Do CAMPO FREUDIANO ao CAMPO LACANIANO
Vera Pollo e Eliane Schermann
No meio psicanalítico contemporâneo não se
questiona mais a forma como Lacan entrou na psicanálise. O
retorno a Freud se fazia necessário. Ainda não se
completara o intervalo de duas décadas após a morte do inventor
da psicanálise, encontrávamo-nos apenas no início dos
anos cinqüenta e o campo analítico afastava-se cada vez mais da
práxis freudiana. O que se perdera então? Entre
outras coisas, perdera-se o que Lacan havia chamado de o
vigor das primeiras observações clínicas ou a clínica
do um a um.
Em conseqüência disso, os psicanalistas
entravam pelos caminhos teóricos desviantes da teoria das
relações de objeto, da two bodys psychology
e tantos outros. Porém nada do que então emergia era comparável
ao rigor e à dignidade que Freud soubera dar, em sua
metapsicologia, aos conceitos de inconsciente, transferência,
pulsão e repetição. A contratransferência estava em
voga e, embora ela representasse para alguns uma forma de indagar
a função do desejo do analista na direção do tratamento, os
finais de análise eram concebidos predominantemente em termos de
identificação com o analista, seu supereu mais tolerante ou seu
eu mais adaptado. Perdera-se, pôde dizer Lacan, a lâmina
cortante da verdade freudiana, o desejo de se obter a
diferença máxima entre o significante e o significado.
Se a psicanálise já estava lá, instalada
no mundo quando Lacan chegou, isso se devia, entre outros fatores,
ao desejo que levara Freud a fundar a Associação Internacional:
o de resguardar sua invenção e assegurar-lhe uma continuidade
para-além de sua pessoa. A International
Psychoanalytical Association (IPA), no entanto,
tornara-se menos um centro de transmissão da doutrina freudiana
do que uma coleção de grupos ocupados em padronizar a técnica,
prodigalizar reconhecimentos e sustentar líderes. Apoiando-se
em princípios de ordem carismática, os diferentes grupos
condenavam seus membros a encobrir o meio-dizer da verdade
através de normas e regras necessariamente ideais.
É possível que a IPA tenha tido que pagar
pelo pecado original de Freud, conforme interpretou
Lacan em determinado momento. O inventor da psicanálise não pôde
fazer a sua própria análise, legando-nos o inanalisável do
pai real. Se não lhe foi possível aceitar um desejo
desapiedado e reconhecer-se numa posição para-além do
pai, como ele próprio o testemunhou em seu Distúrbio
de memória na Acrópole(1936), Freud, por outro lado,
jamais compactuou com as elaborações teóricas que se afastavam
da hipótese do inconsciente e contradiziam sua própria clínica,
não lhe importando se estas vinham ou não da parte de alguém
por quem tivesse grande estima e respeito.
Pois
bem, na primeira metade da década de cinqüenta, os seminários
de Lacan na Sociedade Psicanalítica de Paris eram os únicos que
ainda se dedicavam exclusivamente ao estudo dos textos
freudianos. Dentro da IPA, Lacan se opunha aos desvios teóricos
que ela praticava e à ilusão de uma formação analítica
completa, aos moldes de uma licenciatura universitária. Em
1964, no ato de fundação da École Freudienne de Paris,
ele salienta que a estrutura de uma Escola de psicanálise não
poderia ser uma hierarquia de cabeça para baixo, mas deveria
implicar numa organização fundada na possibilidade da permutação.
Para tanto, ele propõe nessa ocasião uma Escola subdividida em
três Seções:
1-Seção de Psicanálise Pura (práxis
e doutrina da psicanálise propriamente dita, que não é outra
coisa senão a psicanálise didática);
2-Seção de Psicanálise Aplicada (o
que quer dizer: de terapêutica e clínica médica);
3-Seção de Inventário do Campo
Freudiano (exposição e crítica das publicações que se
pretendem autorizadas).
Tratava-se, em suas palavras, de descobrir
uma solução para os impasses dos grupos e reconquistar o
Campo Freudiano. E como conceber este campo? Inseparável dos
grupos que o habitam, sem os quais seria apenas um conjunto
vazio, a organização do Campo Freudiano terá necessariamente
se afastado da orientação de Freud sempre que dispensar a
interrogação sobre a formação do analista e sobre os finais
de análise. A produção de analistas é um fato indiscutível,
mas não podemos nos esquecer, como lembrou Lacan em sua Conferência
na Universidade de Yale em 24 de novembro de
1975, que fatum vem de fari,
a mesma raíz de infans, e se define
como a cristalização das primeiras palavras, cristalização
material do que nos condiciona como seres humanos. Além
disso, a repetição não é um simples recomeço, mas idêntica
ao traço unário: o elemento da escrita que comemora uma
irrupção de gozo. Em psicanálise, nenhum retorno exclui
o advento de um gozo, e é preciso saber ler o que se
apresenta sob uma nova forma. Se Lacan reconheceu ter extraído
do texto freudiano seu traço unário, formulando-o nos aforismas
com que hoje trabalhamos, podemos dizer então que o Campo
Freudiano não tem outra consistência senão a dos textos de
Freud. E, vale lembrar, como o fez recentemente Colette
Soler, que Lacan foi o primeiro a empregar o termo campo,
ao fundar em 1980 a Causa Freudiana.
Quase cem anos nos separam da criação da
primeira Associação Internacional em 1910.
Estamos na aurora de um novo século, e somos hoje não apenas os
herdeiros da invenção de Freud, mas também do ensino de Lacan.
Entre nós encontram-se ainda alguns que foram seus
companheiros de vida e de trabalho pela psicanálise, outros,
seus analisantes e alunos diretos, porém representamos no
conjunto sobretudo uma estirpe de leitores. Aos moldes do
que se passou com o texto de Freud, o ensino de Lacan atravessou
fronteiras de língua, distâncias geográficas e já se pode
dizer que ele vem atravessando gerações.
Em 1980, Lacan lançava em Caracas uma aposta
de futuro, talvez até mesmo um desafio: eu sou freudiano,
vocês, se quiserem, sejam lacanianos! Ora, se é de fato
impossível a um psicanalista lacaniano não ser simultaneamente
freudiano, não se pode negar, por outro lado, que a práxis
lacaniana dispõe de ferramentas próprias, e implica, desse modo,
numa concepção própria de formação analítica e num modo até
então inédito de agrupamento de analistas.
Em 9 de outubro de 1967, ao lançar sua Proposição
sobre o psicanalista da Escola, Lacan abordava as noções
de garantia e de autorização do analista, visando operar a
disjunção entre o gradus analítico e a
hierarquia necessária à organização. O analista deve ter
algum saber, mas é preciso que não o transforme em nenhum poder,
diria ele por volta dessa ocasião. Tendo afirmado que a
raiz da psicanálise em extensão deve ser buscada na experiência
da psicanálise em intensão, pois é nela que se dá a passagem
de analisante a analista, a oferta institucional do dispositivo
do passe é convocação ao analista para que a demonstre,
apresente provas de uma tal passagem. A comunidade analítica de
Escola lhe demanda então que testemunhe sobre sua própria análise;
se possível, que ensine a seus pares como lhe sucedeu verificar
a hipótese do inconsciente, e o que ele fez com o resto de gozo
que resistiu à análise ou, em outras palavras, com o seu
sintoma incurável. Sem o dispositivo institucional do passe, a
psicanálise corre o risco de transformar-se numa prática mística,
sectária ou obscurantista, em cuja direção certamente ameaçava
enveredar, antes que Lacan se propusesse a reler Freud.
Isenta de qualquer pretensão de ser
psicanalítica à segunda potência, a Proposição de 9 de
outubro faria ato na exata medida em que não tardaria a receber
respostas, isto se aceitamos que a resposta é a exigência lógica
que define nachträglichkeit o que fez
ato. Em comum com o chamado ato falho, o êxito
de sua Proposição, segundo Lacan, teria
sinalizado o lugar onde o pensamento fracassa, não tanto porque
se o quis assim, mas simplesmente porque se entrou neste lugar.
Porém, mais do que isso, colocar a Proposição
de Lacan desde então em ato teria implicado na reserva de
um lugar institucional vazio de qualquer saber, porquanto
destinado à permanente interrogação da práxis
e do saber psicanalíticos já construídos.
No Brasil, o ensino de Lacan despertou
grande interesse sobretudo a partir da década de setenta. Nessa
mesma época, tinha início na França o processo que conduziria
à dissolução, em 1980, da École Freudienne de Paris fundada
por Lacan. Por que Lacan iria dissolver a sua Escola?
Sua resposta, como sabemos, resumiu-se em dizer que ela
havia funcionado na contra-mão daquilo para quê ele a
criara_ a aposta no progresso conceitual da psicanálise e
em sua transmissão_ e que bastava naquele momento que apenas um
fosse embora, quando então todos os outros se encontrariam
automaticamente livres para partir. Mas esse um
certamente não podia ser qualquer um, era preciso
que fosse ele, cujo ensino vinha sendo repetido ao estilo
papagaio, aos moldes de um feno que é cuspido sem
sequer ter sido mastigado.
Em 1979, criou-se em Paris a Fundação
do Campo Freudiano, destinada, entre outras coisas, a
organizar os Encontros Internacionais dos diferentes grupos que o
compunham. Ela almejava tornar-se um espaço neutro de
intercâmbio entre os diferentes grupos referidos ao ensino de
Lacan: associações, grupos de estudo, bibliotecas etc. Em
1980 portanto, exatamente uma ano antes de sua morte, Lacan
dissolvia a EFP, e relançava simultaneamente seu projeto de uma
comunidade para a psicanálise, sob a égide do significante
Causa Freudiana. Se nos
perguntarmos o que mais uma vez o movia a propor a organização
de uma comunidade de analistas, podemos responder que se tratava,
com certeza, da insistência de seu próprio desejo de encontrar
os meios ou instrumentos que poderiam libertar a psicanálise das
estagnações grupais. Pois ele propôs a constituição de um fórum
de intercâmbio, lugar de debate para os psicanalistas que
desejassem perseverar com ele na aposta do cartel e do passe como
dispositivos instituintes de um modo singular de agrupamento.
Assim, o imperativo ético freudiano: Soll Ich werden,
devo eu (o sujeito) advir, encontra seu desdobramento no que
talvez possamos chamar de imperativo ético lacaniano:
deve uma Escola oferecer o dispositivo do passe. E, nesse caso, o
passe se situa no lugar exato em que a ética do desejo opõe-se
à moral dos hábitos e costumes.
Em seguida
à morte de Lacan, em 1981, seu genro, Jacques-Alain Miller, que
se tornara o executor testamentário de sua obra, deu
continuidade com mais alguns_ entre eles Colette Soler,
Pierre Bruno, Jacques Adam e alguns outros_ à experiência do
passe na École de la Cause freudienne (ECF) e à fundação,
em 1992, da Associação Mundial de Psicanálise (AMP),
congregando, além da ECF, a Escuela del Campo Freudiano de
Caracas (ECFC) , a Escuela de Orientación Lacaniana
(EOL) de Buenos Aires e a École Européenne de Psychanalyse
(EEP). Em 1995, Jacques-Alain Miller fundaria a Escola
Brasileira de Psicanálise, na ocasião do V Encontro
Brasileiro do Campo Freudiano realizado no Rio de Janeiro. Primeira
Escola a ser fundada sob os auspícios da AMP, a EBP traria
em sua fundação uma outra marca singular: um dispositivo de
passe que não se propunha a verificar a passagem de analisante a
analista, mas que era o resultado de uma proposição que Jaques-Alain
Miller havia feito alguns meses antes em Madri, e que já se
tornara conhecida sob o título de A questão de Madri.
Embora Miller
alegasse ter-se inspirado na Nota aos italianos
de Lacan (1973), havia no entanto uma diferença: o passe na EBP
não era propriamente o passe na entrada da Escola,
tal como Lacan o propusera aos três analistas italianos que o
haviam procurado, desejosos de constituírem uma Escola. Por esse
motivo inclusive, sempre que se falava do passe na EBP, vacilava-se
entre chamá-lo de passe na entrada ou de passe de entrada.
Atualmente preferimos nomeá-lo de passe sob transferência,
assunto que vem sendo estudado e debatido pelos que participaram
diretamente desta experiência. O cartel encarregado de escutar
os passadores tinha por tarefa avaliar se houvera ou não a
transmissão de um certo percurso analítico, quiçá apenas de
uma entrada em análise, mas não estava autorizado a nomear
nenhum Analista da Escola (AE), mesmo se eventualmente ele
concluísse ter havido transmissão de um final de análise.
Ora, do
ponto de vista dos efeitos sobre a comunidade analítica a
diferença seria enorme, porque aquilo que Lacan propusera aos
italianos era, no fim das contas, a construção de uma Escola tão
somente com aqueles que se dispusessem a passar pela prova do
dispositivo para a verificação da existência do analista
a partir de um final de análise. E Lacan não se furtara a
observar o risco de que a inexistência do analista_ caso não se
chegasse a nenhuma nomeação_ viesse a comprovar a inexistência
de uma Escola. Podemos, assim, observar que a Nota aos
italianos implica num desdobramento da Proposição
de 9 de outubro, no sentido de que o passe deixa de ser
apenas um dispositivo institucional proposto por Lacan, para
elevar-se à dignidade de um princípio de Escola,
como ele próprio o nomeia neste documento: o meu princípio
do passe.
Em Carta aberta a Jacques-Alain Miller
de 20 de junho de 1998[1], Colette Soler chamava a atenção para o
fato de que a AMP representa um terceiro modelo institucional, ao
lado da IPA e das Escolas do Campo Freudiano, modelo
este que até aquela data_ e até hoje certamente, para a
maior parte dos que nela permanecem_ jamais fora questionado. Mas
o que acontecera no seio da AMP desde sua fundação até a
primeira metade de 1998 ? É evidente que, em primeiro lugar, é
preciso mencionar sua enorme expansão mundo afora, congregando
psicanalistas das mais diversas línguas e etnias. Porém
ocorrera também um afastamento crescente da proposta
institucional de Lacan, a tal ponto que já se cogitava em
instituir a permanência da função de AE, invalidando desse
modo o princípio da permutação, que não representa a supressão
da hierarquia, mas aposta evidentemente na subversão da mesma. Não
devemos nos esquecer de que na primeira versão de sua Proposição,
Lacan chegou a aplicar sobre o grafo do desejo as três
categorias de pertença à Escola: analista praticante (AP),
analista membro da Escola (AME) e analista da Escola (AE), com o
intuito de demonstrar que somente a passagem direta de AP a AE,
ou mesmo a entrada direta em AE, por se desviar da gradação
supostamente necessária e ilusoriamente ascendente: AP®AME®AE,
poderia subverter uma hierarquia consolidada e estagnante para a
teoria e a prática analíticas.
Acreditamos ser possível dizer que, sob a
orientação de seu Delegado Geral, a AMP invertera completamente
a aposta formulada por Lacan nos termos de colocar a
psicanálise à frente da política[2]. Além disso, usando o argumento de uma possível
diferenciação absoluta entre clínica, teoria e política da
psicanálise, segundo o qual o testemunho do passe deveria
ser avaliado não apenas a partir destes três traços
independentes, colocava cada vez mais uma determinada política
à frente da psicanálise. Uma determinada política
que era também uma política determinada, pois, convém
lembrar, ela implicava no desconhecimento sistemático, senão
mesmo na foraclusão de alguns métodos torpes empregados por
Jacques-Alain Miller no tratamento de alguns membros da AMP,
exatamente aqueles que mais se destacavam por suas contribuições
teórico-clínicas para a psicanálise.
A crise, que se intensificou ao longo de todo
o ano de 1998, que invadiu e invade ainda as diferentes Escolas e
grupos ligados à AMP, encontrou um de seus ápices na cisão da Escola
Brasileira de Psicanálise ao final desse mesmo ano e
foi o ponto de partida de um movimento de construção de Fóruns
de debate psicanalítico nas mais diferentes cidades e países.
Estes caminham no sentido de resgatar a opção de Lacan por uma
verdadeira comunidade analítica de Escola, em que não imperem a
prestância, o grude imaginário e servil. Se a meta dos Fóruns
é o retorno à Escola de Lacan, é porque este não é outro senão
o retorno aos princípios que a fundamentam.
Quando nasceram então os Fóruns ? Por ocasião
do II Congresso dos membros da AMP e do X Encontro
Internacional do Campo Freudiano em julho de 1998, na cidade de
Barcelona, psicanalistas descontentes com a orientação política
que Jacques-Alain Miller vinha imprimindo à AMP reuniram-se no
Hotel Havana em Paris e concluíram que era necessário criar em
suas diferentes cidades um espaço de análise e debate da crise
por que passavam, bem como uma outra perspectiva de futuro para a
psicanálise que praticam. Foi aí que nasceram os Fóruns
e, alguns meses depois, seus participantes marcaram um primeiro
encontro no Rio de Janeiro.
No Rio, portanto, mais precisamente no
Hotel Glória, nos dias 12 e 13 de dezembro de 1998, reuniram-se
cerca de duzentos psicanalistas de diferentes cidades do Brasil e
do exterior, para debaterem o passado, o presente e o futuro da
Escola de Lacan. Pela primeira vez na história do movimento
psicanalítico de orientação lacaniana, nenhum psicanalista
francês veio a título de convidado especial, com suas despesas
de viagem pagas por aqueles que o recebiam em sua terra. Além
dos psicanalistas brasileiros, espanhóis, argentinos, e até
mesmo de uma psicanalista grega, os vinte psicanalistas
franceses que aqui estiveram compareceram como congêneres-
para empregar uma expressão de Lacan-, visando um primeiro
intercâmbio das conclusões a que haviam chegado os diferentes Fóruns
locais.
Em nossa busca por extrairmos a aposta teórica
em jogo na crise da AMP_ pois não há crise que não comporte
uma aposta teórica_ evidenciou-se que, apesar das diferentes
interferências e manipulações do passe, e ainda que sob a máscara
de alguns fracassos, o dispositivo poderia ser avaliado como
exitoso. Pois os Fóruns representariam a
conseqüência lógica, e portanto necessária, de todas estas
tentativas institucionais que visam degradá-lo; nesse sentido, o
que estivera foracluído no simbólico do dispositivo
estaria retornando no real dos Fóruns. Nas
questões que vêm se presentificando neles, e também nos
conflitos e medos expressados. Se hoje parece haver um certo
temor de que ao nos opormos demasiadamente ao Um, sejamos
necessariamente obrigados a cair na dispersão do múltiplo,
foi porque, num dado momento, desenvolvemos uma espécie de
fobia ao múltiplo e chegamos até mesmo a acreditar
que o múltiplo seria maléfico à psicanálise. No Campo
Freudiano, foi introduzida a idéia errônea e maniqueísta de
que o Um e o múltiplo opor-se-iam na prática e teoria analíticas,
desconsiderando-se o fato de que o Um com que lidamos é aquele
da unidade distintiva, esta que, quanto mais congrega, mais
sustenta as diferenças. A verdadeira antinomia tem
lugar entre o Um e o Outro sexual, cujo enlaçamento é por isso
mesmo impossível.
Todavia a indagação sobre o êxito ou o
fracasso do dispositivo do passe não está de modo algum
encerrada. Nesse sentido, parece-nos bastante interessante a
recente colocação de Pierre Bruno segundo a qual sua participação
num dos cartéis do passe da AMP o levou a pensar num terceiro
tipo de palavra, para-além do binômio lacaniano: palavra plena/palavra
vazia. Tratar-se-ia, conforme testemunha, de palavras
inimagináveis, que não podem ser deduzidas do saber psicanalítico,
por mais complexo e completo que ele possa ser[3]. Pode-se, então, concluir que o valor do
passe não é, não pode ser o de uma mais-valia da psicanálise,
se o passe é justamente o que permite liberá-la de seus
enunciados fechados.
Para
além dos inúmeros conflitos entre as pessoas, que se sucederam
uns aos outros no decorrer dos últimos anos, a AMP via crescerem
paralelamente uma política firme e uma clínica
imprecisa[4].
Tão mais firme tornava-se a política, tão mais imprecisa se
tornava a clínica. Aquela, bem distante da política da falta-a-ser
do analista, tornava-se cada vez mais uma política
determinada, como dissemos anteriormente, menos a produzir
sujeitos analisados do que a produzir sujeitos cujos eus(egos) se
identificam com um mesmo ideal. Esta, sob o pretexto da
necessidade de se estudar os casos-limite ou os
casos raros, afastava-se cada vez mais da clínica de
Freud e de Lacan. Impunham-se dessa maneira divergências teóricas
que, em psicanálise, repousam necessariamente sobre divergências
clínicas. A impossível desvinculação entre a teoria e a prática
não constitui precisamente a singularidade de nosso campo de
pesquisa ? E muitas vezes não é suficiente que um
analista enuncie a regra fundamental da associação-livre para
transmitir ao analisante o ponto a que chegou em sua própria
análise ?
Mas em que consistia a política firme
da AMP ? Principalmente em burlar o princípio lacaniano da
dissolução. Assistimos na AMP à metamorfose da
Escola em efeito de cola e de segregação, ao delizamento do
cartel em direção a Lacan Elucidado(Miller,1997),
ao declínio da interpretação[5] em benefício da sugestão.
Assistimos, também, à transformação da discrição (e descrição)
do testemunho e do ensino dos AEs em shows; ao retorno da
psicanálise selvagem nas assim chamadas Conversações, na
internet etc; à redução da função da fala em palavra de
ordem. Enfim, assistimos a Causa ser vencida[6]. É fato que regimes totalitaristas exercem
um permanente encantamento, o que Freud tão bem analisara em sua
Psicologia das Massas e análise do eu (1921),
e não é nada evidente que saibamos seguir a advertência de
Lacan em O Seminário livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (1964), segundo a qual
precisamos saber evitar o uso perverso da castração que a
prende numa economia de gozo do sacrifício.
Para sua Escola, Lacan almejou um estilo de
vida bastante diferente daquele das Sociedades por que passou,
nas quais o aconchego em Congressos visava somente mascarar o
horror do ato do analista e nenhuma construção de saber.
Nenhuma formação acadêmica é de antemão propícia ao
analista, uma vez que as formações de médico, psicólogo, filósofo
ou qualquer outra que se destine a oferecer uma visão de mundo,
oferece simultaneamente a crença na possibilidade do saber total,
com a exclusão da dinâmica inerente à verdade. Esta, como
sabemos, tão logo vem à luz, inclina-se imediatamente ao
apagamento.
Somos os herdeiros não apenas do ensino de
Lacan, mas também dos avatares institucionais ligados a esse
ensino. Se a AMP considera resolvido o problema de Escola, essa
opinião está bem longe da que é compartilhada pelos analistas
que estiveram presentes ao Fórum dos fóruns
no Rio de Janeiro, em dezembro de 1998. Acreditamos que
nenhum movimento analítico, qualquer que seja sua orientação,
diverge da idéia de que é necessário encontrar os meios de
avaliar o ato do analista, mas se o passe é a marca
do ensino de Lacan, sabemos hoje que a recíproca nem sempre é
verdadeira. Em outras palavras: é verdadeiro o enunciado de que
se temos o ensino de Lacan, temos necessariamente o passe,
porém é falsa a recíproca de que se temos o passe, temos
necessariamente o ensino de Lacan. Essa fórmula é
bastante precisa para sintetizar o avatar institucional que a AMP
representa atualmente. Da mesma forma, parece-nos possível dizer:
é verdadeiro que a ausência do Outro seja o trunfo do passe,
mas sua recíproca não o é. Na análise de Colette Soler, o
dispositivo extrai de fato do júri o que fora confiado aos
passadores, isto é, não constrói critérios a
priori que serviriam de obstáculo ao que há de
singular nos testemunhos. No entanto, quando se passa a falar do
passe em todos os lugares, corre-se o risco de que seja reconstruído
um Outro institucional e de que este se infiltre no dispositivo,
pois não se pode não falar a língua do Outro[7].
Na tensão entre o grupo e a Escola, pode-se
dizer que o grupo, embora inevitável, não é lá muito
boa companhia para uma Escola que almeje criar as condições
de possibilidade do ato analítico. Grupo e Escola inscrevem-se
em regimes diferentes, na mesma medida em que diferem o Um da fusão
e o da singularidade. Uma Escola não tem necessariamente quatro
paredes ou uma localização precisa com determinadas condições
de entrada[8]. Aos moldes de uma Escola de pintura ou de
qualquer outra atividade artística, uma Escola de psicanálise
também deve ser reconhecida pelo que fez
Escola, ou seja, o que se transmitiu
Em sua aula de 9 de abril de 1974, de O
Seminário livro 21: os não-tolos se enganam[9], Lacan observava que, mesmo
ao autorizar-se de si mesmo, o analista jamais toma sua decisão
sozinho; como o ser sexuado, ele se autoriza de si mesmo e de
alguns outros, ou seja, ele faz uma escolha. Após
ter classificado em 1964[10] os analistas na categoria dos confrades,
Lacan faria a aposta, quase dez anos mais tarde, de que
saberíamos encontrar a marca de um congênere,
necessariamente situada entre a ciência e a arte, lugar onde,
desde Freud, podemos situar o ofício analítico. E esta foi,
também, uma das razões maiores de sua instituição do
dispositivo institucional do passe: que um analista soubesse
reconhecer estar diante de um outro analista.
Por outro lado, o Campo Lacaniano, tal como
Lacan o introduziu e nomeou em O Seminário livro 17: o
avesso da psicanálise (1969-1970),
é um campo a ser construído a partir de sua teoria
dos gozos, que tem início na formalização dos quatro discursos.
É necessário que não façamos vista grossa ao gozo
presente em todo e qualquer discurso e que não nos esqueçamos
de que o discurso do analista é da ordem de uma emergência,
sempre pontual, na passagem de um discurso a outro. Mais do que
isso, devemos estar atentos aos deslocamentos de discurso que
podem engendrar novas mestrias. O saber universitário e o
capital foram esclarecidos e trabalhados por Lacan como as formas
mais contemporâneas do discurso do mestre. Este já não se
define mais como alguém que ensina livremente a alunos
livres[11].
Ao subverter a relação clássica entre um
sujeito e um objeto, o discurso analítico, no qual a atividade
está do lado do objeto-causa, acolhe o sujeito que foi
desalojado do campo da ciência. E, por se constituir em um
discurso sobre e a partir do amor, nele é possível a
construção da fantasia, como consistência de prazer que faz
barreira ao gozo. Se o psicanalista não puder ser, durante
todo o tempo em que conduz o tratamento analítico, para cada um
de seus analisantes, um diferente semblante de objeção ao
saber[12], nenhum saber poderá ser interrogado a
partir do lugar da verdade e não haverá nenhuma chance de emergência
para o discurso analítico como o laço social possível entre os
analistas.
Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1999
Vera Pollo e Eliane Schermann
Membros de Formações Clínicas do Campo Lacaniano e da
Associação Fóruns do Campo Lacaniano - AFCL
E-mail:
Vera Pollo vpollo@openlink.com.br
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Eliane Schermann e Vera Pollo (orgs.), Comunidade analítica
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(1998)
Carta de 13 de setembro de 1998. Em: Maria Anita C.
Ribeiro (org.), A cisão de 1998 da Escola Brasileira
de Psicanálise. Rio de Janeiro: Marca dÁgua
Livraria e Editora, 1998.
(1998)
Conferência: o sintoma e o estilo em psicanálise.
Inédito.
(1998)
Pacto, que pacto?. Em: Maria Anita C. Ribeiro (org.),
A cisão de 1998 da Escola
Brasileira de Psicanálise. Op. cit.
SAURET,
Marie-Jean
(1999)
O mestre de Escola. Em: Eliane Schermann e Vera
Pollo (orgs.), Comunidade analítica de Escola.
Op. cit.
SCHERMANN,
Eliane
(1999)
Sobre o ensino e a transmissão. Em: Eliane Schermann
e Vera Pollo (orgs.), Comunidade analítica de Escola. Op.
cit.
SOLER,
Colette
(1998)
Carta aberta a Jacques-Alain Miller. Em: Maria Anita
C. Ribeiro (org.), A cisão de 1998 da Escola
Brasileira de Psicanálise. Op. cit.
(1998)
A spicanálise na universidade. Conferência
realizada na Universidade Estácio de Sá em 9 de dezembro de
1998. Inédito.
(1998)
Carta de 28 de dezembro de 1998. Internet: Rede-de-fóruns.
(1998)
Construir a comunidade. Internet: rede-de-fóruns.
(1999)
De nossas coordenadas. Em: Eliane Schermann e Vera
Pollo (orgs.),Comunidade analítica de Escola. Op.
cit.
NOTAS
[1] Esta carta integra uma série de documentos, que se encontram reunidos no livro A cisão de 1998, primeiro livro da presente coleção Palea. Rio de Janeiro, Editora Marca dÁgua, 1998.
[2] Cf. sua Lituraterre
[3] Bruno, P.- A pergunta de Quinet. Em: Schermann, E. e Pollo, V. (orgs.)- Comunidade analítica de Escola: a opção de Lacan. Rio de Janeiro, Marca d Água Livraria e Editora, 1999, p.29-31.
[4] Cf. a expressão utilizada por Jean-Jacques Gorog em seu texto Política e doutrina. Op. cit.,p. 91-93.
[5] Expressão cunhada por Serge Cottet, à qual Miller deu grande destaque por ocasião do IX Encontro Internacional do Campo Freudiano, em Buenos Aires (1996).
[6] Cf. Fingermann,D.-O equívoco da transferência e os analistas. Em: Comunidade analítica de Escola: a opção de Lacan. Op. cit., p. 105-108.
[7] Soler,C.- De nossas coordenadas. Em: Comunidade analítica de Escola: a opção de Lacan. Op. cit., p. 158-164.
[8] Nominé, B.-A Associação, a Escola, o Nome-do-Pai e o Sujeito-suposto-saber. Op. cit., p.169-173.
[9] Em francês: les non-dupes errent faz homofonia com les noms du père e les nons du père, ou seja, os nomes do pai e os nãos do pai, respectivamente.
[10] Cf. sua Nota aos Italianos.
[11] Cf. a definição dada por Henri Ey em carta enviada a Lacan. Apud Roudinesco,E., 1986:436-7.
[12] Cf. a expressão usada por Marie-Jean Sauret em O mestre de Escola. Op. cit., p.73-8
.
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