Rev. Med., São Paulo, 78 (2 pt.2):201-7, 1999.
Edição Especial
 
LESÃO DA MEDULA ESPINAL E DA CAUDA EQÜINA
Manoel Jacobsen Teixeira*, Luis Augusto Carvalho Rogano**, Eliseth Leão Dobbro***



Teixeira, M.J., Rogano, L.A.C., Dobbro, E.L. Lesão da medula espinal e cauda equina. Rev. Med., São Paulo, 78 (2 pt. 2):201-7, 1999.
Descritores: Dor. Traumatismo da medula espinhal. Cauda eqüina.


 

INTRODUÇÃO

A dor é uma séria complicação em doentes com lesão da medula e de raízes espinais3,14,16,42,45,57. A freqüência de síndrome álgica nessas entidades varia entre 6,4% e 100% dos casos, de acordo com o método de estudo empregado10,39,40,42,45. A dor é incapacitante em 27% a 40% dos doentes33,42,45. Cerca de 10% dos doentes necessita de tratamento neurocirúrgico para o controle da dor8,14,16,28,45,53. A lesão medular ou de cauda eqüina causa comprometimento importante de várias funções fundamentais na vida do paciente. O doente lesado medular experiencia marcantes reações físicas e comportamentais psíquicos (difíceis de serem mensuradas) que indubitavelmente comprometem qualidade de vida. A dor resultante contribui para comprometê-la ainda mais. Lundqvist et al (1991)32 verificaram que a dor foi a complicação que mais se relacionou com os menores valores nos escores de qualidade de vida nos lesados medulares.

A qualidade de vida é conceito bastante amplo que envolve o bem estar físico e mental e material, a relação as outras pessoas, as atividades sociais, comunitárias e cívicas, o desenvolvimento pessoal, o trabalho, a realização das atividades de vida diária e de lazer. Estas e outras, categorias são intensamente comprometidas no lesado medular. Freqüentemente, há dificuldade em se estabelecer os limites precisos entre a incapacidade associada à dor e as deficiências conseqüentes da lesão medular19. Os indivíduos com lesão medular com dor (Mariano 1992), apresentam-se psicossocialmente mais comprometidos que os indivíduos sem dor crônica34. Nem sempre, entretanto a dor repercute em melhora da qualidade de vida, pois, para alguns, a dor parece ter menor significado se comparado ao impacto da incapacidade da própria lesão medular.

ASPECTOS CLÍNICOS

Traumatismos, neoplasias, processos inflamatórios, afecções vasculares e acidentes operatórios são as causas mais comuns da mielopatia associada à dor4,39,40.

A dor é usualmente referida em regiões nas quais a sensibilidade está parcial ou totalmente comprometida4,39,40 sendo mais freqüente quando são lesadas as porções caudais da medula espinal do que as rostrais. Foi observada em 15% das lesões cervicais, em 24% das torácicas e em 51% das lesões torácicas caudais e lombares, na casuística de Tasker e Dostrovsky (1989)57. Segundo estes autores, a dor iniciou-se imediatamente após a lesão em 31% dos doentes e 2 anos após em 8%. Apresentou modificação quanto à intensidade e características em 7% dos doentes. Esses achados também estão de acordo com os descritos por outros autores4,57,63. É descrita como queimor e formigamento constantes em cerca de 50% dos doentes4,16,29,40,42,63 como aperto, torção ou cãimbra em 25% e como pontada (Boivie)em 20%57. Sensação de choque é mais comum nas lesões parciais das porções caudais da medula espinal45. Pode manifestar-se continuadamente ou em crises, com duração de 1 a 5 minutos dor de transição23. Pode ser desencadeada por automatismos musculares, modificações da pressão atmosférica, umidade ambiental e emoções14.

A dor do indivíduo com lesão medular é classificada de modo variado. Donovan106 a classificou-a em 5 tipos: fantasma, radicular, difusa por lesão da cauda equina e visceral, Burke9 a classificou em 3 tipos: radicular, visceral e muscular, Fellosa18 como radicular, por deaferentação e miofascial e Frisbie21, como central, miofascial e siringomiélica. A não uniformização da classificação demonstra a variabilidade dos padrões dolorosos que ocorrem no lesado medular. Freqüentemente, vários padrões estão presentes. A dor na lesão medular pode, portanto, ser de natureza neuropática,segmentar em faixas da transição, fantasma, radicular visceral, decorrente de anormalidades do aparelho locomotor e psicogênica.

A dor neuropática pode ser radicular em faixa de transição ou fantasma. A dor radicular decorre da irritação ou lesão de raízes nervosas. A dor por desaferentação pode ocorrer na faixa limítrofe entre a zona de anestesia e a de sensibilidade normal onde associa-se, comumente, à hiperpatia57.

Pode ser confundida com dor resultante de lesão radicular onde associa-se, comumente, à hiperpatia. É geralmente assimétrica, bilateral e muito comum em lesões do cone medular. Em 45% dos doentes, há zona de gatilho63. A dor fantasma localiza-se, freqüentemente, na região sacral e na porção distal dos membros inferiores, mas pode ocorrer, com intensidade variada, em qualquer região desaferentada14,16. Sensação de postura e de movimentação anormal dos segmentos desaferentados não é incomum. O fenômeno fantasma normalmente é indolor e, freqüentemente, surge entre o sexto e o décimo-segundo meses após a lesão medular45. É aliviada pela estimulação das regiões próximas à desaferentada ou pela ativação de estruturas corticais e subcorticais supressoras34. A lesão da cauda eqüina freqüentemente acarreta dor e queimor na região perineal e nos membros inferiores8,14. Dor pseudotabética é observada em pequeno número de doentes em que foi realizada laminectomia para o tratamento de hérnia discal60. Nessa eventualidade, alodínea e hiperpatia podem ser observadas.

Cerca de 5% dos doentes11 apresenta dor com características viscerais: sensação de plenitude abdominal, queimor ou cólica referida no abdômen ou na pelve, náusea, hiperemia cutânea, cefaléia, sudorese, piloerecção e taquicardia, desencadeados pela distenção vesical e retal16,39,40. Infecções urinárias, obstrução da drenagem vesical, obstipação intestinal, doença péptica, doenças inflamatórias do aparelho digestivo e genital, doença coronariana são eventos comuns em lesados medulares e constituem razões de instalação da dor visceral ou do agravamento da dor neuropática. A dor visceral é atribuída à transferência da informação nociceptiva através das estruturas do sistema nervoso neurovegetativo16. Em casos de traumatismo, a dor pode ser decorrente de alteração anatomofuncional de estruturas de sustentação, situação em que é agravada pela movimentação16,63. Síndromes dolorosas miofasciais são também comuns nos lesados medulares.

O componente psicoafetivo da dor mielopática é agravada pelas incapacidades motoras, sensitivas, sexuais, esfincterianas, neurovegetativas e pelas repercurssões sociais e cosméticas destas resultantes. Intensidades de dor mais elevadas são associadas aos componentes emocionais e cognitivos mais que aos fisiológicos da dor. Indivíduos que consideram experiência dolorosa com cunho mais negativo expressam a dor mais intensamente, que os que melhor adaptados à limitação físico-funcional13,55.

A dor por desaferentação pode decorrer da lesão total ou parcial da medula espinhal. É necessária a lesão do trato no espinotalâmico ou do trato de Lissauer para a instalação da dor6,39,40. A lesão isolada dos funículos posteriores não é causa de dor desaferentação. A dor segmentar em faixa de transição é atribuída à liberação da atividade nociceptiva segmentar60 em decorrência da lesão do trato de Lissauer34. A dor fantasma nos segmentos desaferentados distais é atribuída à hiperatividade neuronal segmentar e supragmentar decorrentes da hipoatividade do sistema surpressor de dor30,31 ou à modificação do padrão de chegada dos estímulos sensitivos ao tálamo4. Em todas estas condições, o comprometimento da aferência de estímulos aferentes gera modificações nos interneurônios caracterizadas, basicamente pela expansão dos campos receptivos, desorganização sináptica e sensibilização de seus receptores. Concomitantemente, os sistemas supressores de dor em várias regiões do sistema nervoso central deixam de atuar adequadamente. Da hipoatividade do sistema supressor e da aberrância morfofuncional segmentar e manifestam-se a dor paroxistica, a alodínia e a hiperpatia27, especialmente nas áreas de transição em que a sensibilidade cutânea normal cede lugar a região onde a sensibilização está alterada. A dor, em casos de lesão de cauda eqüina, é decorrente da desaferentação e da geração de potenciais ectópicos nas raízes nervosas lesadas57.

Dados de escaras, infecções, lesões do aparelho locomotor, anamnese e de exame físico visando a identificar aspectos sensitivos, avaliativos, afetivos, topográficos, periocidade e fatores agravantes e deterrminantes da dor é fundamentais para o diagnóstico da natureza da dor, da condição nosológica e de topografia da lesão. Exames laboratoriais hematológicos, bioquímicos do sangue exame de urina, o exame do líquido cefalorraquidiano, radiografia estática e dinâmica da coluna vertebral, radiografia do tórax e quadris, exames de imagem das vias urinárias, tomograia computadorizada e a ressonância magnética nuclear da medula espinal e os exames eletrofisiológicos permitem às vezes, precisar o diagnóstico e as causas10,61.

A lesão medular resultar em cavitação siringomiélica. A cavitação pode ascender por deaferentação manifestou-se acima do nível da lesão60.

As atividades de vida diária e de funcionalidade são um dos principais indicadores mais importantes de qualidade de vida7. No nosso meio o significado da qualidade de vida nos indivíduos com lesão medular e com dor crônica ainda precisam ser melhor estabelecidos para que métodos de avaliação mais adequados sejam planejados.

TRATAMENTO

Quando a redução da dor resulta em restauração da função e melhor desempenho nas atividades de vida diária, obtém-se melhores resultados quanto à qualidade de vida naqueles em que, embora a dor, não foi adequadamente controlada. As expectativas dos doentes em relação ao prognóstico e ao tratamento são muito variadas e interferem nos resultados terapêuticos. O suporte social em doentes com deficiência também promove a saúde, proporciona a elaboração de estratégias de enfrentamento mais efetivos, favorece a adaptação do indivíduo ao novo estilo de vida e apresenta íntima relação com o bem estar psicológico56. Tais constatações ressaltam não só a importância da reabilitação global do indivíduo, como a necessidade do desenvolvimento estrutural em diversos segmentos sociais que minimizem os aspectos preconceituosos que ainda envolvem a deficiência.

A qualidade de vida é um conceito dinâmico. Portanto, as necessidades individuais podem sofrer alterações no transcorrer do tratamento. O controle da dor, a realização das atividades de vida diária com o maior grau de independência possível, a recuperação da funcionalidade são essenciais nos pacientes com lesão medular60,61. Aliviá-los dessa parcela do sofrimento constitui apenas uma das etapas almejadas pela equipe multidisciplinar envolvida no complexo processo do restabelecimento do equilíbrio biopsicossocial e de reintegração à sociedade dos lesados medulares. O tratamento deve ser direcionado, para a profilaxia da sua ocorrência, exclusão do agente causal, eliminação dos fatores que agravam a dor instaslada e a correção dos fenômenos biológicos que causam a dor e medicas analgésicas sintomáticas.

Controle da ansiedade e da depressão, esclarecimento das situações, reabilitação precoce uso correto de próteses e de cadeira de rodas e o retorno do doente ao seu ambiente natural são medidas profiláticas fundamentais57. Cuidados fisiátricos são fundamentais para a prevenção de amiotrofias, escaras de decúbito e de lesões articulares e para o tratamento das síndromes dolorosas miofasciais. Medidas ortopédicas são úteis para tratamento da dor resultante de disfunção ou lesão de estruturas de sustentação. A intervenção urológica visando à correção das disfunsões vesicais, especialmente a retenção urinária, refluxo vesico-uretral e infecções urinárias é também da fundamental importância.

Vários procedimentos foram propostos para a terapêutica da dor aguda crônica e associada a lesões radículo-medulares10,16,42. Na fase aguda, os analgésicos antiinflamatórios e os morfínicos podem ser utilizados. Os anticonvulsionantes antineurálgicos são úteis para o tratamento da dor paroxística segmentar e da dor fantasma1,12,15,22,39,40. Os antidepressivos tricíclicos e as fenotiazinas podem ser úteis para o tratamento da dor segmentar e da dor fantasma16,45,58. As infiltrações dos pontos-gatilhos, das disfunções miofasciais, são muitas vezes, necessárias10,14,16. Bloqueios anestésicos peridural usualmente não beneficiam doentes com dor mielopática, mas são uteis para tratamento da dor resultante da irritação de raízes nervosas10,16. A administração de morfina e derivados por via intratecal é eficaz em, 80% dos pacientes18,62. Bloqueios anestésicos da cadeia neurovegetativa simpática e/ou simpatectomia também não costumam melhorar a síndrome álgica10,65. A neurólise química e a rizotomia, comumente, também não beneficiam esses doentes8,10,14,46. Com a finalidade de reduzir a transferência das informações nociceptivas resultantes da hiperatividade neuronal segmentar para as unidades rostrais no neuroeixo, cordotomia anterolateral e mielotomia foram propostas para tratamento da dor resultante da lesão da medula espinal e das raízes nervosas8,31,34,64,65. A mielotomia transversa, realizada 2 a 3 segmentos acima daquele em que a lesão está presente, pode aliviar, pelo menos temporariamente, a dor radicular e no território de transição65. A mielotomia extraleminiscal cervical estereotáxica é uma opção útil em muitos casos49. A cordotomia alivia a dor aguda em pontada, dolorimento e cãimbra e a dor evocada pelos estímulos da zona de gatilho, mas não a dor constante, em queimor, ou o desconforto referido nos membros inferiores ou na região perineal65. Pode melhorar também a dor gerada pelas lesões da cauda eqüina65. Dentre 25 doentes com dor resultante de lesão mielorradicular, da casuística de Tasker e Dostrovskv (1989)57, a cordotomia proporcionou alívio da dor intermitente lancinante em 70% dos doentes e melhora da dor constante em 47%. Ocorreu melhora da dor em 70% dos doentes com lesão do cone medular e da cauda eqüina e, em apenas 40%, dos casos com lesão situada nas porções rostrais da medula espinal. Resultados semelhantes foram observados por outros autores14,39,40,41,50. Cumpre ressaltar, entretanto, que a cordotomia pode ser causa de dor mielopática em cerca de 1/5 dos doentes a longo prazo65. A ressecção da área sensitiva principal foi utlizada para tratamento da dor mielopática em poucos doentes, mas os resultados foram insatisfatórios65. A lobotomia frontal37,50,65 proporciona bons resultados mas à custa de graves seqüelas mentais14,39,40,41. A cingulotomia proporciona melhores resultados que a lobotomia porque não agrava significamente as funções mentais, mas o número de casos publicados é pequeno5,39,65. A lesão do trato de Lissauer e do corno posterior da medula espinal é indicada para o tratamento da dor em doentes com quadro de secção completa da medula espinal ou da cauda eqüina2,26,48,59. Os resultados observados nos poucos casos publicados na literatura revelam que a lesão do trato de Lissauer e do corno posterior da medula espinal e proporciona resultado inicial satisfatório em 8,5% a 100% e beneficia cronicamente 45,5% a 80% dos doentes com dor mielopática traumática20,47. Proporciona melhora significante da dor segmentar em 80% dos doentes, da dor unilateral em 90% dos casos e da dor distal e sacral fantasma em 32% a 35,8% dos casos20. Não melhora expressamente dor mielopática de doentes com esclerose múltipla60. Alivia significativamente a dor gerada pela estimulação da zona de gatilho36. Menos de 10% dos doentes com fibrose lombo-sacral resultante de laminectomia para o tratamento de hérnia discal lombar benefecia-se com esta técnica43,48. Numerosas complicações neurológicas foram descritas após este procedimento em casos em que há preservação parcial da função das raízes lombo-sacrais ou da medula espinal incluíndo-se, entre elas, hipoestesia da região genital e dos membros inferiores, déficit motor, incontinência esfincteriana e impotência sexual43,48,60.

Alívio significativo da dor resultante de lesão medular, foi observada após a estimulação transcutânea, em menos de 6%52. Há evidências de que a estimulação da medula espinal seja eficaz para o tratamento da dor mielopática segmentar e nas regiões parcialmente desaferentadas37. Os resultados iniciais são satisfatórios em menos de 50% dos casos. Após o primeiro ano, apenas 20% dos doentes mantém o quadro álgico controlado4,45. Pode também melhorar a dor segmentar de alguns casos16. Maus resultados são observados com este procedimento em casos de secção completa da medula espinal e de cauda equina29,45,60. Este fato parece ser devido à intensa degeneração das estruturas do funículo posterior em casos de lesão medular completa29,45. Foram descritos casos isolados de melhora de doentes tratados pela estimulação dos núcleos talâmicos sensitivos48, lemnisco medial35 e substância periaqüedutal mesencefálica44,54. A estimulação do tálamo, da cápsula interna e do lemnisco medial beneficia cerca de 1/3 dos doentes17,24,25,51,66.



Teixeira, M.J., Rogano, L.A.C., Dobbro, E.L. Injury of spinal cord and of cauda equina. Rev. Med., São Paulo, 78 (2 pt. 2):201-7, 1999.
KEYWORDS:  Pain, Spinal cord injuries. Cauda equina

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Manoel Jacobsen Teixeira
* Professor Doutor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, FMUSP. Diretor da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, HC/FMUSP.

Luis Augusto Carvalho Rogano
** Médico Neurocirurgião e Pesquisador do Centro de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, HC/FMUSP

Eliseth Leão Dobbro
*** Enfermeira Pesquisadora do Centro de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, HC/FMUSP


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