DA FAMÍLIA À RUA À FAMÍLIA... PASSAGENS POSSÍVEIS*

Verônica Mendes de Melo

*Trabalho apresentado ao Departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae Setembro/1998

INTRODUÇÃO

Escolhi para esta apresentação, partilhar com vocês algumas questões que vêm me acompanhando há bastante tempo. São questões que dizem respeito ao uso e alcance da psicanálise como instrumento de análise e intervenção em diferentes âmbitos de nossa realidade.

Neste caso, a população de crianças e jovens que vivem pelas ruas e algumas instituições de nossas cidades, imersos em situações tão adversas para a constituição de uma vida, um sujeito.

Acredito que todo conhecimento já acumulado pela psicanálise nos autoriza a uma inserção neste campo, ao mesmo tempo que esta é uma das formas de prosseguirmos nos desenvolvimentos desta teoria.

Parto, então de duas questões: a primeira diz respeito à realidade de exclusão em que vivem estas crianças. De que realidade se trata? Que crianças são estas?

A segunda questão se refere ao significado deste sujeito: O que é um sujeito? O que é preciso ou o que garantirá o advento de um sujeito?

Minha intenção neste trabalho é, portanto, poder pensar sobre estas questões, trazer para uma reflexão situações que estão ocorrendo em nosso meio social cada vez de forma mais aguda para pensá-las sob uma ótica psicanalítica.

Sobre a primeira questão formulada, alguns dados podem nos aproximar desta realidade que estou me referindo e nos trazer uma imagem de nossa conformação social: a partir de pesquisas compreendendo o período de 1991 a 1996 (a maior parte dos dados refere-se a 1995), foi elaborado e divulgado em novembro de 1996 o documento Indicadores Sociais sobre Crianças e Adolescentes pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) o qual revela que 19,8 milhões, ou seja, 40,4% das crianças brasileiras entre 0 e 14 anos vivem em famílias consideradas pobres, cuja renda mensal é de meio salário mínimo (R$60) por pessoa da família. Outros dados mostram que 4,6 milhões de crianças e adolescentes (10 a 17 anos) estudam e trabalham e 2,7 milhões na mesma faixa etária só trabalham. Desses dois grupos, 3,5 milhões de crianças trabalham mais de 40 horas semanais e na mesma faixa etária mais de 1 milhão estão em busca de emprego. Na faixa etária entre 5 e 9 anos há 522 mil crianças trabalhando.

Um dos efeitos do quadro sócio econômico do Brasil se traduz na grande quantidade de famílias, crianças, adolescentes e adultos vivendo nas ruas de nosso país. O objeto de minha reflexão está relacionado com o segmento infantil desta população.

CAMINHOSTRILHASCONSTRUÇÕESPEDRAS

Para introduzir a segunda questão que me referi anteriormente, citarei um trecho do poema Primeira manhã do poeta português Almada Negreiros:

"Nascer é vir a este mundo
não é ainda chegar a ser.
Nascer é o feito dos outros.
O nosso é depois de nascer
até chegarmos a ser
aquele que o sonho nos faz."

Para começarmos a refletir sobre esta questão, ou seja, o que é que nos faz ser, como é que chegamos a ser, proponho seguirmos a trilha sugerida por Freud no que diz respeito ao conceito de libido. Quais os caminhos e como estão constituídas as dinâmicas pulsionais na história da construção/constituição dos sujeitos? E, com relação a estas crianças, como isso se daria?

Em seu trabalho Psicologia das massas e análise do eu, Freud nos apresenta um estudo sobre o fenômeno de massas realizado por Le Bon e William McDougall. Na avaliação de Freud, ambos realizam um importante papel na contribuição que trazem sobre os fenômenos de massas, indicam formas de funcionamento dos afetos e da inteligência dentro da massa, porém não avançam sobre a natureza destes. Apesar da importância que credita ao trabalho de ambos, principalmente porque seus trabalhos apontavam para uma percepção da influência da sugestão como hipótese que responderia à formação e ao caráter das massas, Freud estará empenhado em avançar de um texto, que considera mais descritivo, para uma teorização sobre a psicologia das massas. O que, por exemplo, estaria por trás da alta sugestionabilidade das massas; o que sustenta os vínculos entre os indivíduos que fazem parte da massa; e fundamentalmente entre estes e o líder, são aspectos que Freud considera não explorados por estes autores.

Com este propósito inicia sua investigação a partir de três questões básicas: o que é esta massa, o que desta teria o poder de influência sobre a vida anímica dos sujeitos e, por último, em que consistiria esta influência.

É Freud quem revela e chama especial atenção para o lugar do líder nesta constelação, e será apoiado no conceito de libido que prosseguirá teorizando. Neste momento define libido como energia considerada como magnitude quantitativa (não mensurável) daquelas pulsões que têm a ver com tudo o que pode sintetizar-se como "amor". Este "amor"(grifos de Freud) tem como núcleo o amor cuja meta é a união sexual, mas onde participam também o amor a si mesmo; o amor filial e o amor aos filhos; a amizade e o amor à humanidade; a consagração a objetos concretos e idéias abstratas.

Para Freud são vínculos de amor e laços sentimentais que constituem a essência da massa e o que se esconde por trás da tela da sugestão. A massa se mantém coesa em virtude do poder de Eros (Platão) que liga tudo no mundo e porque

"se o indivíduo faz uma renuncia de sua peculiaridade na massa e se deixa sugerir pelos outros recebemos a impressão de que o faz por necessidade de estar de acordo com eles e não de opor-se, quem sabe então por amor deles."

A coincidência destas colocações sobre a psicologia das massas e psicologia do indivíduo não é casual e podemos pensá-la na perspectiva metapsicológica proposta por Freud em sua introdução à Psicologia das massas:

"... a oposição entre atos anímicos sociais e narcisistas -autistas diria quem sabe Bleuler [1921]- cai integralmente dentro do campo da psicologia individual e não habilita um divórcio entre esta última de uma psicologia social ou das massas."

No mesmo texto, ainda explorando sobre a possibilidade de existir uma pulsão especial, pulsão social, exteriorizando-se em situações de massa faz a seguinte objeção:

"nos parece difícil que se deva adjudicar ao fator numérico uma importância tão grande, até o ponto de que fosse capaz por si só uma pulsão nova na vida anímica, inativa em outra circunstância. Por isso nos inclinaremos em favor de outras duas possibilidades: que a pulsão social acaso não seja originária e irredutível e que o começo de sua formação possa achar-se em um círculo estreito, como o da família."

Freud, de fato, considera que observando o grupo familiar reconheceremos fenômenos que observamos na massa. É assim que ao descrever o lugar e funcionamento do líder em relação aos indivíduos e destes entre si, faz uma analogia entre a estrutura libidinal da massa e os grupos familiares.

Sobre o líder, constata que existe uma ilusão dos integrantes da massa com respeito a este que é a de que o seu amor é grande, de igual intensidade e valor para todos que a compõem. "E é desta ilusão que depende tudo". Todas as exigências dirigidas aos indivíduos derivam e dependem deste amor e a causa da ligação entre estes é o mesmo amor que o condutor nutre por cada um.

A perda em qualquer sentido do condutor, o não saber em que ater-se sobre ele, basta para que se estabeleça o pânico. Há um colapso da estrutura libidinosa da massa e ao afrouxamento ou perda da ligação com o líder/condutor, seguem-se fraturas nos laços dos indivíduos entre si "e a massa se pulveriza como uma lágrima de Batavia".

Penso que estas colocações de Freud sobre a estrutura libidinosa das massas e sua analogia com o grupo familiar podem nos ajudar a pensar as situações de muitas crianças que se encontram em situação de risco nas ruas: como é que se dá a saída para as ruas?

Sabemos que a história de muitas destas crianças está marcada por inúmeras rupturas. Rupturas com a família, escola, amigos, etc.

Poderia ilustrar isto que foi dito citando Sueli, uma menina que, a respeito de sua família, nos diz que não sabe onde está o pai "é doente da cabeça ... ele anda, vai prá Minas, Santos, tudo a pé, ninguém sabe se está morto ou vivo. Anda sempre com um saco cheio de coisas. A última vez que o vi foi em Ferraz de Vasconcelos. Ele chamou eu e minha irmã prá irmos até onde morava, andamos, andamos e eu perguntava pai onde o senhor tá levando nós e ele dizia: - vem! Eu estava ficando com medo. Quando chegamos em frente de um cemitério, à noite, ele disse que era ali que morava, dormia em cima de uma catacumba. Começamos a chorar de medo e fomos embora, nunca mais vi ele." Sueli tem a mãe viva e vários outros irmãos, filhos do mesmo pai e de outro homem com quem a mãe já esteve amigada. Não sabe onde estão todos _ "por ai!". Alguns já têm filhos, outro está na Febem onde Sueli e outra irmã já passaram e vez por outra retornam, um morreu de AIDS, outro morreu na Escola Oficina. Às vezes "cruza" com alguns deles pelas ruas. Tem uma irmã menor em uma instituição para crianças em situação de rua..

Quando busco utilizar os referenciais da psicanálise para entender melhor o que se passa com as famílias destas crianças me deparo com a constatação de que num grande número de casos estes rompimentos de laços, por se darem em estágios bastante precoces de suas vidas, estão ocorrendo concomitante ao próprio processo de constituição da subjetividade, do eu destas crianças.

Como é que um eu se desenvolve, se constitui, num cenário como este, de situações que estão intervindo direta e simultaneamente em seu processo constitutivo?

Sabemos que o caminho a ser percorrido pelo filhote humano em direção à sua constituição enquanto sujeito é longo e árduo. Inicialmente um corpo que pulsa em muitas direções e sentidos: um perverso-polimorfo. A primeira organização e sentido para esta existência advém dos pais que o espera, o deseja.

Neste sentido falamos que este sujeito mesmo antes de vir ao mundo concretamente com seu nascimento, já possui um lugar que lhe está dado em conformidade com o desejo de seus pais. Já há, portanto, previamente ao nascimento, uma existência imaginária de um bebê por parte daqueles que o espera. O lugar, o projeto destes pais para este filho estará marcado também pelos lugares que estes, individualmente, ocuparam e ocupam na relação com sua família de origem, com toda a relação deste casal entre si, com outros vínculos que foram estabelecendo ao longo de suas histórias e com a cultura em geral que representam. As séries complementares, descritas por Freud, dão conta de ressaltar estes aspectos que estamos colocando e que interagem dialeticamente no processo constitutivo.

Consideramos, então, que o sujeito se constitui a partir de um outro e sobre isto Freud faz afirmações inúmeras que estão distribuídas por toda sua obra, afirmações reconhecidas e que vêm sendo desenvolvidas cada vez mais pelos seguidores da psicanálise.

Na formulação que Freud nos apresenta sobre a constituição do eu descreve um percurso que o sujeito há de atravessar correspondendo a uma série de processos que ao mesmo tempo o organiza ao nível das pulsões e o constitui. O conhecimento e neste sentido, o conhecimento de si é um processo que Freud descreve a partir do modelo da relação mãe-bebê em que está afirmada a sua idéia de que o ser humano aprende a conhecer apenas através da relação com um semelhante: "o interesse que é despertado na criatura por conhecer sua mãe, radica no fato de que ela é simultaneamente seu primeiro objeto de satisfação, seu primeiro objeto hostil e sua única fonte de ajuda." Também vai afirmar que a psicanálise reconhece a identificação como a mais precoce exteriorização de uma ligação afetiva com outra pessoa. E com respeito a esta identificação primária, Freud dirá que no início da vida é impossível discernir entre investimento de objeto e identificação.

Ainda sobre este tema, Freud, em seu trabalho O Ego e o Id considera que a formação do caráter das pessoas se constitui a partir da história das eleições de objeto feitas pelo indivíduo e das identificações que este realiza com os objetos aos quais teve que renunciar.

Olhar para trás e tentar vislumbrar um começo, uma origem do desenvolvimento é quase impossível. Porém, seguindo os passos de Freud, podemos partir do constructo hipotético do que poderia ser um primeiro passo neste caminho em que o eu vai se organizando.

O auto-erotismo é descrito nos Três Ensaios como um estado original da sexualidade infantil e anterior ao narcisismo. No auto-erotismo a pulsão sexual se satisfaz prescindindo de qualquer objeto externo. Desorganizadas e parciais, estas pulsões, procuram satisfação no próprio corpo, em partes deste corpo, isto é o que conhecemos como "prazer de órgão".

No trabalho de Introdução ao narcisismo há um reposicionamento do conceito de narcisismo que até então estivera relacionado com a perversão. Este passa a ser apontado como forma necessária de constituição da subjetividade, confundindo-se com o próprio eu. Sobre a questão formulada por Freud à respeito da relação existente entre o auto-erotismo e o narcisismo, Garcia-Roza escreve:

"A resposta que ele próprio (Freud) fornece é que não existe, desde o começo, uma unidade comparável ao eu, o eu tem que ser desenvolvido. No entanto, as pulsões auto-eróticas são primordiais, estão lá desde o início; portanto, algo tem que se acrescentar ao auto-erotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se constitua. O que se acrescenta ao auto-erotismo, para dar forma ao narcisismo, é o eu."

O ato psíquico que se acrescenta ao auto-erotismo para inaugurar um início de eu que poderá ser investido narcisicamente está compreendido no estádio do espelho, segundo formulação de Lacan. Neste momento, seria dada ao infante, através do olhar de um Outro (função materna), uma visão antecipada de seu eu, conferindo uma unidade primeira de sujeito.

No entanto, como acrescenta Garcia-Roza, esta não é uma unidade definitiva e que permanecerá idêntica para todo o sempre. Esta se renova e adquire novos traços, num caminho, que poderíamos dizer parte do "eu ideal para o ideal de eu".

Ao mesmo tempo em que pensamos que o caminho é longo e que podem ser muitos, Freud nos diz:

"E sobre este eu ideal recai agora o amor de si mesmo de que na infância gozou o eu real. O narcisismo aparece deslocado a este novo eu ideal que, como o infantil, encontra-se de posse de todas perfeições... [O homem] Não quer privar-se da perfeição narcisista de sua infância, e se não pôde mantê-la pelas perturbações que viveu na época de seu desenvolvimento e pelo despertar de seu juízo próprio, procura recobrá-la na forma do ideal do eu. O que ele projeta frente a si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, na qual ele foi seu próprio ideal."

Portanto, não há uma superação absoluta de um estado originário, eu ideal, que será substituído por um ideal de eu, como se uma "nova" pessoa surgisse desta operação. De acordo com o que Freud expõe neste parágrafo o eu ideal sofre transformações, porém permanece e terá seu papel regulador de toda atividade humana.

Para nos ajudar a seguir pensando na história da constituição subjetiva de crianças vivendo situações de rupturas tão reais, precoces e intensas, apresentarei um relato sobre uma destas crianças que, certamente, integra os números da miséria retratados na pesquisa do IBGE.

Conheci Luís, como vamos chamá-lo, em uma instituição destinada a abrigar crianças vivendo em situação de rua, há seis anos atrás, 1992.

Nessa época trabalhava como assistente de pesquisa no Cebrap, em uma investigação na área da Antropologia Urbana cujo tema se relacionava com a vida destas crianças. Eu trabalhava junto a uma pesquisadora, embora algumas vezes fosse sozinha ao encontro das crianças. Nos apresentávamos a elas contando o que estávamos fazendo ali. Conforme percebíamos alguma confiança ou maior entrosamento entre as crianças e nos, tentávamos estabelecer com elas um compromisso de conversarmos sobre alguns temas de suas vidas. Fazíamos, então alguns "combinados" sobre só dizerem o que quisessem e quando quisessem, que as conversas poderiam ser registradas em gravador, que depois poderiam "brincar" com o gravador, etc.

A idéia foi bem recebida por alguns, outros se mostraram mais desconfiados mas, mesmo assim ficavam ali por perto nos rondando, ou falando mais alto em direção ao gravador para que sua fala ficasse gravada. Passado algum tempo, essa atividade já estava quase que incorporada à rotina dali. Mesmo os mais "descolados e desconfiados" aceitavam ou queriam falar um pouco de suas vidas, sobre suas famílias, amigos, interesses, medos, desejos, a saída de casa, a vida nas ruas. Contavam de suas brigas, paixões secretas entre meninas e meninos, meninas e meninas, a vergonha do corpo que se desenvolve e já mostra contornos de uma pequena mulher, de um pequeno homem.

De manhã cedo, ao abrirem as portas da instituição, muitos já estão esperando do lado de fora. Passam pela "revista" e entram. Chegam das ruas, sujas e amassadas por uma noite mal dormida em algum canto da cidade, vão direto ao banheiro. Meninos e meninas saem dali "transformados", desamassados e limpos. As meninas exibem o cuidado que acabaram de dar aos seus corpos, com orgulho ou vergonha destes. Se distribuem pelos cantos se penteando, alisando seus cabelos, fazendo tranças umas nas outras, correm para se verem no espelho do banheiro, voltam sorrindo, falam muito, colocando em dia os acontecimentos recentes: quem "rodou" e foi para a Febem, quem brigou com quem, quem "ficou" com quem , etc.

Correrias pelo pátio, passa alguém e arranca das mãos o caderno de uma menina que escrevia versinhos de amor e amizade, esta sai correndo e gritando atrás do seu caderno, de repente um prato ou copo de leite voa pelos ares, um forte e emocionante som chega aos nossos ouvidos: são as crianças tocando instrumentos de escola de samba. Batem com força e ritmo nos bumbos, caixas e surdões. Os corpos vibram e os corações batem forte.

Em meio a tudo isso está Luís. Durante aproximadamente um ano me encontrava com Luís semanalmente, às vezes mais de uma vez na mesma semana. Ele tinha só doze anos, mas sua "ficha institucional" já era bem extensa, já havia passado por várias instituições, indo e vindo de casa para a rua inúmeras vezes. Pequeno e grande para seus doze anos, gosta de falar de si, contar suas histórias e, principalmente, cantar. Sempre quer cantar alguma música e diz que elas falam de sua história, de sua vida. Canta e depois pede para ouvir. Ouve e fica ali quietinho, os olhos brilham quando canta e se entristece quando ouve. Sinto um enorme desamparo em Luiz, em seus olhos que parecem perdidos entre o brilho e a tristeza, brilho pelo encontro que faz com sua história e tristeza que se abate por causa disso, por causa de sua história.

Mas ele diz: quem canta, seus males espanta, prefiro cantar, porque se falar, vai "sujar". "Hoje estou a fim de cantar, hein!" E canta:

"Perambulando pelas ruas da cidade
pobre menino andava vendendo flor
onde encontrava um casal de namorados
oferecia com carinho e muito amor
rosa vermelha, rosa amarela
compra seu moço e dá de presente a ela
um certo dia para entrar compraram flor
pobre menino me contou dos seus passados
eu vendo flores prá família que me cria
meu pai e mãe me deixou abandonado
rosa vermelha, rosa amarela
compra seu moço e dá de presente a ela
quantos casais que quebram seus juramentos
pelo divórcio, abandona a lei de Deus
os dois separam, cada um vai para um lado
quantas crianças estão sofrendo igual a eu
rosa vermelha, rosa amarela...
Olha a rosa vermelha!
Rosa amarela!
Compra seu moço. E dá de presente a ela!"

Sobre sua história, Luís conta que nasceu em uma cidade da Bahia onde viveu até os quatro anos com sua mãe, o padrasto e mais três irmãos menores. Não conheceu seu pai. A mãe lavava roupa no rio e conseguia alguma comida com as tias que moravam na mesma cidade. O padrasto "não trabalhava, pegava rã no rio... a gente passava fome lá". O padrasto "brigava com minha mãe direto, batia nela, judiava, batia nos meus irmãos". Não sabe como estão hoje. Sobre a saída de sua casa e a vinda prá São Paulo conta que aos quatro anos um tio e uma tia, irmã de sua mãe, que moravam em S. Paulo foram até lá e os chamaram para vir embora com eles. A mãe resolveu vir, mas mudou de idéia na última hora. Nesse momento o tio "me pega pelo braço, pega minhas roupas que já estavam arrumadas e me traz. Não lembra o que sentiu na ocasião.

Em São Paulo, moraram em vários bairros, a mudança foi uma constante nos anos seguintes. A tia vive com este companheiro com quem teve três filhos. Quando engravida deixa o emprego e vai trabalhar em casa de família. O tio é descrito por Luís como uma pessoa importante para ele: "ele é legal, tinha violão, me ensinava a cantar músicas e a gente cantava juntos, até hoje ele é legal, só me batia quando fazia coisa errada, então tudo bem bater".

Até os sete anos vivia bem com a tia: "até brincava com ela, depois disso, mudamos de novo, ela começou a ter seus filhos e tudo mudou, "minha tia começou a me bater mais... minha prima maior encrencava muito comigo, uma vez ela estava mexendo o arroz com uma colher, ai entrou essa minha prima correndo, ela pegou a colher quente e colocou na minha garganta, ai nesse dia eu também saí de casa, mas voltei... meu tio também começou a beber mais... depois que viemos de Franco da Rocha estragou tudo na nossa vida, piorou... mudou minha cabeça, até que comecei a sair pras ruas, ficava por perto de casa brincando, depois voltava, ia um pouco mais longe e voltava, pegava o trem e voltava, até que sai e não voltei mais." O que se passa neste momento da vida de Luís? É a pulverização da massa que se apresenta novamente?

Ainda sobre sua mãe, Luís diz: "minha mãe nunca me bateu, não tinha brigas... se eu voltar prá lá (Bahia) acho que não vou reconhecer a minha mãe, faz muito tempo, lembro que ela é bonita, magra, morena clara". "A tia M. (referindo-se a uma educadora) leu uma carta da minha mãe prá mim, ela quer que eu volte, pedia prá minha tia me levar, não sei se vai dar porque ela não tem dinheiro prá passagem... eu quero ir prá casa da minha mãe".

Os dados que constam em seus prontuários, nas várias instituições por onde passou são muito contraditórios. E este fato parece ser uma característica bastante comum nestas crianças que, em determinados momentos de suas vidas, para cada pessoa ou instituição, faz um relato diferente de sua história. Cada instituição tem sua versão da história de vida de Luís. Em alguns, por exemplo, Luís diz que não tem mãe, que esta morreu.

Durante o tempo que convivi com Luís, este vive um momento perturbador e de muita angústia. Ele começou a ter notícias de sua mãe. Já havia se passado oito anos de sua separação com a mãe e, neste momento, os educadores que acompanhavam seu caso direcionam seus trabalhos para o retorno de Luís para junto dela. E uma questão que já antecipo é porque os educadores fazem esta escolha em detrimento da família com quem Luís esteve envolvido nos últimos oito anos?

Passarei a relatar a situação utilizando os dados tais como foram sendo acompanhados e registrados por uma das instituições que na época cuidava de Luís:

Dados de 15.01.89

Luís Fernando S.S. - 11 anos

Tios: ......................

Mãe: ................- falecida (sic)

- tem cinco irmãos, não sabe os nomes

13.02.89 - Obs. não tem certeza se a mãe é falecida, supõe que sim pois passavam muita fome

Procedência: Instituição A

Providências: permanecer para atendimento

Dados gerais: residia em MG com mãe e irmãos até os quatro anos.

19.02.89 - encaminhado da instituição B para C

21.02.89 - encaminhado para D

31.05.89 - retorna a C em 30.05. Encaminhado para passar o fim de semana em casa. Não quer ficar na instituição D porque não pode sair nem fumar

18.12.89 - vendia doces na Fepasa e foi pego pela vigilância, tem dormido na Estação da Luz. Estudou até a segunda série

28.12.89 - visita à casa dos tios de Luís

30.12.89 - conversa com Luís sobre a visita na casa de seus tios e sobre a possibilidade de ele voltar para BA.. Este fica apreensivo, quieto, depois diz não querer voltar para passar fome novamente. Quer ficar em C e estudar

09.01.90 - conversa com Luís sobre seu retorno à BA. Este diz querer ver sua mãe, mas não ficar lá. Chora bastante na conversa. Foi lhe dada a idéia de escrever para sua mãe e este se animou.

16.01 - escreve a carta para sua mãe

25.02 - Luís recebe carta de sua mãe que pede que ele retorne para sua casa. (A carta está no prontuário, é uma carta quase desesperada da mãe que diz que não queria que ele tivesse vindo para SP, que sua irmã a enganou e que na verdade o raptou, diz que tem muitas saudades do filho e que ele pode voltar porque não vai lhe faltar o que comer; conta de seus irmãos e pede para quem ler a carta ajudá-los no reencontro). Luís concorda em retornar

04.03 - conversa com Luís sobre resposta à carta de sua mãe e ele chora dizendo não querer voltar pois não a reconheceria mais. Luís necessita um contato mais próximo pois está confuso, com atitudes inadequadas, cheirando cola com freqüência.

10.03 - Luís chega super "colado", carregado por uns colegas que dizem que ele estava deitado na avenida tentando se matar. Escreve-se carta para sua mãe pedindo que ela lhe mande mais cartas para reaproximá-los

15.03 - telefonema à instituição E de um conhecido de sua mãe que diz que ela está preocupada com ele e tentando arrumar dinheiro para vir buscá-lo

04.04 - sua mãe vem buscá-lo

07.04 - retornou à C, fugindo de sua mãe de quem roubou Cr$10.000,00. A mãe já estava com a passagem e preocupada porque não conseguia localizá-lo. Um educador ficou com eles conversando. Luís estava muito resistente, mas permaneceu com a mãe.

Abril/90 -Luís volta para Bahia com a mãe.

Uma dentre várias perguntas que fiquei me fazendo sobre a história de Luís é onde está seu pai, o que Luís poderia saber sobre este? Aparece um padrasto, figura representada por Luís como uma pessoa ruim e desvalorizada: "não trabalha, pega rã no rio", rio onde sua mãe, que apanha muito deste, lava roupas. É o que ele tem arrumado na vinda para São Paulo, as roupas. Roupas cuidadas pela mãe e que vestem, agasalham seu corpo. Luís tem roupas, corpo, portanto ocupa um lugar no tempo e no espaço. Existe um antes e um depois, lugares por onde passou... sobreviveu. Existe uma tia ruim, que também o maltrata, mas que "gostava de mim até nascerem seus filhos", quando Luís passa a dormir num colchão, no chão", existe também este tio, muito importante em sua vida.

Levava-o junto a vender coisas que compravam no Ceasa, ensinava-o a trabalhar com madeira (o tio era marceneiro e pedreiro, desempregado), e principalmente lhe ensinava canções que Luís adora cantar. Ensinando-o a cantar, seu tio ajuda a "espantar seus males". Pareceria que a mãe e o tio vestem o corpo e alma de Luís, respectivamente. Existem outros tantos "tios" e "tias" e colegas, que foi conhecendo pelas ruas e instituições por onde passava, existe a "mãe de rua": "quando tem alguém grande que a gente gosta e que também gosta da gente, pedimos prá ser nossa mãe de rua; ela cuida da gente, dá conselho prá não ficar na rua, prá não cheirar cola, protege quando querem bater na gente" - esta é a definição que uma garota nos dá sobre sua "mãe de rua", figura presente para muitas crianças que estão nas ruas.

Freud, num determinado momento do trabalho sobre as massas nos brinda com uma idéia que me parece importante para esta reflexão, até mesmo sublime. Refere-se aos laços libidinosos que se estabelecem em situações de cooperação entre os indivíduos, laços que se prolongam e se fixam para além da tarefa estabelecida.

Luís, porém, passava fome junto de sua mãe. Deseja voltar a vê-la, mas tem medo, não de passar fome novamente, como disse, mas de morrer de fome, afinal ele em algum lugar acreditou que a mãe e seus irmãos poderiam ter morrido por este motivo. O medo de morrer de fome parece ter se tornado o motivo manifesto, consciente em que apoia e dá sentido à angústia desencadeada pela possibilidade de juntar-se à mãe novamente.

Luís canta na música que foi reproduzida acima sua dor por ter sido abandonado, não consegue falar sobre isso, diz que "vai sujar" se tentar falar, "melhor cantar". Uma das versões que apresenta sobre a mãe é que está morta, talvez pensar a morte da mãe doa menos que pensar que ela o abandonou, não o quis mais, não o desejou a ponto de não permitir que o afastassem dela. A história do rapto penso que também pode entrar nesta mesma cadeia associativa. Para ambos é mais fácil acreditar nisso: para a mãe porque a coloca numa situação passiva no que diz respeito a ter abandonado o filho, ela é a vítima, sua criança lhe foi roubada. Diminui a culpa, mas não sei se a dor. Para Luís esta versão diminuiria a dor narcísica, existencial, de ter sido rejeitado pela mãe.

Também acredito que a morte que inventa para sua mãe é a expressão de seu ódio mortal por esta mãe que abandona e, que quando está junto, pode "deixar" o filho morrer de fome, mãe impotente e má que merece morrer.

No que diz respeito à tentativa de suicídio de Luís, qual o significado desta? O que ataca quando tenta sua morte?

Voltemos à teoria para pensar em termos das dinâmicas pulsionais, o que pode estar ocorrendo.

A angústia de Luís, desencadeada no momento em que volta a ter notícias da mãe e, com isso, a possibilidade que se lhe abre de voltar a viver junto desta, acredito ser da mesma natureza e ter origem na situação de perda que viveu na época de sua separação. Diz que não lembra o que sentiu, ao perceber, na última hora, que sua mãe não viria junto com ele para São Paulo. Penso que este esquecimento está repleto de significações obscuras e enigmáticas.

Luís se mostra ambivalente quanto ao seu desejo de voltar para junto da mãe, não sabe como a encontrará. É tomado de dúvidas e temores: e se não der certo? E se a mãe continuar não tendo ou não se sentindo capaz de lhe dar o que já nem sabe o quê?

Porém, segue tendo fome e tem medo de morrer por isto. E se tudo se repetir, como suportaria uma nova separação? Este reencontro lhe figura aterrorizante. O que fará com seu amor, com sua necessidade do amor da mãe? O que fará com todo ódio que por causa deste mesmo desejo, viveu quando esteve privado de sua presença, e que agora emerge com intensidade.

Podemos pensar na tentativa de suicídio de Luís apoiados na seguinte elaboração a respeito das pulsões de vida e de morte se originando e atuando nos primeiros estágios da constituição subjetiva.

Piera Aulagnier, explorando o período que abarca os primeiros tempos da relação mãe-bebê, nos fala sobre uma presença originária da antinomia própria aos dois objetivos do desejo:

"de um lado, desejo de investir o objeto (metabolizando-o na representação de uma parte do próprio corpo), desejo de incorporá-lo e, portanto, desejo de investir o próprio incorporado;(creio tratar-se da dinâmica de construção de uma representação) de outro lado, desejo de auto aniquilação, que transforma o representante no equivalente da instância responsável pelo desprazer."

Aulagnier coloca que o psiquismo afetado pelo desprazer causado por uma necessidade, evoca, conjuntamente, o objeto destinado a eliminar este desprazer. O resultado desta operação se traduz no que Freud designou como "vivência de satisfação". Desta forma localiza este objeto como causa do desejo; ela diz "representante" do desejo. Com isto o prazer fica submetido à arbitrariedade do objeto representado. Não há um poder sobre o prazer:

"Na nossa concepção, o ódio não é anterior, nem posterior ao amor: os dois designam, no registro do discurso, o afeto e a finalidade, próprios a duas representações inaugurais. A primeira tem sua fonte na meta englobante, unificadora e centrífuga de Eros que, pela indissociabilidade zona-objeto, dá forma à imagem de um mundo no qual todo objeto tende para, e alcança seu complemento, unindo-se a ele para reencontrar uma totalidade perfeita. A segunda se origina de Thanatos e sua meta será a destruição do desejo e de sua busca; sua tendência será a de odiar radicalmente tudo o que, aparecendo como complemento necessário à satisfação, vem demonstrar a dependência da zona ao objeto e lembrar à psique que ela pode se encontrar em estado de falta ... A pulsão de morte nos defronta com uma tendência tão insistente quanta arcaica. Tudo se passa como se "ter que representar", enquanto corolário de "ter que desejar", perturbasse o sono anterior, um "antes" ininteligível para nosso pensamento e no qual tudo era silêncio...desejo de não desejar."

Ainda em seu trabalho sobre a psicologia das massas, Freud aborda este mesmo tema expondo o seguinte:

"... Assim, com o nascimento passamos do narcisismo absolutamente auto-suficiente para a percepção de um mundo exterior variável e ao início do achado de objetos, e com isto se enlaça o fato de que não suportemos o novo estado de maneira permanente, que periodicamente voltemos atrás, e no dormir regressemos ao estado anterior, de ausência de estímulos e evitação do objeto."

Como viemos tratando, sabemos que é a mãe (ou quem se ocupa deste lugar desempenhando a função materna) quem se oferece, "empresta" seu eu à criança, "anima" libidinalmente seu corpo, dá sentido existencial ao pulsional da criança uma vez que está ali por perto respondendo, de alguma forma, às necessidades desta. Coloca em movimento, ao mesmo tempo que potencializa sua libido. À fusão inicial, cria-se uma dialética dos investimentos libidinais entre mãe-filho que, aliada à operação que introduz o nome do pai significando a lei e sua presença garantindo o cumprimento desta lei e interpretando para o filho qual é o desejo da mãe (a mãe deseja o falo), fornece um certo alívio à criança e abre a possibilidade de empreender uma separação com o eu da mãe.

As conseqüências de uma perda vivida em momentos precoces da constituição do sujeito, onde aquele que se perde tem um papel central e determinante nesta construção só pode trazer riscos e conseqüências graves para o sujeito.

A conduta suicida de Luís está referida a este primeiro tempo das relações constitutivas. Seu pânico é ter que se a ver novamente com a possibilidade de uma ruptura, possibilidade que se abre a partir do momento em que se vê junto de sua mãe novamente. Seu ódio mortal é contra este desejo de ter desejo que lhe foi "imposto", felizmente, e que mais uma vez a "ilusão" se desfaça.

Um outro felizmente na sua história, bem como na de todos nós, é que como nos ensina a teoria, apesar da permanente demanda do eu ideal em todo nosso trajeto existencial, este se transforma.

Talvez, isto é o meu desejo, esta volta de Luís possa ressignificar este período primeiro de relação com sua mãe. Muita coisa se passou desde sua traumática separação. Obrigado a viver longe desta, teve que operar desvios em seus investimentos libidinais, conheceu pessoas, fez novas ligações, viveu novas perdas (pedras em seu caminho), aprendeu a cantar... Canta sua dor, sua mágoa, mas também canta desde um lugar que, inicialmente perdido, não fora abandonado:

"Você veio para me fazer feliz para minha vida alegrar nasceu do fruto do amor e para sempre eu vou te amar Criança rala(rara)* beleza que me traz tanta emoção é meu céu e a estrela tomou conta do meu coração me enche de alegria brilha mais do que o sol por isso eu vou gritar pro mundo que o nome dela é..."

(*) Este foi um "lapso" das crianças.

Como conclusão algumas questões permanecem para que pensemos juntos. A primeira e principal é que Luís não contava com um espaço apropriado para ajudá-lo na elaboração de suas próprias questões, afinal as questões apresentadas nesta reflexão são minhas, não sabemos se poderiam ser dele também. Desde que demarcando territórios de conhecimentos, respeitando o que há de singular e que diz respeito à própria subjetividade de cada uma desta crianças, não seria possível pensar em algo que tenha a ver com uma clínica de uma infância, infância às vezes já perdida em função de uma morte prematura e noutros casos em risco e vias de perder-se pelas ruas? Qual o sentido de uma clínica destas? Seria a tentativa de refazer, recriar, ou ainda, criar novos laços, nova ligações? Propiciar algum sentido para estas vidas, que afinal de contas, insiste em ser vivida? Restituir a estas crianças um lugar que ficou perdido, embaralhado e ameaçado no desejo dos pais? E de que ordem é este desejo? Pode-se pensar que não houve, que uma criança possa não ter tido notícia deste desejo?

Apesar deste trabalho não exibir um relato de caso de atendimento clínico, ele nos indica a possibilidade e necessidade que têm estas crianças em falar de suas vidas e coloca a psicanálise como uma escuta possível para operar nestes territórios.

Verônica Mendes de Melo

E-mail: veronicamelo@uol.com.br


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