O ÚLTIMO ALMODÓVAR – TUDO SOBRE MINHA MÃE

(E NADA SOBRE MEU PAI)

 

  Sérgio Telles

 

Não é possível abordar analíticamente o último filme de Almodóvar sem antes fazer menção a suas grandes qualidades artísticas. Todos que  temos seguido seus filmes, não podemos deixar de reconhecer em TUDO SOBRE MINHA MÃE a expressão de sua plena maturidade como criador.

 

A beleza formal dos enquadramentos, dos cortes, dos cenários cuidadosamente escolhidos, a perfeita direção dos atores, a propriedade com que maneja o tom dramático sem resvalar para o sentimentalismo barato, tudo surpreende a quem estava acostumado com seus excessos, com a caracterização um tanto caricatural que costumava dar a seus personagens, com o forte apelo ao kitsch mais espalhafatoso. O elaborado roteiro, por sua vez, tem uma riqueza intertextual, na medida em que dialoga com o filme ALL ABOUT EVE, de Joseph L.Mankiewicz e com a peça UM BONDE CHAMADO DESEJO, de Tennessee Williams. Suas histórias se interpenetram, criando um jogo de referências, organizando – como se explicita nos letreiros que aparecem no final da apresentação – uma homenagem ao teatro, ao cinema, à profissão de ator, a eles que através do fictício, do irreal, da representação, produzem uma verdade que de outra maneira não nos atingiria.

 

Grosso modo, o filme gira em torno da morte de um adolescente fascinado por uma grande atriz. No dia do seu aniversário de 17 anos, ele pede à mãe para ir ver uma famosa atriz no papel de Blanche Dubois, de UM BONDE CHAMADO DESEJO. Ao perseguí-la em busca de seu autógrafo, morre atropelado. Algum tempo depois, sua mãe faz uma viagem de Madrid a Barcelona para reencontrar o pai do filho morto, que até então ignorava a existência deste filho. Nesta viagem, envolve-se com a tal atriz que está levando a mesma peça agora em Barcelona e, na procura do pai de seu filho, reencontra um amigo transexual. Com ele procura uma instituição religiosa que dá assistência a desamparados, onde conhece uma freirinha, que se revelará engravidada por um outro transsexual, que vem a ser a pessoa que  procurava.

 

Logo tomamos conhecimento da grande falta que o pai fazia para o adolescente. Ele escreve em seu diário tocantes declarações neste sentido, afirmando que algo de muito importante faltava em sua vida, tal como faltava a metade de todos os retratos onde a mãe eliminara a presença do pai. Poucos minutos antes de morrer, ele diz diretamente para a mãe que queria saber tudo sobre o pai, coisa que a mãe promete fazer logo que cheguem em casa, promessa que não poderá cumprir.

 

Uma primeira leitura mostraria o filme como a descrição do trabalho de luto no qual a mãe se vê mergulhada: a elaboração da dor frente a morte do filho, dor possivelmente ampliada pela culpa de não ter percebido o que soubera somente pouco antes de sua morte – o quanto ele sofria pela ausência de informações sobre o pai, sofrimento que ela inadvertidamente lhe tinha infrigido. Sua viagem para Barcelona teria uma conotação reparatória, por sentir necessidade de corrigir outro erro, pois assim como não tinha falado para o filho sobre o pai, também deixara o pai na ignorância deste filho.

 

Uma outra leitura enfocaria necessariamente os problemas que giram em torno da sexualidade, das diferenças de gênero sexual. Neste ponto é muito curioso a forma como Almodóvar caracteriza o personagem do filho adolescente , pois ela está rigorosamente conforme a teoria psicanalítica, ao mostrar a importância do pai como representante da Lei, que impõe o corte da relação incestuosa com a mãe e como modelo de identificação para o filho, elementos fundamentais para a constituição adequada do sujeito e sua definição de gênero sexual.

 

O jovem adolescente se ressente da falta de pai, diz que a mãe não pode privá-lo do “direito“ de conhecer o pai, seja ele quem for. Como um eco do ressentimento do adolescente, há no filme inteiro uma ausência de figuras paternas. Os “pais” que ali aparecem são figuras muito inconsistentes ou inadequadas, como o velho pai de Rosa, totalmente demenciado; como Kowalski, o brutal e violento personagem da peça de Tennessee Williams ou o próprio pai transexual.

 

É muito significativo que o adolescente morra no noite de seu 17º aniversário, quando finalmente pode dizer à mãe de seu desejo de conhecer o pai, da falta que este lhe fazia. Que ele morra antes de tomar conhecimento da figura do pai e a forma como isso se dá – correndo atrás da grande diva, da grande atriz por quem é fascinado - mostra a impossibilidade de ter acesso à castração simbólica, por estar inteiramente enredado, fixado e fundido com a mãe , uma Mãe da qual ele é o falo – consequentemente da qual não pode se separar sem morrer.  Assim, sua paixão pela atriz seria um deslocamento de sua ligação narcísica com a mãe.

 

Sua morte pode ser entendida como representação substituta da impossibilidade de ter ele acesso à própria subjetividade e masculinidade, impossibilidade decorrente da ausência da figura paterna com a qual – como dissemos há pouco - poderia se identificar, e que lhe tornaria possível romper a ligação narcísica com a mãe.

 

Lembremos que a mãe manteve-se casada como um marido (o pai do adolescente) quando este já tinha um par de tetas, ou seja, depois das intervenções que o tinham transformado num transexual. Isso dá evidência de dificuldades da mãe em lidar com sua própria sexualidade e consequente castração simbólica.

 

Se as figuras masculinas são frágeis e inconsistentes, incapazes de serem suportes identificatórios, as femininas são o oposto. O filme é totalmente dominado pelas fortes mulheres fálicas. São mulheres fortes, dominantes, agressivas, decididas, bissexuais. De certa forma, também figuras pouco aptas para suportes identificatórios.

 

Há um certo enigma no próprio título do filme, TUDO SOBRE MINHA MÃE.

Explicitamente é uma das muitas citações que Almodovar faz do ALL ABOUT EVE (TUDO SOBRE EVA), o filme que o adolescente e a mãe estão vendo no inicio.Também o filme de Mankiewscz tem um título enganador, pois ao invés do que ele permite supor, não é Eva, sobre quem saberíamos “tudo”, o personagem central. Apesar de ser ela a traidora que toma o lugar de uma grande atriz, o personagem central é a grande atriz Margot Channing, interpretado por Bette Davis.

Quem seria o personagem principal do filme de Almodovar? Ã primeira vista seria a mãe do adolescente, pois é quem comanda as ações do enredo. Mas ela não se codaduna com o título, o TUDO SOBRE MINHA MÃE. Ele implica num sujeito, em alguém que está falando de sua própria mãe, e a mãe do adolescente não tem esta preocupação, assim como nenhum outro personagem.

Só nos resta o próprio adolescente, ainda mais que a única frase dita no filme que se assemelha ao título é seu pedido à mãe para que ela lhe diga “tudo sobre meu pai”. Haveria assim uma sutil ironia, pois ele que queria saber “tudo sobre meu pai”, dele nada soube, mas acreditava talvez saber “tudo sobre minha mãe”, o que também não era verdade...

Isso nos permite pensar que o personagem principal do filme, aquele em função de quem a trama se organiza, é exatamente o adolescente morto. Ele é o sujeito do título. Assim o filme de Almodovar, como o de Mankiewicz, tem um certo descentramento.

 

É interessante analisarmos o tom dramático mantido por Almodovar. Por um lado, vê-se a morte, a lamentação, o luto, que pensamos estarem ligados à impossibilidade da castração simbólica que tornaria possível a aceitação da perda da onipotência bissexual infantil que levaria – por sua vez - a uma uma identificação de gênero condizente com o próprio sexo biológico. Ao mesmo tempo, sem negar os impasses que disso advém, vemos uma certa afirmação positiva da bissexualidade - quer seja nos momentos homossexuais dos personagens, quer seja na própria situação transexual que joga papel importante na trama

 

Como todo esse entrecho teoricamente gira em torno da problemática do falo, podemos levantar uma interpretação para a menção aos transplantes de órgãos doados por moribundos, com o qual o filme começa. Mais evidentemente, é uma clara menção ao fluir da vida e da morte - enquanto uns morrem, a outros é dada uma segunda chance de viver. Uma interpretação mais ousada poderia pensar que a presença dos doadores e receptores de órgãos faça referencia à fantasias de negação da castração, sendo o falo um órgão então transplantável e implantável ao bel-prazer de cada um.

 

Importante enfatizar a unânime aceitação e aclamação deste filme de Almodovar, inclusive na própria conservadora e machista Espanha. Isso é claramente um sinal dos tempos a indicar importantes mudanças na moralidade sexual social, uma maior abertura da sociedade frente a modalidades sexuais que até há muito pouco tempo eram completamente reprimidas, ignoradas, negadas, suprimidas, e até mesmo inexistentes, pois a endocrinologia e as técnicas cirúrgicas tornaram possíveis intervenções no próprio corpo até recentemente inconcebíveis.

 

Como a soar o grave  tom da compulsão a repetição, o filme termina com a mãe agora tomando conta do filho da freirinha morta. Mais um filho criado pelas mulheres, sem figuras paternas.


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