior ao artigo sobre Leonardo, já aparece a idéia de que "a constituição dos atingidos por inversão, os homossexuais, inclusive se caracteriza pela particular aptidão da pulsão sexual para a sublimação cultural"(6). Isso se deve ao fato de a pulsão sexual ser extremamente composta e de nascer pela contribuição de numerosos componentes e pulsões parciais.

Para as excitações muito intensas provenientes de certas partes privilegiadas do corpo - e inutilizáveis porque inadmissíveis pelo sujeito e inadequadas às finalidades da reprodução - são procurados drenagem e emprego em outros campos. Nos casos favoráveis, nos diz Freud, é conduzida à sublimação. Esta é uma das fontes da atividade artística, mas não apenas: as forças utilizadas no trabalho cultural são obtidas pela sufocação dos elementos chamados perversos da excitação sexual. Ou seja: a perversão conhecida como homossexualidade masculina está assim apta a fornecer libido para a produção de bens culturais, se não sucumbir ao recalcamento.

É dentro desse panorama teórico que Freud se debruça sobre "Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci", texto de 1910. A discussão acerca da sublimação toma como eixo de análise a questão da investigação sexual infantil e a pulsão de saber. Esta última é compreendida como correspondendo, por um lado, a uma maneira sublimada do apoderamento, da pulsão de dominação; por outro, trabalha com a energia da pulsão de ver. Freud retoma, desse modo, a postulação dos "Três ensaios" acerca do registro da visão.

Freud aborda, inicialmente, as origens da criatividade de Leonardo, vista como uma sublimação, e a inibição do exercício desse talento, acompanhada de um progressivo freamento da criação pictórica. Aos poucos, e por motivos aparentemente sem explicação, Leonardo vai substituindo sua atividade artística por uma finalmente integral dedicação à investigação científica. Trabalha com hipóteses acerca da vida sexual do artista e infere que a ausência de satisfação direta de sua libido homossexual estaria ligada à sublimação e dessa forma à atividade artística. O seu encaminhamento à atividade de investigação seria uma segunda defesa contra o sexual, não suficientemente afastado pela pintura. Leonardo parecia-lhe "um exemplo de uma fria desautorização do sexual": seus escritos evitavam de tal modo tudo o que dizia respeito ao sexual que "...pareceria que Eros, que conserva tudo o que é vivo, não fosse um material digno do esforço de saber do investigador".(7)

Seus afetos eram domesticados, "submetidos à pulsão de investigar {Forschertrieb}" e ele mudara a paixão em esforço de saber. O sexual deixara sua marca em uma atividade tão afastada de sua meta primeira, emprestando-lhe suas mais essenciais características. A idéia do sexual pode estar excluída na sublimação mas não os traços inconfundíveis de sua origem: Leonardo possuía um insaciável, um infatigável esforço de investigar. Procede em direção a um conhecimento cada vez mais apurado e cada vez mais afastado do sensível. Deparamo-nos com uma pulsão única, estabelecida de maneira hiperintensa, o apetite de saber {Wisstrieb} ou a pulsão de saber {Wissensdrang}: haveria uma disposição particular e é provável que essa pulsão se tenha manifestado já na primeira infância e tenha atraído, originariamente, para si, como reforço, "forças pulsionais sexuais, de sorte que, mais tarde, pode substituir um fragmento de vida sexual".

Um homem assim, diz Freud, quando adulto, investigará com a mesma devoção apaixonada com a qual outro dota seu amor. A pulsão de saber não é um componente pulsional elementar nem exclusivamente subordinado à sexualidade, ou seja, é passível de ser decomposta e seus componentes não são todos sexuais: ela implica também um modo sublimado do domínio, originariamente não-sexual.

Ora, o que se postulava, na época, como não-sexual era o campo da auto-conservação. As pulsões de auto-conservação, logo chamadas de pulsões do eu, possuíam uma energia própria, não-sexual - o interesse -, emanavam do eu e atendiam às necessidades de manutenção do indivíduo. O mundo externo representava para esse eu incipiente grave ameaça. Não tendo como fazer derivar o ódio, evidente clinicamente, das pulsões sexuais, Freud, nos textos metapsicológicos, postula que o ódio tinha origem na luta que o eu travava para escapar das ameaças desse mundo externo tão hostil.

Essa luta era operada, inicialmente, pela musculatura. Dessa luta surgiria, como derivada, a pulsão de dominação {Bemächtigungstrieb}. Como vimos, a atividade da pulsão de saber, nesse momento da teoria, corresponderia a um modo sublimado do domínio, de saída não-sexual, e trabalharia reforçada pela energia do desejo de ver {Schaulust, Schautrieb}, já sexual. Resta entender como a pulsão de dominação, não sendo sexual, é sublimada, posto que a sublimação é então definida como um destino sofrido pelas pulsões parciais sexuais. A explicação está num trecho dos "Três ensaios", também remanejado, a propósito do sado-masoquismo. Freud ali propõe a gênese para o sadismo segundo o esquema do apoio: o sadismo, como componente da pulsão sexual, deriva de uma atividade não-sexual, que é simplesmente a de estender a dominação sobre o objeto.

A atividade de dominação não obteria prazer com a destruição do objeto e só vai se transformar em sexual por um movimento de apoio e um posterior retorno sobre si, num momento propriamente auto-erótico. A atividade que consiste em estabelecer sua dominação sobre o mundo externo, se necessário destruindo-o, é, em si, não-sexual. Entre o domínio auto-conservador, de adaptação ao mundo externo, e o sado-masoquismo há uma relação de apoio e é desse sado-masoquismo sublimado que acaba derivando a pulsão de saber. Esse aspecto da teorização, que envolve a pulsão de dominação, anuncia a perspectiva própria da segunda teoria pulsional e as pulsões de morte.

Há também a questão da energia do desejo de ver, "combustível" da pulsão de saber. A pulsão de ver é uma pulsão parcial, independente de qualquer fase de organização libidinal, e implica também o movimento de apoio. Tanto no texto sobre as perturbações psicogênicas da visão (8) quanto no trabalho metapsicológico sobre as pulsões (9), consta o fato de o voyeurismo/exibicionismo, isto é, a pulsão sexual de ver e ser visto, se apoiar na atividade não- sexual de ver.

A atividade de ver comporta dois aspectos: um não-sexual, auto-conservativo, serve à orientação do indivíduo, fora de qualquer questão de prazer sexual; deriva do tocar, é uma extensão do tatear; o outro aspecto é sexual, e diz respeito à atividade de ver que se torna propriamente pulsão, no movimento de apoio, e quando se torna representativa, isto é, se torna interiorização de uma cena. Podemos dizer que a pulsão de saber comporta domínio e energia da visão, um e outra se reencontrando na interiorização: interiorizar é igualmente dominar(10).

A pulsão de ver, presente como um dos pólos do esquema, torna menos abrupta a oposição entre a atividade intelectual e a atividade de pintor de Leonardo: sua investigação intelectual mantém um caráter flagrantemente visual, maquínico, construtivista, sua pesquisa não ultrapassa os limites do representável. Leonardo nunca consegue se liberar da visão.

E o que seria essa atividade de investigação? À diferença da atividade propriamente intelectual, a função da inteligência, que, na maioria das vezes funciona a serviço das tendências da auto-conservação, a investigação parece buscar alguma coisa escondida, para além das aparências, uma espécie de esquema representativo que nada mais é que a fantasia. Num texto de 1908(11), Freud afirma que as teorias sexuais infantis são construídas justamente para dar conta de um certo número de enigmas, sobretudo o enigma inicial da distinção entre os sexos. Vai relacionar a curiosidade intelectual muito viva de Leonardo, sua paixão pela investigação científica, à investigação sexual infantil, centrada particularmente na questão da origem dos bebês. Mostra como uma curiosidade se transforma em outra e nos dá três destinos para a curiosidade infantil. O primeiro destino é o da inibição neurótica: o pensamento se torna frágil e favorável à eclosão de uma neurose, o recalque da sexualidade envolve e contamina o próprio exercício intelectual.

O segundo destino é o da sexualização do pensamento, característico das neuroses obsessivas: o desenvolvimento intelectual é vigoroso e muito ligado à sexualidade; a investigação sexual infantil sucumbe ao recalque mas é ajudada pelo exercício da inteligência para driblá-lo e retorna do inconsciente sob a forma de compulsão a ruminar. Aqui, a investigação intelectual resume praticamente a atividade sexual. O terceiro tipo é aquele que escapa à inibição e à obsessividade intelectual: o recalque da sexualidade acontece mas não é total e "...a libido escapa ao destino do recalque sublimando-se desde o começo mesmo em um apetite de saber e somando-se como reforço à vigorosa pulsão de investigar".

Aqui a pesquisa tem ainda o caráter de uma compulsão - a compulsão sendo a marca de um recalque antigo - mas estão ausentes as características da neurose, devido à diferença entre os métodos empregados - sublimação no lugar de irrupção a partir do inconsciente. Essa referência a um trajeto primordial da sublimação, bastante precoce na história do sujeito, aponta para a idéia de que ela evitaria o excesso do recalque. Com efeito, a sublimação é, para uma parte da pulsão, um destino que lhe permite "escapar" ao recalque.

Freud se detém a investigar a homossexualidade de Leonardo: ela pertence a um tipo de devir homossexual que passa pela identificação com a mãe, como resultado de um amor quase exclusivo por ela até determinada idade e que culmina numa escolha narcísica de objeto. O narcisismo é uma referência central desse texto. Foi decisiva a saída identificatória que ele tomou para resolver a intensidade de sua ligação erótica com a mãe, tornando-se assim homossexual. Houve, por assim dizer, uma fixação nesse investimento libidinal, presente em todo ser humano, como um momento intermediário entre a colocação libidinal narcísica e a escolha de objeto heterossexual.

Esse tema vai ocupar Freud nos anos que se seguiram. Na análise conhecida como o caso Schreber, lemos que a causa ativadora de sua doença, a aguda psicose que irrompe em sua vida anímica, foi uma manifestação de libido homossexual, uma vitória de uma fantasia feminina que até então havia sido mantida sob controle. Freud postula então a existência de um estágio na história evolutiva da libido, atravessado no caminho que leva do auto-erotismo ao amor de objeto, e o chama de narcisismo.

O sujeito, no curso de seu desenvolvimento, sintetiza em uma unidade suas pulsões sexuais de atividade auto-erótica e toma primeiro ao si- mesmo-próprio como objeto, antes de passar deste à eleição de objeto em uma pessoa alheia. Talvez nesse si-mesmo tomado como objeto, os genitais sejam uma peça fundamental, o que leva à eleição de um objeto alheio com genitais parecidos, pela via recém-saída da identificação. Portanto, leva à heterossexualidade através da escolha homossexual de objeto. Para aqueles que alcançam a escolha de objeto heterossexual, as aspirações homossexuais não são nem canceladas nem suspensas: simplesmente são pressionadas a afastar-se da meta sexual e conduzidas a novas aplicações.

Conjugam-se com setores das pulsões egóicas e constituem, com elas, as pulsões sociais, responsáveis por sentimentos de amizade, de fratria, enfim, sentimentos sociais. São as pulsões sexuais de meta inibida, elemento de ligação entre os seres humanos. A importância da homossexualidade na estrutura dos grupos sociais já havia sido mencionada em "Totem e tabu", de 1912, e voltará a ser examinada em "Psicologia das massas e análise do eu", de 1921. Aqueles que se tornam homossexuais manifestos, ou seja, aqueles que permanecem fixados nessa escolha homossexual de objeto, extraem de seu erotismo, por sublimação, a energia que empregam em atividades que dizem respeito aos interesses da humanidade.

No caso de Schreber (12), Freud infere que os graves sintomas produzidos eram devidos à intensificação da libido homossexual. Tendo vivido até a maturidade perfeitamente integrado à vida familiar e profissional, não foi capaz de manter sublimada uma quantidade de excitação, aumentada consideravelmente por uma maré alta libidinal, obrigando seu aparelho psíquico a manobras menos bem sucedidas. Algum poderoso acontecimento - soma de incremento pulsional e frustração - deve ter empurrado sua organização libidinal ao estágio anterior ao da escolha heterossexual de objeto. E essa frustração pode se dar na esfera do ideal.

Proponho recorrermos rapidamente ao texto sobre o narcisismo a fim de delinearmos uma explicação para o que acaba de ser escrito. Num trecho em que trata da formação das instâncias ideais, escreve Freud que a formação de ideal seria, por parte do eu, a condição do recalque. O que seria esse ideal? Isso a que Freud dá o nome, nesse ponto do texto, de eu ideal {Idealich} seria a formação sobre a qual recai agora - isto é, num momento posterior à própria instituição do narcisismo primário - o amor de si mesmo, do qual, na infância, gozou o eu real {wirkliche Ich}. "O narcisismo aparece deslocado a este novo eu ideal {neue ideale Ich} que, como o infantil, se encontra de posse de todas as valiosas perfeições"(13). Esse "novo eu ideal" é, na verdade, o ideal do eu {Ichideal}, substituto do narcisismo perdido da infância, em que o eu real coincidia com o eu ideal, em que o sujeito foi seu próprio ideal.

E o que haveria de comum entre essa formação de ideal e a sublimação, que relações mantêm entre si? A sublimação é um processo que atinge a libido de objeto e consiste em a pulsão se lançar a outra meta, distante da satisfação sexual propriamente dita, direta, conforme as definição em vigência até esse momento da teoria. A ênfase recai, portanto, sobre o desvio com respeito ao sexual. A idealização, por sua vez, é uma operação que envolve o objeto que, sem nenhuma mudança em sua natureza, é enaltecido e valorizado psiquicamente. A idealização é possível tanto no âmbito da libido do eu quanto no da libido de objeto. A formação do ideal do eu se enquadra no esquema das idealizações.

Entretanto, a formação de um ideal dessa espécie não implica necessariamente sublimação; o ideal do eu certamente reclama essa sublimação, mas não pode forçá-la. A formação do ideal aumenta as exigências do eu e é o maior fator que favorece o recalque. A sublimação, por sua vez, constitui a via de escape que permite que essa exigências se satisfaçam, sem que se produza o recalque. Freud menciona a existência de uma outra instância ideal, cuja tarefa seria a de assegurar e mesmo exigir a obtenção de satisfação narcísica proveniente do ideal do eu. Portanto, estamos diante de uma satisfação com o si-mesmo-próprio, derivada para essa instância ideal erigida dentro do eu, a partir das críticas e dos exemplos das figuras parentais, as quais a libido de objeto é obrigada a abandonar e a substituir por identificações.

"Grandes quantidades de uma libido em essência homossexual foram assim convocadas para a formação do ideal do eu {Ichideals} narcísico, e em sua conservação encontram drenagem e satisfação". E por que em essência homossexual? Porque me parece que mais facilmente esses montantes de libido, colocados à margem do processo de desenvolvimento e de aceitação da castração, estão à disposição dessa colocação. No caso da doença paranóica, afecção que serve de base à discussão nesse momento, é clara a origem dessa instância censuradora, que mede o eu pelo modelo do ideal do eu; e é contra essa instância que o eu, em dificuldades, se rebela. Opera essa rebelião retirando dessas influências o investimento que provinha de sua libido homossexual.

E é para se defender desse montante de libido que lhe volta às mãos, e que o confronta com a possível homossexualidade, que o sujeito produz seus delírios. No final do artigo sobre o narcisismo, Freud postula que o ideal do eu vincula, além da libido narcísica, uma grande quantidade da libido homossexual do sujeito que, por essa via, é devolvida ao eu: a insatisfação gerada pela não realização das aspirações desse ideal libera libido homossexual. Dessa forma, explica a causação da paranóia por um dano ao eu causado por uma frustração da satisfação no registro do ideal do eu.

A sistematização do conceito de narcisismo, que acontece no texto metapsicológico de 1914, problematiza tanto a primeira oposição pulsional quanto a teoria até então sustentada acerca da sublimação. A hipótese do narcisismo nos diz que o eu se encontra originariamente, no começo da vida anímica, investido por pulsões e é, em parte, capaz de satisfazer suas pulsões em si mesmo. A esse estado Freud chama de narcisismo e auto-erótica à possibilidade de satisfação.

Entretanto, somente uma parte das pulsões sexuais é suscetível desta satisfação auto-erótica: há pulsões sexuais que desde o começo reclamam um objeto, como, por exemplo, a pulsão de ver. E as pulsões egóicas nunca se satisfazem de maneira auto-erótica. Estas duas últimas perturbam desde cedo o estado atingido de narcisismo e preparam o caminho para os posteriores desenvolvimentos. O estado narcísico primordial jamais seria abandonado se todo indivíduo não passasse por um período em que se encontra desvalido, desamparado, e precisasse ser cuidado: o desamparo inclui, necessariamente, o objeto. Durante esse estado inicial, suas necessidades somente são satisfeitas por contribuição vinda de fora, tirando-o do estado narcísico e obrigando-o a refrear determinadas moções pulsionais para não pôr em risco tão valiosa e inestimável assistência.

O estado de desamparo impede o sujeito de seguir imerso em seu narcisismo originário e irrestrito, e o obriga a considerar a presença necessária de um outro que pode tirá-lo dessa situação, providenciando a ação específica, única capaz de pôr fim à efração de excitação produzida pela urgência da vida. O desamparo introduz o sujeito na dialética da intersubjetividade e o obriga a renunciar à satisfação direta de suas pulsões. Ao fazê-lo, tem como alternativa ao recalque dirigir à sublimação parte de suas moções. Recalque e sublimação são, pois, dois destinos que se oferecem às pulsões a que o desvalido teve de renunciar.

O panorama teórico é aquele da primeira tópica. Ainda não estão em questão as pulsões de morte e seus derivados, com suas exigências específicas de descarga. É dentro desse quadro que Freud começa a redigir "Além do princípio de prazer", publicado em 1920, texto que vai conferir à teoria psicanalítica uma notável mudança de inflexão. A nova dualidade pulsional vem substituir e incluir a antiga oposição. Este desdobramento da teoria das pulsões fornece a nova grade conceitual em que se inserirá a nova tópica do aparato. O surgimento da nova instância psíquica denominada o isso, das Es, obriga a uma radical reformulação: ele é agora o pólo pulsional e o lugar das pulsões sem inscrição.

Anterior à questão do recalque, apresenta-se ao aparato uma nova tarefa: a contenção da excitação proveniente dessa perpétua fonte de estimulação através da inscrição. Para que se realize sua inscrição no psiquismo, é necessário que a força da pulsão "encontre" uma representação que a "aceite". No quadro dessa nova arquitetura do aparato, sublimação e recalque indicam destinos das pulsões que se realizam quando a inscrição se apresenta. A sublimação pode ser considerada a realização dessa inscrição com sucesso, quando então a força pulsional sofre uma mudança do domínio do corpo para o registro psíquico; o recalque seria a marca de uma transcrição fracassada, mesmo impossível(14). A partir desse novo ponto de vista, a sublimação passaria a incluir bem mais acontecimentos psíquicos do que a criação artística e a investigação científica.

O isso é o campo de produção de forças e o inconsciente, parte desse isso, deixa de ser apenas um conjunto de representações recalcadas a serem traduzidas. A segunda teoria pulsional e seu corolário, a segunda tópica, nos lançam no terreno do pulsional propriamente dito, onde o regime das forças impera. No texto "O eu e o isso", de 1923, surge a nova concepção do mecanismo implicado na sublimação: aquele que, finalmente, usa como instrumentos de explicação o conceito de narcisismo e a idéia da dessexualização da libido. Diz Freud que a transformação de libido de objeto em libido narcísica, isto é, a retirada da libido de seus investimentos objetais e subseqüente colocação dessa libido no eu - retirada essa imposta por diversas situações -, implica, manifestamente, uma renúncia das metas sexuais diretas, uma dessexualização, e, portanto, uma espécie de sublimação. Esse seria o caminho universal até a sublimação, sempre pela mediação do eu, verdadeiro administrador das questões pulsionais. O eu primeiro transforma libido de objeto em libido narcísica, para depois colocar-lhe outra meta. É nesse enfoque que os limites estreitos dados habitualmente ao conceito são problematizados. Se a energia de deslocamento utilizada pelo eu em seus inúmeros procedimentos é libido dessexualizada, seria lícito chamá-la também de sublimada. "Se incluímos os processos de pensamento em sentido lato entre esses deslocamentos, então o trabalho do pensamento é sufragado por uma sublimação de força pulsional erótica"(15).

Nesse momento, surge um impasse. Tratando-se agora da oposição entre pulsões de morte e Eros, não poderia esta mudança de libido de objeto em libido narcísica ter outras conseqüências, talvez funestas, como, por exemplo, produzir uma temida desfusão das pulsões? O eu opera essa mudança acolhendo em si a libido objetal e ligando-a a alterações nele efetuadas pelas identificações; ou seja, a libido objetal é utilizada em identificações pelo eu que, assim alterado, se oferece como objeto para as moções pulsionais antes objetais. E Freud constata que, "ao apoderar-se assim da libido dos investimentos de objeto, ao arrogar-se a condição de único objeto de amor, dessexualizando ou sublimando a libido do isso, trabalha contra os propósitos de Eros, se põe a serviço das moções pulsionais inimigas".

Essas alterações produzidas no eu por identificações nada mais são que as instâncias ideais, o ideal do eu e o supereu. Estas se produzem pela identificação com as imagos parentais e qualquer identificação dessa ordem tem o caráter de uma dessexualização. Tal transformação produz uma desmescla de pulsões pois o componente erótico já não tem mais a potência para ligar toda a destruição antes vinculada a ele e esta se libera como agressão e destruição. Dessa forma, a sublimação, destino tão louvável, pode constituir um facilitador de perigosas desfusões pulsionais. A desfusão pode acarretar, entre outros destinos que examinaremos a seguir, um acréscimo de pulsões de agressão dentro do supereu, já ocupado por moções agressivas anteriormente dirigidas ao objeto temido, que se voltará ainda mais cruel e sádico contra o eu, expondo-o a maus-tratos e morte. Penso que a sublimação das pulsões que anteriormente Freud chamava de sexuais e de dominação, e que agora se apresentam como derivadas de Eros e das pulsões de morte, na direção da pulsão a investigar e a criar, está na dependência, como todo o resto da vida psíquica, de uma relação de forças entre a intensidade das pulsões e a consistência do eu. Lemos que a capacidade de sublimação guarda uma relação direta com a dimensão do eu; entretanto, essa dimensão, que é narcísica, é variável, suas fronteiras se estendem ou se estreitam, variando conforme suas relações de vassalagem.

Podemos pensar que quanto mais amplo o eu em determinada circunstância, quanto mais consistente sua arquitetura, melhores as possibilidades de sublimação porque, cheio de libido, um verdadeiro "sub-rogado de Eros", tem melhores condições de agenciar, de ligar os excedentes das pulsões que se desintricaram. Entretanto, o eu pode ser acossado pelas moções do isso ou espremido, encurralado pelo supereu, desta forma diminuindo suas dimensões, já que se verá obrigado a utilizar suas reservas libidinais em importantes procedimentos defensivos. Perde temporariamente sua capacidade de administração, de poder escolher o melhor destino para as moções, ou seja, sua possibilidade de sublimação. A amplitude do eu é condição necessária à sublimação.

Todavia, nada do que até agora escrevi constitui uma nova visada da questão. Encontro-me ainda perplexa com aspectos conceituais que parecem entrar em conflito com aquilo que muitas vezes é observado. Talvez examinar a atuação das pulsões de morte em todo o funcionamento psíquico, especialmente no processo da sublimação, produza algo novo. As pulsões de morte são as forças responsáveis pela mudança radical que se opera, de meta e de objeto, por sua função, posta a serviço de uma tendência, de desligar conexões, propiciando novos agenciamentos. A dessexualização da libido, a diminuição de sua potência erótica, de ligação, apenas facilitaria a tarefa dessas pulsões. Caberá ao eu bem fornido libidinalmente impor às pulsões agora desfusionadas um destino que lhe seja favorável, ou seja, um destino que o proteja da angústia, sem precisar lançar mão de notáveis dispêndios energéticos, como acontece diante do recalcamento ou ainda de outras defesas mais extremas. Entretanto, a imagem que surge é sempre a de um eu-gerente, um eu que guia, conduz, encaminha. E o que podemos observar, sobretudo se pensarmos nos artistas geniais e loucos, adoecidos, é um ultrapassamento, um transbordar pulsional, desobedecendo ao que poderíamos considerar um assentamento das pulsões.

O processo da sublimação mostra-se como possuindo tênue equilíbrio: quando esse se rompe, percebemos o caos, a desordem, a deriva. Se podemos vislumbrar as pulsões de morte, com sua característica de operar disjunções, como as responsáveis pela possibilidade de infinitas variações de meta e objeto - produzindo, portanto, as sublimações -, creio podermos igualmente atribuir-lhes o papel fundamental nessa súbita passagem da organização sublimada à desorganização patológica. A sublimação, vista dessa maneira, não seria em si uma finalidade, e sim o resultado da ação dessas forças: mais do que causa, apresenta-se como efeito. Em vez de pensarmos a via da sublimação como aquilo que se apresenta como uma alternativa, como um desvio possível, tendo dessa forma o caráter de anterioridade, podemos considerá-la como produzida pela própria força da pulsão, que compele {drängen} a esse destino. Não se constituiria assim como algo "escolhido": seria antes o produto do próprio esforçar da pulsão. Pensando no desamparo e na renúncia à satisfação direta das pulsões, e pensando também que são as pulsões destrutivas aquelas a que primeiro se renuncia, podemos afirmar que a variedade de alvo e objeto é própria da ação típica dessas mesmas pulsões que, diz Freud, são as que abrem o caminho para o objeto e ensinam às pulsões eróticas onde investir. As aspirações pulsionais não seriam, então, pressionadas, conduzidas, passivas, ao caminho do socialmente aceito e culturalmente valorizado: elas forçam passagem, pressionam, são ativas. As pulsões, ou melhor, a mescla pulsional, não apenas se lança a outra meta distante da satisfação direta, meta essa construída pelo acesso à cultura: ela cria uma nova meta. É claro que essa idéia não substitui nem invalida tudo aquilo que foi escrito a respeito da sublimação; seria antes um acontecimento de outra ordem, aquele que estaria por trás da verdadeira criação artística e da produção do novo no terreno da ciência e envolvido no eclodir da doença, fantasma a assombrar a frágil estabilidade conseguida.

Só aquele habitado por uma mescla pulsional no limiar do impossível, ou seja, só aquele cuja fusão resvala no predomínio das pulsões de morte, será capaz de, na melhor da hipóteses, se dilacerar e dar nascimento a algo de grandioso; e na pior versão dos acontecimentos, enlouquecer e destruir(-se). É como se postulasse a existência de duas sublimações, ou melhor, uma variação significativa de intensidade das sublimações. Se a mescla pulsional não é desfavorável, o sujeito será capaz, sempre premido pela ação de suas pulsões de morte, de enviar para os modelos fornecidos pela cultura seus excedentes pulsionais, seus problemas de inscrição. Se o caso for de grandes intensidades, grandes quantidades das pulsões de morte, nada restará ao sujeito que render-se à pressão disjuntiva e esperar que, mais cedo ou mais tarde, sobrevenha um desastre.

Talvez devêssemos, a partir desse desenvolvimento, dissociar o conceito de sublimação da idéia de sublime no sentido daquilo que visa a perfeição, a purificação, a elevação moral. Ao tentarmos ampliar o alcance do conceito, somos levados a pensar mais fortemente em sua analogia com o fenômeno químico, que aponta para uma brusca e radical mudança de estado de um corpo. A sublimação é também uma mudança brusca de meta e de objeto, sem que esperemos, com isso, a produção de algo sublime, transcendente ou perfeito. É evidente que isso pode acontecer, num dos extremos dessa escala, sobretudo no caso da obra de arte. A cultura, como vimos, se edifica sobre a renúncia do pulsional, instado que se vê o homem por seu estado primordial de desamparo. Por conseguinte, a própria cultura mapeia para o sujeito os diversos caminhos aceitáveis para suas moções pulsionais, aos quais ele tentará obedecer, caminhos esses com um bom aproveitamento de energia e em benefício próprio. Como balizadores dos rumos, as instâncias ideais. Entretanto, e pensando na relação de forças, como explicar a criação do novo, do inédito, do objeto verdadeiramente artístico ou científico, a descoberta essencial, fruto de uma ruptura ainda mais drástica com o conhecido e com o desejável cultural e socialmente? Penso estarmos diante de grandes quantidades de moções derivadas das pulsões de morte, que não se deixaram capturar, ou melhor, recapturar, e dirigir para fins definidos pela cultura.

O eu, representante desse pólo do psiquismo comprometido com a ordem, não pode mais opor-se à força disruptiva e verdadeiramente demoníaca das pulsões. Elas abrirão caminho na direção do desconhecido, do novo, do imprevisível. Não nos esqueçamos que, como resultado da desfusão pulsional implicada na sublimação, também pode acontecer a formação de outro tipo de adoecimento psíquico, com o aparecimento de sintomas característicos, as formações reativas, quadro em que a atividade aparentemente sublimada pretende dar conta de toda, ou quase toda, a satisfação exigida pelas pulsões. Na verdade, assim incluímos uma terceira possibilidade para esse destino pulsional. A sublimação então de diversifica e compreende três finais. O primeiro seria aquele considerado o mais desejável, ou seja, a possibilidade de as pulsões, sexuais e agressivas, se dirigirem a metas afastadas de suas metas primeiras, trazendo uma boa solução para a economia psíquica do sujeito; neste desenlace, nos depararíamos com atividades valorizadas socialmente, e aí estariam incluídas atividades normais, como o trabalho e outras produções humanas. O segundo, resultante de uma luta intrapsíquica encarniçada, compreenderia uma saída sintomática, própria das neuroses obsessivas, em que o sujeito se vê presa de formações reativas que subjugam e limitam suas atividades egóicas, com todas as características de rigidez e compulsividade, e, por representar um fracasso, produzindo angústia. E o terceiro, aquele em que as pulsões rompem inteiramente com o estabelecido e desejado, partindo rumo à produção do novo, do inesperado, situação em que o sujeito já não possui o mando de si: ele é tomado, como que num transe, pela desordem e pelo caos de suas forças pulsionais. A fronteira é delicadamente mantida e qualquer abalo em sua economia pode significar a eclosão da loucura.

Gostaria de concluir propondo, então, que consideremos o processo da sublimação como algo capaz de desembocar em resultados diferentes. Tem sua origem na renúncia às satisfações pulsionais a que o sujeito humano se vê obrigado devido à sua situação de desamparo primordial. As moções mais primitivas são aquelas em que predominam os derivados das pulsões de morte e são elas que abrem caminho para o objeto. São essas moções as que vão produzir novas possibilidades de descarga e satisfação, buscando as trilhas oferecidas pela cultura, muitas vezes ultrapassando-as. A cultura se erige às expensas das energias dessas moções e quanto mais alto o grau cultural atingido, maior o leque de possibilidades alternativas de descarga. Entretanto, as pulsões de morte e seus derivados são de difícil domesticação: podem recusar percorrer esses trajetos conhecidos e, sempre à beira de uma ruptura, apontam para a produção de novas possibilidades. As intensidades podem ser de tal ordem que o eu não agüenta a pressão e perde o comando da situação. Do sublime ao grotesco, do maravilhoso ao terrível. O mecanismo, nos três resultados, é o mesmo: os investimentos objetais são transformados em identificações, nessa passagem a libido se dessexualiza, o eu procura colocar-lhe {setzen} outra meta; o que vai variar vai depender da relação de forças entre as pulsões e a consistência do eu. "...(o eu) mediante seu trabalho de identificação e de sublimação, presta auxílio às pulsões de morte para dominar a libido, e assim cai no perigo de tornar-se objeto das pulsões de morte e de sucumbir ele mesmo".

Suelena Werneck Pereira

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NOTAS

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Spilka, J. Psicopatología psicoanalítica. - Buenos Aires: Nueva Visión, 1975.

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Freud, S. (1910). La perturbación psicógena de la visión según el psicoanálisis. In: Cinco conferencias... Buenos Aires: Amorrortu, 1976. (OCSF; v. XI)

Freud, S. (1915). Pulsiones y destinos de pulsión. In: Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. (OCSF; v. XIV)

Laplanche, J. ProblématiquesIII / La sublimation. - Paris: Presses Universitaires de France, 1980. Ps. 102/3.

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Freud, S. (1911 [1910]). Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia descrito autobiográficamente. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. Pt II. (OCSF; v. XII)

Freud, S. (1914). Introducción del narcisismo. In: Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico ... Buenos Aires: Amorrortu, 1976, Pt III, p. 91. (OCSF; v. XIV)

Birman, J. Alquimia no sexual. In: A ordem do sexual. - Rio de Janeiro: Campus, 1988.

Freud, S. (1923). El yo y el ello. Buenos Aires: Amorrortu, 1976, p. 46 (OCSF; v. XIX)

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