Psicanálise e Hospital Geral: Algumas considerações sobre o serviço de psicologiada área cirúrgica do Hospital Universitário Antonio Pedro*

José Henrique Valentim e Paulo Roberto Mattos

 

Ao se falar em atendimento psicanalítico, o primeiro delineamento que surge é de um processo realizado em um espaço reservado, em que toda a estrutura, ou seja, o "setting analítico", é constituída por um ambiente acolhedor, o divã, o tempo da sessão e tudo o mais que favoreça ao tratamento. Este, quando restrito ao consultório, desenvolve-se a partir do que é trazido pelo paciente em seu discurso. O sujeito procura um analista levando sua história de vida e seus questionamentos acerca de seus sintomas. Normalmente, não se tem como questão a doença orgânica, nem se trabalha, rotineiramente, com atravessamentos produzidos a partir do corpo enfermo.

Mesmo quando um sujeito procura uma análise e traz consigo uma dor, esta, quase sempre, refere-se à sua história, sem, necessariamente, ter essa dor substrato no corpo biológico. Isto pode ser ilustrado quando, por exemplo, recebemos um paciente que se queixa de uma dor no peito, podendo ser constatado, posteriormente, que esta dor não se relaciona com nenhuma disfunção orgânica; tal dor pode ser vista como uma expressão de angústia.

Porém, não é incomum a existência de casos em que o sujeito procura uma análise por estar em um período de crise, marcado, notadamente, por uma doença grave, que interfere na sua trajetória de vida. Desta forma, vislumbramos um trabalho envolvendo situações orgânicas que afetam a trajetória do sujeito, acarretando uma produção sintomática. Entretanto, cumpre ressaltar que não compartilhamos com uma visão sincrônica no relacionamento psiquismo-corpo. Neste sentido, trilhamos caminho diverso daquele preconizado por determinadas abordagens psicossomáticas.

Entendemos que corpo e mente interagem na produção de uma unidade bio-psíquico-social, porém desvinculada de uma perspectiva consensual. Em outras palavras: nem todo sofrimento orgânico tem uma contrapartida psíquica em igual nível e teor, o mesmo acontecendo no processo inverso, ressalvando-se – e isto mereceria toda uma discussão à parte (Valentim, 1996) que o ser humano troca, de bom grado, um sofrimento psíquico por uma dor orgânica.

Transportando estas considerações para o trabalho no Hospital Geral; vemos que este se reveste de certas peculiaridades. Muitas questões são levantadas na transposição do "setting analítico" para um espaço marcado pela prevalência do discurso médico (Clavreul, 1983) e por entraves institucionais. Diante destes pontos, muitos profissionais "psi" consideram a prática psicológica neste espaço, fundamentada na psicanálise, alvo de restrições e, na maioria das vezes, marcada pela impossibilidade, dadas as condições institucionais.

Todavia, desenvolver uma prática fundamentada na psicanálise não significa transpor, "ipsis literis", o dispositivo analítico para o Hospital Geral. A pura implementação da psicanálise sem avaliar o espaço em que se pretende atuar e sem uma revisão do próprio contexto analítico incorreria em um reducionismo do próprio saber psicanalítico.

O objetivo maior de nosso trabalho é buscar investigar e definir os limites e possibilidades de uma prática psicológica em hospital geral, referenciada no discurso psicanalítico; e, assim, criar possibilidades clínicas do sujeito engendrar alternativas ao seu viver. Nesse sentido, não estamos nos referindo, aqui, a um processo analítico nos moldes daquele que se desenvolve no setting analítico, conforme usualmente o conhecemos.

Cremos ser possível produzir efeitos de análise, ou seja, intervenções e pontuações que coloquem o sujeito frente a possibilidades outras de repetição, onde os fatores constituintes de seu projeto de sofrimento, capitaneados por seu sintoma, quedem, por se tornarem fragilizados, e se permitam ao confronto que redunde em novas formas deste sujeito pavimentar a trajetória de seu viver, não sendo mesmo da ordem do improvável a sua inserção num processo analítico stricto sensu na medida em que se evidencia os contornos de seus sintomas.

Modus extensus é possível situar o trabalho psicanalítico em hospital geral num interregno que está para além do que Lacan (Quinet, 1989) denomina de entrevistas preliminares, podendo expandir-se até um quase emparelhamento com o que usualmente se entende por análise, separados que para sempre estão por certas condições impensáveis de se reproduzirem no turações/reestruturações na dinâmica psíquica, à semelhança da própria intervenção "psi", tendo, entretanto, como diferencial essencial o direcionamento imposto.

Enquanto a intervenção psi está atrelada a um projeto de tratamento, a uma "cura" – aspas pela particularidade que este termo assume em psicanálise; aquelas produzidas pela vida estão, ao menos numa perspectiva lógico-racional, submetidas ao signo do acaso. Assim, nosso interesse é atentar para esta possibilidade – da história do indivíduo ter sua trajetória referenciada em intervenções do acaso – com o objetivo de registrar e intervir em relação às implicações psicológicas emergentes e oferecer um espaço de reflexão para as equipes de saúde, no sentido de potencializar e singularizar suas ações terapêuticas.

Neste contexto, nos deparamos com entraves institucionais que podem ir da falta de vagas em uma enfermaria ao cancelamento de uma cirurgia por questões outras que não sejam relacionadas ao estado clínico do paciente. Além destas vicissitudes do trabalho institucional, cabe lembrar que os atendimentos ocorrem na própria estrutura de uma enfermaria, em que vários leitos são dispostos um ao lado do outro, de modo que um atendimento, freqüentemente, pode, por exemplo, ser marcado pela interferência do paciente do leito ao lado.

Além disso, deve-se registrar o fato de um atendimento poder ser interrompido a qualquer tempo em função de o paciente precisar se retirar para fazer um exame, um curativo ou até mesmo tomar um remédio. Possivelmente, mais crucial do que esses aspectos deve-se considerar que o contexto hospitalar congrega a existência de um discurso que, em sua essência, se antagoniza com o discurso psicanalítico acarretando em impasses de difícil manejo.

Torna-se importante, então, destacar que o trabalho em questão referencia-se numa perspectiva teórico-ética bem definida. Há uma aposta no sentido de que "...uma intervenção se faz necessária sempre que, a partir das situações orgânicas de intervenção e/ou de tratamento, se abre uma questão que tem impacto sobre o projeto de vida do sujeito e acarreta implicações a nível da sua estrutura psíquica." (Mattos et alii. 1991) Assim, abre-se um novo campo de possibilidades para o ingresso do profissional "psi" no Hospital Geral, havendo, por conseguinte, uma ampliação dos limites de sustentação da clínica enquanto direcionada para circunstâncias que inscrevem a dimensão insustentável do real.

Em decorrência, a clínica em Hospital Geral coloca questões para a própria clínica psicanalítica, pensada de forma padronizada. O Hospital Geral se constitui em um espaço onde trabalha-se com o corpo biológico; porém, nossa prática nos mostra que o sofrimento do corpo é atravessado por uma outra dimensão, tornando a situação que se apresenta a cada paciente bastante singular.

A partir do momento em que consideramos que algo de ordem circunstancial pode acarretar uma interferência no corpo biológico ou que um corpo debilitado pode acarretar uma série de questões sobre o que foi e o que é a própria vida do sujeito, é que um novo campo de escuta é passível de ser sustentado.

A saída do psicólogo de um lugar reservado para ingressar em um Hospital Geral, marcado por questões institucionais e onde o discurso médico prevalece, somente se sustenta pela aposta de que um corpo enfermo deve e pode ser ouvido.

A estratégia de intervenção se inicia após a internação do paciente, que se interna no hospital objetivando a cura para sua doença orgânica. Esta questão é fundamental. Neste sentido, observamos que a demanda do paciente é física, ela em nenhum momento é remetida ao psicólogo. Portanto, a produção seletiva de demanda é uma função da visita e das entrevistas preliminares que realizamos, independentemente da solicitação da equipe médica, as quais são analisadas de acordo com os atendimentos, e da forma como estes se configuram em relação à transferência do paciente para o psicólogo.

Um outro fator de importância é a questão do tempo. No atendimento clínico restrito ao contexto de consultório, mesmo que não se tenha controle da assiduidade do paciente ao tratamento, parte-se sempre da idéia de que haverá tempo para se realizar o que objetivamos. A instituição hospitalar redimensiona esta questão, visto que o tempo é delimitado por uma série de fatores externos a nós: alta do paciente, transferência para outro hospital, óbito, interferências de diversas espécies.

Por outro lado, ao ingressarmos em um Hospital Geral, deparamo-nos com o discurso médico que intenta dar conta do corpo biológico. É evidente que o médico detém um saber que lhe autoriza diagnosticar e tratar o paciente, seja clinica ou cirurgicamente, e não cabe aos psicólogos tomar para si tal tarefa. Nosso trabalho é o de investigar a articulação entre a dimensão psíquica do sujeito com algo que se inscreve em seu corpo, oferecendo um trabalho de escuta que nos permita, se for necessário, concorrer para o reposicionamento do sujeito frente a questões que o interpelam de maneira decisiva.

A área cirúrgica se constitui, também, em um lugar em que ocorre a manipulação efetiva, por parte da equipe de saúde, do corpo biológico, acarretando a produção de re-significações, decorrentes da doença ou do próprio ato médico. Não nos passa desapercebida a importância de se atentar para a análise das formas passíveis de sustentação da ação médica. Muitas vezes, a demanda da equipe médica, direcionada aos psicólogos, busca uma resposta estabilizadora capaz de silenciar o que se inscreve no campo da diferença.

Contudo, não nos cabe responder a essa demanda, no sentido de controlar o que possa emergir como entrave ao tratamento proposto, que pode, até mesmo, ser algo presente na própria relação médico-paciente. É neste campo que se explicita algo que escapa ao saber médico e funciona como empecilho para execução da cura orgânica. Esta, em nosso entender, vem de encontro com a possibilidade de permanência de uma vida, por outro lado, o viver está para além da necessidade. Lá, onde ele se articula, a lógica vigente se reporta outra condição, a condição do desejo, desde já inatingível para o sujeito na medida que se constitui no círculo do outro.

Outro ponto pertinente em nosso trabalho refere-se ao fato do hospital geral ser identificado não somente como um lugar de doenças e tratamentos, mas também como um lugar onde a morte se faz presente de forma assídua. Uma doença, seja ela grave ou não, pode colocar o sujeito diante da constatação da sua própria finitude. O impacto causado pela confrontação com a questão da transitoriedade pode ter como resultado a antecipação de um quadro orgânico ainda não consumado; isto se verifica, por exemplo, nas desistências prematuras de tratamentos.

A morte, enquanto degradação da matéria viva, não tem representante psíquico, não transita como tal dentro do universo humano. Irá transitar dentro de um conjunto de símbolos e não sendo a morte representável, a constatação da limitação da própria existência é vivenciada segundo a história de cada um, entrando assim em questão a própria singularização do sujeito.

O tratar comporta em si mesmo certas limitações, a que o próprio saber sobre o corpo orgânico se submete. A morte se encontra em nossas vidas e ela não deve ser antecipada. Enquanto o sujeito puder falar, escutá-lo é testemunhar que a vida persiste, pois ao falar, a história do sujeito se desenvolve para além do corpo biológico.

É sobre esta perspectiva que o Projeto de Serviço de Psicologia da Área Cirúrgica vem desenvolvendo seu trabalho, rompendo com uma vertente assistencialista e/ou agenciadora da relação médico-paciente, avaliando, constantemente, a possibilidade de fundamentar sua prática no discurso psicanalítico, e participando, simultaneamente, das especificidades da vida institucional.

.Propomos, assim, colocar permanentemente em discussão uma prática que, referenciada no discurso psicanalítico, pretende descortinar possibilidades de ação clínica em um contexto radicalmente diferenciado daquele que, historicamente, se apresenta em nosso cotidiano.

Isto de forma que, pela disposição criativa, se possa constituir uma prática psicológica atrelada a uma identidade consistente e singular, forjada menos em preceitos derivados de atravessamentos, em nível de realidade psíquica, decorrentes do entendimento equivocado de sofrimentos de origem orgânica e suas repercussões junto às vicissitudes inerentes a um funcionamento mais amplo dessa realidade, em que o drama que se encena no hospital geral é um recorte a mais, quase sempre de extrema importância, mas que não se confunde com ela. Entendemos que somente uma avaliação exata desses dimensionamentos pode permitir articular um lugar possível e original para o trabalho psicológico em hospital geral.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. "Sobre a transitoriedade" (1915). ESB, Vol. XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1986.

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MATTOS, P.; VALENTIM, J H.; FEITOZA, F. "Organização e dinâmica do serviço de atendimento psicológico a paciente da área cirúrgica do Hospital Universitário Antônio Pedro", in Cadernos do ICHF, no 27, 1990.

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"A sombra da morte" (Mimeo) 1988.

QUINET, A. As 4 + 1 condições de análise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989.

SANTOS, A. P.; BARREIRA, W. A.; COSTA, Z. G. "Considerações sobre uma prática psicológica em Hospital Geral". I Congresso de Psicologia de Guarulhos. Setembro de 1997.

VALENTIM, J. H. "Demanda orgânica x Demanda psicológica". Comunicação apresentada no III Congresso Brasileiro de Psicologia Hospitalar. Belo Horizonte, maio de 1996.

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