Laio (pai), Édipo (filho), Antígona (neta) - uma trágica família
(Considerações sobre família e psicanálise)

Sérgio Telles

Neste artigo vou usar as três tragédias de Sófocles em torno de Édipo, o Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona tentando vê-las como episódios de um drama familiar que se estende por três gerações. Me apoiarei num texto de Steiner (1), que lida com as duas primeiras tragédias, e noutro de Lacan (2), que aborda a última delas. A idéia é contrapor o que Laplanche chama de vertentes "ptolomaicas" e "copernicanas" na teoria do próprio Freud, e que - a meu ver - teria seus desdobramentos em correntes pós-freudianas como a de Melanie Klein e a de Lacan. Os textos mencionados evidenciam de forma muito clara a diferença destas vertentes. A partir daí, levanto algumas questões que reforçam a importância do aspecto "copernicano" da psicanálise.

Apesar de serem muito conhecidas, para deixar mais clara a argumentação, inicio com um pequeno resumo das três tragédias, tal como é oferecido pela Enciclopoedia Britannica.

Em Édipo Rei, vemos que Édipo é o sábio, amado e feliz rei de Tebas. Apesar de ter um temperamento forte, ser impaciente e arrogante em tempos de crise, no geral parece viver muito bem. Ele se transformara em rei de Tebas porque salvara a cidade da Esfinge, ao responder corretamente seu enigma. Com isso fora premiado com a mão da rainha Jocasta, que estava viúva. Antes de derrotar a Esfinge, deixara para sempre Corinto porque o oráculo délfico lhe tinha profetizado que mataria o próprio pai e casaria com a mãe. Como acreditava ser filho de Pôlibo e Mérope, reis de Corinto, para poupá-los, driblando a profecia, fugira para longe deles. Abandonando assim Corinto, Édipo dirigiu-se a Tebas, quando encontrou numa encruzilhada um velho acompanhado de cinco servos.

Édipo entrou numa luta com ele e, num gesto de ira e arrogância, matou o velho e quatro de seus servos. A peça abre com a cidade assolada pela praga e seus cidadãos pedindo providências a Édipo. Ele consulta o oráculo de Delfos que declara que a praga cessará quando o assassino de Laio, primeiro marido de Jocasta, for encontrado e punido. Édipo se dispõe a procurar o assassino de Laio e muito do resto da peça está centrada na investigação por ele conduzida com esse fim. Numa série de cenas tensas, angustiantes e agourentas, a investigação de Édipo se transforma numa reconstrução obcessiva de seu próprio e desconhecido passado, quando começa a suspeitar que o homem que matou na encruzilhada era Laio. Finalmente Édipo descobre que, quando bebê , fora abandonado para morrer por seus pais Laio e Jocasta, pois estes temiam uma profecia que afirmava que seu filho mataria o pai.

Descobre ainda que sobrevivera e fora adotado pelos reis de Corinto e que acabara por cumprir inadvertidamente a profecia do oráculo de Delfos - tinha efetivamente matado o verdadeiro pai, casado com a própria mãe, com a qual tivera filhos que eram também seus irmãos. Jocasta se enforca ao ver exposta esta rede vergonhosa de incesto, parricidio e tentativa de assassinato de uma criança e Édipo, tomado pela culpa, fura os próprios olhos, cegando-se. Sem visão e sozinho, ele agora está cego para o mundo externo mas finalmente é conhecedor da terrível verdade de sua própria vida.

Em Édipo em Colona, tomamos conhecimento que o velho e cego Édipo passou muito anos vagando no exílio, após ter sido rejeitado pelos filhos homens, Eteócles e Polinices, e pela cidade de Tebas. Apenas suas filhas Antígona e Ismene se importam por ele e dele cuidam. Ele chega ao bosque sagrado de Colona, um povoado perto de Atenas. Ali os anciões se assustam com sua presença e querem-no expulsar. Antígona intercede por ele, pedindo a presença de Teseu, o rei de Atenas.

Enquanto o aguardam, chega Ismene com a notícia de que seus dois irmãos, Polinices e Eteócles estão em guerra um contra o outro pelo poder em Tebas e que o oráculo de Delfos tinha assegurado proteção dos deuses para a cidade que abrigasse o corpo de Édipo e lhe construísse um santuário. Teseu permite a permanência de Édipo em Colona e o protege contra Creonte, irmão de Jocasta que ocupara o lugar de Édipo como rei de Tebas e que para lá deseja levá-lo de volta, interessado na proteção que obteria dos deuses, tal como anunciada pelo oráculo. Édipo rejeita ainda as tentativas de seu filho Polinices, que está em luta contra o tio e o irmão e que também quer a proteção dos deuses que a presença de Édipo lhe garantiria.Édipo não só recusa-se a ajudar ao filho como o amaldiçoa intensamente. Finalmente, Édipo desaparece numa morte misteriosa, aparentemente é engolido pela terra em Colona, onde se transforma num poder benéfico e protetor para a terra que lhe deu o último refúgio.

Em Antígona, a cena se passa em Tebas. Os dois irmãos morreram em combate mútuo - Eteócles, enterrado com todas as honras, e Polinices, visto como traidor da cidade, é deixado para ser devorado pelos pássaros,

sem merecer as pompas fúnebres de um enterro digno. Antígona e Ismene estão cientes do decreto do tio Creonte, que ameaça punir com a morte aquele que desobecer seu decreto, enterrando Polinices. Mesmo assim, Antígona decide enterrá-lo, afrontando Creonte, que é pai de seu noivo Haemon. Flagrada colocando pó sobre o cadáver, guardas a levam a Creonte, que se vê obrigado a sentenciar sua morte. O cego Tirésias antevê desgraças para Creonte se mantiver sua condenação de Antígona, pois essa desagrada aos deuses. Após alguma relutância, Creonte volta atrás mas já

é tarde demais. Antígona se enforcara, deixando Haemon, seu futuro marido em desespero. Responsabilizando o pai pelo suicídio de Antígona, Haemon tenta matá-lo. Como não consegue, mata-se em seguida. Eurídice, sua mãe e mulher de Creonte, ao saber dos acontecimentos, também se mata. Creonte lamenta sua triste sina.

Há muitas interpretações e comentários sobre as tragédias de Sófocles feitas por helenistas e estudiosos do grego c1ássico. Além destas, Steiner nos informa, há mais de 300 trabalhos psicanalíticos que abordam diretamente o mito de Édipo. Assim como Steiner, não examinei estes trabalhos.

A interpretação clássica destas tragédias é a luta do homem contra o destino cego que o apremia com situações terríveis, às quais ele enfrenta, podendo destruir-se neste embate ou dele sair revigorado. Édipo seria um homem inocente em luta com um destino inexoráve1 e impiedoso. Anos mais tarde, em Colona, medita sobre as dificuldades que teve de suportar. Ali, através do sofrimento, adquire uma dimensão heróica.

Como sabemos, Freud usou o Édipo para descrever uma estrutura central na formação do psiquismo humano, na constitução do sujeito, dando uma nova compreensão a esta tragédia.

Mais recentemente Philip Vellacott, um helenista original, numa leitura evidentemente pós-freudiana, defende a idéia de que Édipo não era inocente de seus atos, não ignorava os fatos a seu redor. Vellacott afirma que se Édipo tivesse seguido os muitos indícios à sua disposição, teria com alguma facilidade descoberto ser filho de Laio e Jocasta, deparando-se com o parricídio e o incesto de tão dramáticas consequências. Vellacott acredita que a peça revela muito mais o desejo de Édipo de encobrir a realidade, desejo compartilhado por Jocasta e todos os circunstantes. Essa atitude se radicalizaria em Édipo em Colona, quando Édipo inverte os papéis, passando de culpado a vítima.

Steiner baseia seu artigo nas idéias de Vellacott. Acha que a situação descrita por Vellacott corresponde a fenômenos observáveis na clínica, aquilo que chama de "refúgios psíquicos", formas de evitação de uma realidade psíquica insuportável, especialmente aquelas referentes à culpa e à depressão pela destruição dos objetos amorosos. Assim, Steiner vê em Édipo Rei uma relação perversa com a realidade psíquica, uma denegação, um saber e um não querer saber. Édipo estaria num "refúgio psíquico" perverso, que o impede de enfrentar sua realidade psíquica. Mesmo quando finalmente é forçado a reconhecer o que fez, Édipo logo reinceta o processo de negação cegando-se, numa extremada tentativa de continuar a "não ver" os fatos.

Em Édipo em Colona, que Sófocles escreveu 20 anos depois de Édipo Rei, vamos encontrá-lo velho e cego, não mais fingindo não saber, mas no que Steiner vê como uma reação ainda mais patológica, caracterizada como uma negação psicótica, maníaca, da dor e da culpa. Édipo alega ter agido em legítima defesa. Com arrogância, coloca-se numa posição elevada. Não se vê mais como um criminoso abominado mas como um escolhido pelos deuses para ter um destino funesto que o eleva à condição de herói abençoado, onipotente, cujos restos mortais protegerão a cidade que o abrigar.

Em Édipo em Colona, ao rebater a repulsa que provoca nos anciões, diz Édipo: "Se eu pudesse falar agora de meu pai e minha mãe, perceberíeis que meus atos foram de fato muito mais sofridos que cometidos, e apenas por causa deles me escorraçais agora cheios de terror para longe de vós (sei disso muito bem). Seria eu então um criminoso nato, eu, que somente reagi a uma ofensa? Ainda que tivesse agido a sangue frio não poderíeis chamar-me de criminoso. Mas, no meu caso, cheguei até onde fui sem perceber, meus agressores, ao contrário queriam me destruir conscientemente."

Claro está que os "agressores" são seus pais que planejaram matá-lo.

Argumentando com Creonte, diz ainda Édipo: "(...) em mim não acharias sequer um pecado que me infamasse e me fizesse merecer a acusação de provocar todos os outros que por acaso cometi contra mim mesmo e contra meus parentes sem me aperceber. Agora, explica-me: se por meio do oráculo a voz de um deus disse a meu pai que um filho seu um dia o mataria, como poderias condenar-me por essa morte, justamente a mim, que ainda não tinha sequer nascido, que nenhum pai havia até então gerado, que nenhum útero de mãe já concebera? E, se nascido apenas para desventuras -como nasci - vi-me diante de meu pai, fui obrigado a enfrentá-lo e o matei sem ter a mínima noção do que fazia e sem saber também quem era a minha vítima, como alguém poderia agora condenar-me por um ato sabidamente involuntário?" (grifos meus).

Mais tarde, não atendendo aos pedidos do filho Polinices, Édipo rejeita violentamente os filhos e roga-lhes uma praga terrível. Diz ele: "Vai-te embora daqui, coberto de vergonha, filho sem pai, o mais perverso dos perversos, levando as maldições que chamo contra ti. Queiram os deuses que jamais tua lança possa vencer a terra que te viu nascer. Queiram eles também que nunca mais regresses a Argos rodeada de muitas colinas, e que, ferido pela mão de teu irmão ursupador, morras e ao mesmo tempo o mates!".

Édipo é culpado pelo assassinato do pai, pelo incesto e subsequente suicídio da mãe ou é a vítima dos desejos assassinos de seus pais, que planejaram e executaram um plano para matá-lo?

Essa questão, assim expressa em termos míticos referentes à tragédia grega, nos remete a um problema a meu ver ainda muito central em psicanálise - o que é mais importante e decisivo no acontecer psíquico, a realidade externa (o outro, o não-eu) ou a realidade interna (a pulsão). O Complexo de Édipo decorre do amadurecimento das pulsões, as quais seguindo uma dinâmica própria e estabelecendo relações de objeto adequadas levam inexoravelmente a tal configuração o, ou é ele decorrência da intersubjetividade da criança com os pais, com uma realidade que o antecede e que lhe determina os atos, ou seja, com desejo consciente e inconsciente dos pais, a fantasia dos pais, a cultura, a linguagem?

O problema da importância do realidade externa na formação do psiquismo e do inconsciente foi um problema que Freud teve de se defrontar desde o início de suas descobertas. Sabemos que a psicanálise advém do discurso das histéricas que, ao serem escutadas, passam a relatar vivências que serão entendidas como "traumáticas" e "reprimidas". "As histéricas sofrem de reminicênscias", dirá Freud, logo descobrindo a origem infantil e o cunho sexual destas vivências. Em outras palavras, as pacientes teriam sofrido sedução sexual durante a infância por parte de adultos (pais) de sua família. É o que se chama de "teoria da sedução", que Freud esboça para entender o mecanismo psíquico da formação destes sintomas.

É esse o momento inaugural da psicanálise, a vinculação primeira entre a sexualidade e o inconsciente.

Laplanche faz um acurado levantamento (3) do tortuoso trajeto percorrido por Freud em sua descoberta da importância da sexualidade na sintomatologia e na organização do inconsciente. Inicialmente Freud acredita na realidade fática dos relatos das paciente, elaborando sua "teoria da sedução". Logo oficialmente a abandona, ao descobrir serem estes relatos produto não da realidade vivida, mas de fantasias produzidas pelo relacionamento próximo e amoroso entre pais e filhos. É o "complexo de Édipo", que descobre ao analisar seus próprios sonhos, o que descreve pela primeira vez em "A Interpretação dos Sonhos".

Laplanche desenvolve um interessante argumento ao demonstrar como Freud abandona o complexo de Édipo imediatamente após tê-lo descoberto. Ao invés de centrar a sexualidade infantil em cima desta nova descoberta, o complexo de édipo, Freud passa a vê-la sob o prisma da "pulsão", conceito operacional que constrói e que terá amplos desdobramentos, dando origem a um viés dito "biologizante", "organicista" dentro do corpo teórico.

Laplanche mostra como Freud vai marginalmente usando o conceito de complexo de Édipo, gradualmente ligando a ele a sexualidade infantil , numa teorização lenta e tardia. E quando o faz, praticamente ignora a sexualidade dos pais. Em apenas um momento a afirma, quando liga a sedução não mais ao pai e sim à mãe, quando executar os cuidados corporais na criança. (4).

No que pese os equívocos e correções a que foi submetida a "teoria da sedução", ela corresponde a uma intuição que não pode ser perdida, que é aquela que reconhece a extraordinaria importância do Outro, dos pais, dos adultos, do externo, do não-eu, do estrangeiro, na constituição do sujeito, do psiquismo, da sexualidade, do inconsciente. É essa postura que Laplanche chama de vertente "copernicana" . Usando como modelo a descoberta de que a Terra gira em torno do Sol para enfatizar que a criança, em seu desamparo e fragilidade, necessária e inevitavelmente gravita em torno do adulto, da mãe, este primeiro outro fundamental, o que marca este "descentramento" estrutural do psiquismo humano, a instituição desta "outra cena" que é o inconsciente, este estranho familiar que nos habita.. (5)

Já a vertente "ptolomaica" é aquela que enfatiza a linha "biológizante" pulsional, que vê a fantasia e as relações de objeto como decorrência da maturação e desenvolvimento da pulsões, da libido, centrado no eu, no reservatório do Id. Ainda dentro do mesmo modelo, é como se o bebê fosse a Terra, em torno do que o universo gira.

Freud oscila permanentemene entre essas duas vertentes, seu conceito de "séries complementares" é uma evidência disso. Como Laplanche mostra exaustivamente, Freud nunca abandonou de fato a "teoria da sedução" entendida "latu sensu', o que pode ser detectado em muitos momentos de seus escritos, como, por exemplo, na sistemática procura dos fatos atrás das fantasias exibida no "Homem dos Lobos".

Considera Laplanche, entretanto, que o mais propriamente analítico é a posição "copernicana", apontando como muitas vezes ela parece ser reprimida pelo próprio Freud, como se a repressão se ligasse expressamente a qualquer evidência da sexualidade dos pais, o que - pode-se pensar - seria ainda um bloqueio de órdem edipiana. Nisso a posição "ptolomaica" favorece esta repressão, pois possibilita uma descrição da sexualidade centrada na criança, em sua vida pusional, independente da sexualidade dos pais.

Dando um exemplo desta repressão, Laplanche mostra como o seio, "objeto parcial" da fase oral amplamente descrito por Freud e muitos outros seguidores - especialmente Melanie Klein, que fez substanciais desdobramentos deste "objeto", descrevendo o "seio bom", "seio mau", "persecutório", etc - em nenhuma destas descrições é mencionado o fato de ser o seio um órgão erótico da mãe.

Ou seja, nestas descrições, a sexualidade está exclusivamente centrada no bebê, na criança e totalmente ignorada no adulto, no caso a mãe. Diz Laplanche: "Aqui vou evidentemente bem além de Freud. (...)o seio não é somente um órgão destinado a alimentar a criança, mas um órgão sexual, o que é perfeita e completamente escotomizado por Freud e depois de Freud. Nenhum texto, nenhuma alusão, mesmo de Freud, leva em conta a excitabilidade do seio feminino, não somente no aleitamento mas simplesmente na vida sexual da mulher" (grifos de Laplanche). (5)

Laplanche propõe uma "teoria da sedução generalizada", que é uma forma de manter melhor o "copernicanismo" da descoberta freudiana. Nela pretende corrigir a já referida falha de Freud em não levar em conta o inconsciente e a sexualidade dos pais na constituição do inconsciente dos filhos, de sua subjetividade. (4)

É preciso não esquecer que a estrutura edipiana está presente nos pais antes de se atualizar nos filhos. Se na descrição que Freud faz do complexo de édipo, a criança aparece como o "sedutor", o que "mata o pai" e "fica com a mãe" (digamos assim para simplificar) , ao estendermos a estrutura edipiana até os pais, vamos ter uma outra perspectiva, pois aí vemos que a criança passa de "sedutor" a "seduzido", a criança não é o "sujeito" e sim o "objeto" da sedução dos pais. Assim, "a verdade da sedução é portanto, a introdução na criança da fantasia dos pais, e, junto com esta, a introdução da estrutura em si, antes de que a reatualize (a criança) em sua fase fálica" .(3)

As vertentes "coperticanas" e "ptolomaicas" existentes em Freud, têem desdobramento nas diversas correntes teóricas pós-freudianas. A meu ver a linha lacaniana (da qual Laplanche não deixa de ser um grande tributário) é predominantemente "copernicana" e a kleiniana mais "ptolomaica". Isso fica evidente comparando a forma como Steiner e Lacan abordam as tragedias citadas.

Diz Steiner: "Em Édipo em Colona (...) ele não nega mais os fatos. É tarde demais para fingir que não havia matado seu pai e que não havia casado com sua mãe, mas ele nega a responsabilidade e a culpa, e alega que estes fatos foram erros cometidos contra ele e não por ele. Os deuses que o haviam escolhido para praticar os atos mais abomináveis, agora o haviam escolhido para ser um herói e elevá-lo a posição de divindade. (...) Este tipo de relação com a realidade baseia-se na retirada da verdade para a onipotência e é claramente muito diferente do fingir não ver.

Nesse refúgio descarta-se a realidade, e a organização em que se baseia está povoada por personagens onipotentes que reivindicam respeito por sua divindade e poder. (...) De fato, é a falta de vergonha que torna estas alianças com personagens onipotentes tão perigosas, já que as restrições normais sobre a destrutividade e a crueldade tornam-se inoperantes. Esse tipo de aliança surge quando algo vai radicalmente mal na relação com os objetos primários da família nuclear. São estas figuras, principalmente os pais, é claro, que formam o superego normal e, uma vez que ele resulta da introjeção de figuras humanas, o superego normal é humano, com esperanças e temores humanos comuns. Se esses objetos são destruidos, ou se as imagos parentais são distorcidas demais pela projeção do sadismo primitivo, desenvolver-se-á um superego arcaico, poderoso e cruel (Klein, 1932). Se a culpa se tornar insuportável, pode recorrer-se a ataque automutiladores ao ego perceptivo, e o dano resultante deixa uma incapacidade que somente pode ser encoberta pela onipotência, já que as figuras humanas comuns são fracas demais para ajudar".(grifos meus)

Como Steiner refere-se especificamente a Édipo neste trecho, suas idéias parecem ilustrar de forma muito clara a posição "ptolomaica". Diz ele que Édipo se refugia em identificações grandiosas e inumanas, foge para mecanismos onipotentes para escapar de uma culpa insuportável por ataques destrutivos e agressivos às imagos parentais, que ficam "distorcidas demais pela projeção do sadismo primitivo". Tudo decorreria do jogo pulsional de Édipo, a intensidade de suas pulsões agressivas e destrutivas. Em nenhum momento parece levar ele em conta as características dos pais de Édipo, que - como fomos informados - efetivamente queriam-no matar..

Estaria Édipo "distorcendo" as imagos paternas por "sadismo primitivo" ou sendo capaz de perceber claramente o sadismo dos pais que quase o matou? Estaria fazendo uma distorção por projeção de fantasias agressivas, ou estaria tendo uma percepção correta da agressão dos pais? O que Édipo não quer ver? Não toleraria ver seus próprios impulsos assassinos em relação aos pais ou não toleraria ver o terror de ter tido pais que queriam assassiná-lo? Seria dolorosa demais a abrumadora percepção de um destino terrível traçado não pelos deuses, mas pelo desejo parental?

Tal visão é inteiramente oposta a de Lacan ao interpretar Antígona. Diz Lacan}: " (...) Antígona leva até o limite a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte como tal. Esse desejo, ela o encarna. Reflitam bem nisso - o que é de seu desejo? Não deve ser ele o desejo do Outro e ligar-se ao desejo da mãe? O desejo da mãe, o texto faz a ele alusão, é a origem de tudo. O desejo da mãe é, ao mesmo tempo, o desejo fundador de toda a estrutura, aquele que fez vir a luz seus rebentos únicos, Eteócles, Policines, Antígona, Ismene, mas, ao mesmo tempo, é um desejo criminoso (...) A descendência da união incestuosa se desdobrou em dois irmãos, um que representa o poderio, o outro que representa o crime. Não há ninguém para assumir o crime senão Antígona. Entre os dois, Antígona escolhe ser pura e simplesmente a guardiã do ser criminoso como tal".

Posteriormente, comentando o que a análise pode efetivamente fazer pelo analisando, diz Lacan: "O que o sujeito conquista na análise (...) é na transferência alguma outra coisa que confere sua forma a tudo que vive - é sua própria lei, da qual, se posso assim dizer, o sujeito apura o escrutínio. Essa lei é, primeiramente, sempre aceitação de algo que começou a se articular antes dele nas gerações precedentes, e que é, propriamente falando, a Até. Essa Até, não é por não atingir sempre o trágico da Até de Antígona que ela seja menos parente da desgraça ". (Lacan explica a "Até" como um sofrimento inexprimível, no limite do suportável, uma "desgraça"estrutural, decorrente, a meu ver, da alienação no desejo do outro materno, aqui no caso de Antígona). (Grifos meus).

Lacan nos mostra como Antígona tem um firme desejo de morrer. Ela escolhe morrer, ela quer morrer. Antígona age em função do desejo da mãe, ela está inteiramente identificada com a mãe, o desejo da mãe (ou dos pais, poderíamos dizer) a domina e aliena, é decisivo no modo de ser de Antígona.

Aqui não falamos de superego sádico por ataque aos objetos bons, nem fuga de culpas por ataques destrutivos aos objetos primários. Vemos uma identificação com o desejo da mãe, uma alienação neste desejo. Vemos diretamente o desejo criminoso da mãe Jocasta, o desejo de comerter crimes. Desejo de ferir a lei, de desobedecê-la, o que a leva a querer num momento matar o filho, noutro a praticar o incesto.

Não é outra coisa o que faz Antígona. Ela quer desobedecer a lei, quer ser criminosa. No fundo, não estaria interessada em honrar o irmão morto, isso é apenas uma racionalização para realizar sua alienação no desejo criminoso da mãe, no desejo de afrontar a lei, no caso representada por um edito de Creonte.

Lacan sublinha que o que a análise pode dar ao sujeito não é a posse imaginária dos bens desejados, mas o conhecimento deste "algo que começou a se articular antes dele nas gerações precedentes, que é a "desgraça", o desejo dos pais que se encadeia através das gerações, nos determinando. É o conhecimento desta "lei que dá forma a tudo o que vive". Essa é a lei do desejo, fundada na incompletude radical do ser humano, que o faz se alienar no Outro, deixar-se pautar pelo desejo deste Outro, não assumir seu proprio desejo, numa identificação alienante.

Resumindo os dois enfoques, Steiner presume que é mais importante as pulsões de Édipo na organização de seu psiquismo e subsequente manejo da realidade, independente da realidade dos pais, da realidade externa. Lacan afirma a decisiva importância do externo, do Outro, do desejo inconsciente dos mãe. Antígona está alienada no desejo da mãe, totalmente identificada com ela, incapaz de se discriminar dela e assumir sua próprio vida, e é isso que é sua "até", sua desgraça, sua destruição. O mesmo pode ser dito de Édipo, que estaria alienado no desejo dos pais, que o viam como um assassino, assim determinando seu destino.

Mas é interessante como Steiner mostra como um bom analista transcende o engessamento teórico que as escolas necessariamente terminam por impor. Os aqui citados trechos das peças foram por ele selecionados, o que mostra uma acuidade muito grande, assim como termina ele por dizer algo que a rigor não fica muito coerente dentro da argumentação teórica que ele mesmo vinha desenvolvendo. Diz ele, ao lembrar a forma como Édipo amaldiçoa os filhos: "Assim, os dois filhos são amaldiçoados de um modo que lembra o ódio que Laio deve ter sentido, uma geração antes, por Édipo criança". Está ele dizendo então que a atitude de Édipo não depende da "distorção da imago paterna por sadismo primitivo" e faz um reconhecimento do sadismo do pai, que desejava matar o filho, reconhecendo assim a importância do externo e afastando-se da visão "ptolomaica".

Se lembrarmos que a procriação é um dos fatos mais "naturais" entre os animais, episódio que evidencia a maturidade orgânica, apogeu da vida biológica, vemos como o homem se distancia da natureza, da vida natural.

Como vemos nestas peças, o que desencadeia a tragédia é a profecia de que um casal - Laio e Jocasta - vai procriar e o filho é antevisto como uma ameaça, como um perigo de morte. "Teu filho será teu assassino", diz o oráculo, e o pai, mancomunado com a mãe, logo providencia a morte deste que viria para matá-lo.

Isso bem dá mostras de como a procriação no ser humano evidencia o descompasso entre a maturidade física orgânica e a realidade psíquica, pois é no momento da procriacão onde o ser humano pode se revelar mais frágil e assumir uma atitude completamente regressiva. Nesse momento, ele confunde o filho com o falo imaginário desejado, do qual não pode se separar agora que finalmente o alcançou (o que seria uma fantasia mais visível na mulher), ou (no homem) é vivido como o nascimento de mais um irmão, objeto de extremado ódio, tal como relatei em caso clinico anteriormente, um homem que fantasiava matar o filho por estar revivendo, com seu nascimento, as dores do nascimento de seu irmão.(6)

Juntanto as três tragédias, temos uma evidência da importância do desejo e da fantasia dos pais sobre sua descendência, efeitos que vão se desdobrando por três gerações, numa evolução de uma patologia familiar ou transgeracional. Laio e Jocasta, ao desejarem matar o filho, por vê-lo como um assassino, terminam por determinar o destino de assassino de Édipo, ou seja, criam um filho assassino que, por sua vez, produz filhos assassinos e filhas suicidas. (Eteócles e Polinices se matam mutuamente, Antígona se mata e Ismene é assassinada).

A idéia aqui não é de supersimplificar e reduzir a complexidade do complexo de édipo, mas a ele acrescentar uma determinante da maior relevância, o desejo inconsciente dos pais.

É interessante pensar porque Freud nunca analisou as três tragédias como um todo, centrando-se apenas no Édipo Rei.. Podemos pensar que ao fazer esta escolha, Freud agiu de forma "ptolomaica". O juntar as tragédias e vê-las como um conjunto, como faço agora, seria enfatizar mais o aspecto "copernicano".

Isso leva a um problema que me parece um outro escotoma teórico-prático semelhante àquele citado antes, relacionado com a sexualidade dos pais. Se de fato a forma "copernicana" é a mais importante em psicanálisee, pela definitiva importância do Outro na constituição do sujeito, para sermos coerentes, não deveríamos estudar mais este "Outro" que se nos é oferecido como a familia? Há uma curiosa omissão da psicanálise a respeito da importância da família como objeto de estudo. Na formação do analista a questão é inexistente. Ela aparece como marginal na produção

de alguns analistas, desde a inaugural obra de Nathan Ackerman. Aparentemente o campo do estudo da família foi deixado para outras linhas abordagens teóricas que não a psicanalítica.

Como diz David: "Falta um elo de cadeia na reflexão freudiana sobre a "cultura", que é o problema da descendência. (...) é preciso notar que a passagem de uma teoria do indivíduo para uma teoria da sociedade (em "Mal Estar na Civilização") deixa de lado a questão do parentesco".(7) Em outras palavras, Freud não ousa tocar na família.

Continuariamos a agir como Freud ao tratar Dora, ignorando toda uma complicada situação familiar, que poderia ser beneficiada com uma abordagem analítica? Que ele tenha agido assim por não

dispor naquele momento de arsenal terapeutico operacional para mudar o foco da abordagem, é compreensível. Que nós continuemos agindo assim, não o é..

O estudo analítico da família mais do que nunca se impõe, na medida em que vivemos um momento histórico onde a realidade oferece possibilidades de organização familiar antes impensáveis. O número crescente de divórcio e dos novos casamentos, o uso cada vez maior e bem sucedido das inseminações artificiais juntamente com o uso de "barriga de aluguel" criam configurações relacionais novas e inesperadas. O progressivo reconhecimento legal das uniões homossexuais cria a postulação da adoção de filhos. São situações novas, complexas, que a psicanálise não deveria ignorar.

Recentemente li no jornal (8) o artigo "Escolha seu bebê - laboratório de famílias", matéria sobre a criação de famílias ou gerações em laboratórios, tônica dos anúncios na Internet de clínicas de fertilidade e empresas de gestação de substituição (aluguel de barriga). Dizia Gail Taylor, uma líder lésbica e mãe de uma menina por inseminação artificial, fundadora e presidente da clinica "Growing Generation", que organiza a "produção" de crianças, se é que podemos dizer assim, nas mais variadas condições. Questionando porque somente os homossexuais deveriam ter

avaliada a sua maturidade para adotarem uma crianças, disse: "Muitos casais gays que escolhem ser pais ou mães são sempre questionados quanto ao porquê de sua decisão. Mas a maioria dos casais heterossexuais não o é. Imagine como seria o nosso mundo se houvesse uma avaliação prévia de qualquer ser humano antes de ele ser considerado qualificado para ser pai ou mãe As crianças do mundo todo passariam por muito menos sofrimento e abusos. Uma vida de amor, dedicação, alegria e apoio é o elemento chave para se criar uma família. Por que o mesmo não deveria ser feito com os heterossexuais?"

A questão, que para muitos talvez pode parecer descabida, faz muito sentido, pois quanto sofrimento não seria evitado preventivamente se determinados casais tivessem consciencia de seus problemas pessoais antes de projetá-los massivamente nos filhos?

São questões complexas e difíceis, que necessitam da reflexão de todos.

Sergio Telles
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Bibiografia

1) Steiner, John - "Dois tipos de organização patológica em 'Edipo Rei' e em 'Édipo em Colona' - in Refúgios Psíqucos - Imago - Rio - 1997
2) Lacan, Jacques - O Seminário - Livro 7 - A Ética da Psicanálise - Jorge Zahar Editor - Rio - 1991
3) Laplanche, Jean - La Sexualidad - Edicciones Nueva Visión - Buenos Aires - 1984
4) Laplanche, Jean - Teoria da Sedução Generalizada e outros ensaios - Artes Médicas - Porto Alegre - 1988
5) Laplanche, Jean - A Revolução Copernicana Inacabada - publicado em "Jean Laplanche em São Paulo" - publicação interna do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae - tradução do ensaio "La Revolucion copernicienne inachevée" do livro homônimo publicado pela Ed. Aubier - Paris - 1992}
6) Telles, Sergio - O papel do analista no processo analítico - in "Freud & Jung - 90 anos de encontros e desencontros" - Junguiana 14 - São Paulo - 1996 -
7) David, Pierre - Psicanálise e Família - Livraria Martins Fontes ed. - Lisboa - 1977 -
8) Folha de São Paulo - caderno MAIS - 25/7/99


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