Anamaria Kovács é carioca, tem
54 anos e vive em Blumenau desde 1976. Formou-se
em Comunicação Social e fez o doutorado em Letras.
Trabalhou em jornais do
Rio de Janeiro e de Blumenau, na Universidade Federal
Fluminense e na Universidade Regional de Blumenau. Publicou,
entre outros, os livros infantis O
Pingüim que Procurava o Sol e O
Burrinho que Calculava, e os infanto-juvenis O Monstro Atômico e O Canto da Sereia.
Contos
Minimax:
“Papai, eu quero um
pônei!” Ó
Aquele foi o começo de um longo calvário.
A pequena era filha única, mimada, o pai,
executivo.
Mas não
foi ele o crucificado.
O
sacrifício foi mesmo do pônei, um ano depois que o pai perdeu
o emprego e não havia mais nada para comer.
*
Uma Coincidência Ó
As
dondocas lotavam o banheiro feminino do clube, no intervalo do
biriba beneficente,
cacarejando comentários na fila do WC.
Quando a porta se abriu, porém, uma onda de choque varreu a
sala. As mulheres contemplaram com repulsa o retardado
inocente, que lhes sorria desdentado, enfrentando com olhos
límpidos aquele muro de asco:
- Oi!-
ele disse. Uma das mulheres, forçando um sorriso, o rosto
inundado de lágrimas, soprou:
-
Oi...
Seu
filho também era assim.
*
Conto de Natal Ó
Na
agência do Correio, apinhada, a fila avançava lentamente.
Suzana
sentiu que chamava a atenção, com seu short ousado e o decote
generoso, mas não se importou.
Ignorou
os comentários das mulheres, os olhares dos homens. Os cabelos
escondiam-lhe a cara, que enfiava de vez em quando no braço do
seu homem, num desafio. Finalmente, despacharam o enorme
pacote.
- Você
foi tão bom, amorzinho... Toda essa comida pra mamãe...
*
Namorados Ó
Chovia na
praça, bem na hora em que haviam marcado o encontro. Mesmo
assim, ele esperava, todo encolhido.
Mas era
chuva de verão, e, de fato, logo passou, reacendendo-lhe as
esperanças.
A maré do
“rush” subiu e desceu, e, à luz dos lampiões e da lua, a praça
sonhava, plácida.
Derrotado, ele convencia-se já de que ela
não viria, quando um rufar de asas fê-lo erguer a cabeça.
Feliz, o
pombinho branco voou do encosto do banco para o chão, a fim de
recepcionar a amada.
*
Um mundo à parte Ó
Jorge e Sandra, sentados no banco da
praça, bem juntinhos, trocavam carícias e juras de amor.
À volta
deles, porém, o povo agitava-se: mulheres cansadas reclamando,
crianças choramingando, o pessoal da fila do ônibus xingando o
governo, xingando a vida.
As
turbinas de um avião a jato afogaram-se na freiada do ônibus,
enquanto a balbúrdia continuava, em torno da sua ilha de
paz.
Jorge e
Sandra só tinham ouvidos um para o outro, e olhos não tinham
para nada, cegos que eram.
*
A Dançarina do
Templo Ó
Quando
Swami anunciou que queria ser bailarina do templo, o mundo de
sua mãe desmoronou. A menina, porém, não desistiu.
Sabia o
que a esperava: a partir dos treze anos, serviria aos deuses,
dançando todos os dias; não se casaria, não teria filhos, e,
quando envelhecesse, trabalharia na cozinha, na limpeza ou na
costura, até morrer.
A mãe fez
uma última tentativa:
- É tão
importante para você, agradar aos deuses? Você os ama tanto
assim?
- Não é
aos deuses que eu amo, mamãe. É a dança!
*
Contos:
LIBERDADE,
LIBERDADE Ó
Para
Lilo
Meia-noite. Os foguetes clareiam o céu. Os
móveis da varanda aparecem e desaparecem, como dançarinos sob
a luz estroboscópica duma discoteca. O barulho é infernal. Os
cachorros da vizinhança, apavorados, latem seu protesto contra
a loucura dos homens. Na casa em frente, as luzes estão todas
acesas e o pessoal canta, grita e estoura champanhas, entre
beijos e abraços nem sempre inocentes. Eu os conheço tão
bem...
Eles
devem estar admirados de ver as luzes acesas aqui. E de
ouvirem o samba-enredo que pus no volume máximo – se o seu
próprio barulho o permitir, é claro. Sei que há muitos olhos
cravados nas minhas janelas, disfarçadamente, como é o jeito
deles. Estão sempre me observando. Não é paranóia minha, não.
Eles é que são bisbilhoteiros – tanto os homens quanto as
mulheres. As intenções é que diferem...
Mas hoje
eu não quero pensar em nada disso. Hoje é um dia especial – o
meu dia, só meu, de mais ninguém! O dia da minha liberdade:
independência e vida! Não independência ou morte, ah, não –
porque o que eu quero, daqui para a frente, é viver, como não
pude viver até agora, sendo eu mesma, indo para onde eu
quiser, à hora que bem entender, com quem eu quiser.
Eles
devem pensar que enlouqueci, o que, aliás, nem seria de
espantar, depois do que passei. Letícia, principalmente. Ela
não me entenderá nunca. Como pode uma jovem ser tão velha?
Ainda vejo o seu espanto quando anunciei que ia passar o
réveillon sozinha. Primeiro, pensou que eu estivesse na fossa.
Eu, hein! Depois, que ia receber alguém. Seria interessante,
mas em outra ocasião, não hoje. O dia de hoje é só meu! Ouço a
voz dela: “Mas, mamãe, que idéia mais absurda! O que é que os
outros vão pensar?”
Ora, não
dou a mínima para o que pensa esta gente. Nunca me importei
com a opinião deles. Acho que têm é inveja. Eles jamais
puderam me dominar com seus mexericos, suas fofocas, suas
mentes sujas e a vileza do seu caráter. Se me vissem, agora,
certamente pensariam que enlouqueci, e espalhariam pela
cidade: “Aline está pirada! Passou o Ano Novo sozinha em casa,
cantando e dançando. Deve ter bebido, é óbvio! Dor de
cotovelo, só pode ser, embora ela não o admita...”
Dor de cotovelo, ha, ha! Como se eu
fosse capaz de correr atrás daquele vagabundo mulherengo que
me desgraçou a vida... Esperei foi demais, isso sim! Na
verdade, deveria ter me livrado dele há muito tempo, quando
Letícia tinha seus doze, treze anos. Naquela época, sim, eu
teria conseguido reconstruir a minha vida, voltar a trabalhar,
encontrar, talvez, um novo amor, um pai de verdade para ela e
um companheiro mais digno para mim...
Enfim,
está feito! Foi ele quem saiu com seus trastes e eu fiquei com
toda a razão. A pobre esposa abandonada... E quantos já
apareceram para consolá-la! Posso me orgulhar do meu “charme”
, na meia-idade, com tanto broto atrás de mim... Na verdade,
não acredito em nenhum deles: devem estar apostando, entre si,
quem chegará primeiro à cama de Aline... Mas o que eles não
sabem, é que será Aline quem escolherá, e não eles. E que será
Aline quem determinará dia, hora, lugar; e, finalmente, que
será Aline, também, quem dirá ao escolhido: “Foi bom enquanto
durou, querido, mas agora não quero mais. Adeus!”
Ah, a surpresa que terão!
Este
caviar está delicioso... E o champagne, perfeito. Maldito
telefone! Quem será? Letícia, o que houve? Mas eu já não lhe
disse, filha, pare de se preocupar! Obrigada, querida, feliz
ano novo pra você também! Você está se divertindo, aí? Que
bom! Eu também! É claro que estou feliz... Entenda, Letícia:
estou comemorando o início de uma vida nova, sem grilos, sem
discussões, sem suspeitas... Não estou deprimida, de jeito
nenhum: botei o meu vestido branco, decotadíssimo, já sambei
adoidado, bebi meia garrafa de champagne, jantei, belisquei o
caviar – enfim, fiz tudo a que tinha direito! Quê? Sozinha,
sim! Você ainda pensa que estou acompanhada? Bem, querida...
Pense o que quiser, não me incomodo. Trate de se divertir aí
no clube. Tchau!
O estoque
de foguetes acabou. Ainda há uns sinos badalando, carros
tocando buzinas na rua. Os vizinhos dançam abraçados – ainda
há umas trinta pessoas por lá, a rua está cheia de carros
estacionados. De vez quando, eles ainda olham para cá. Billie
Holiday choraminga um “blues” ... tirei os sapatos... apaguei
a luz. Assim vejo melhor as estrelas. O cheiro de pólvora
ainda está no ar, enjoativo, misturado ao perfume das
flores de laranjeira.
O ano
novo está começando. A minha vida está começando. Para trás
ficou uma velha carcaça, azeda, revoltada, doente, cheia de
lembranças desagradáveis. Eu sou a mariposa que seca as asas à
luz da lua, e ensaia o primeiro vôo na brisa da
madrugada!
*
NATAL (EM)
BRANCO
Para Faleiro
23 de dezembro
Enfim!
Instalado nessa enormidade de chalé. Nunca vi coisa igual:
três andares, cinco suítes, três salões de estar, varandas em
toda a volta, um bar imenso e bem abastecido, aparelhagem de
som de última geração, home theater, o escambau! Muito melhor
– e mais barato – que um hotel. Além disso, é claro, tenho a
companhia dos amigos.
Mirá e
Henri me trouxeram no seu carrinho, ela apavorada com as
curvas e os abismos da estrada. Chegou a pedir que eu sentasse
na frente, ao lado do marido, só para não ver os precipícios.
Ele não disse nada, mas percebi que não gostou. Depois da
nossa troca de lugares, o ambiente ficou tenso. Tentei
remendar a situação, puxei assunto, mas só recebi monossílabos
(dela) e grunhidos (dele). Acabei desistindo e passei a curtir
a paisagem alpina. Graças a Deus, as montanhas não me
assustam!
Fomos os
primeiros a chegar. Logo depois vieram os Stilts – Bob,
psiquiatra como Henri e seu colega de faculdade na Sorbonne,
sua filhinha Meg, de uns nove ou dez anos, e a segunda mulher
dele, Jeanne, uma francesa miúda e bem-humorada. O último a
chegar, perto do meio-dia, foi Rainer, o colega alemão de
Henri, divorciado, reservado, frio. Não fui com a cara
dele.
Estamos
com sorte, por enquanto, na questão do tempo. Temos céu azul,
sol, a neve está firme, ótima para esquiar. A estação de esqui
é aqui pertinho. Estou resolvido a não deixar passar mais um
inverno sem ter ao menos tentado aprender este difícil
esporte. Tenho cá minhas dúvidas... Acho que teria sido
preciso nascer europeu para esquiar com elegância – assim como
só um brasileiro – e carioca! – é capaz de sambar com
perfeição.
24 de dezembro
Que
estranho dia o de hoje! Começou com um ambiente pesado, já de
manhã. A fobia de Mirá está piorando: não quis sair de casa,
nem para nos ver esquiar. Minha tentativa redundou em fracasso
total, mas diz o instrutor que é assim com todos. Sei não... O
pior é tentar levantar depois do tombo, com os esquis
estorvando as pernas e aqueles paus, cujo nome esqueci, a
encherem as mãos. Um sufoco! Ainda bem que ninguém riu.
Provavelmente eram todos suíços; nunca vi gente mais
desprovida de senso de humor...
À tarde,
quando caminhava pela varanda, surpreendi uma ácida discussão,
em voz baixa, entre Jeanne e Bob. Tive que ouvir, dado o
silêncio ao redor.
- Que mal
há em dar-lhe a boneca? – sussurrava Jeanne. Parecia
perplexa.
- Eu a
criei de modo a não ter falsas expectativas.
- Mas,
Bob, todas as crianças ganham presentes no Natal!
- Menos
Meg. Esse era um dos poucos pontos em
que Elizabeth e eu concordávamos. Se ela
ganhar um presente, uma vez, no Natal, achará que teremos a
obrigação de presenteá-la sempre. E pode ser que não tenhamos
condições, algum dia.
- Isso é
ridículo! – Indignada, Jeanne afastou-se e esbarrou comigo,
que vinha poucos passos atrás e ainda não dobrara a
esquina.
Quando
voltei à sala de estar, pensei que os homens também tivessem
brigado. Henri entrincheirara-se atrás de um jornal. Rainer
mastigava seu cachimbo e lia um livro de Psicanálise, parando
de vez em quando para fazer anotações nas margens. O silêncio
era espesso. A pequena Meg, lá fora, era a única que parecia
divertir-se, fazendo um boneco de neve.
Ninguém
falou em comemoração do Natal. À noite, sugeri que fôssemos a
um restaurante. Meg abraçava a sua boneca e lançava sorrisos
radiosos para Jeanne, quando o pai não estava olhando. O
jantar foi desanimado. Parecíamos um grupo de autistas, cada
um trancado em seu mundo particular. Ah, que saudade do meu
Natal de tradição portuguesa, com bacalhoada, rabanada e
cerveja gelada, em pleno calor carioca, um presépio
extravagante cada vez mais cheio de bonequinhos e enfeites,
meus sobrinhos correndo feito loucos pela casa! E depois da
solenidade da Missa do Galo, a alegria dos presentes, toda a
nossa espontaneidade explodindo em risos e abraços, acabando
em danças até às três da manhã!
Sinto-me
deslocado no meio dessa gente. Parece que é inverno também em
suas almas, e seu coração congelou.
26 de dezembro
Nem me
animei a fazer anotações, ontem. O ambiente continua o mesmo.
Uma pasmaceira geral. Tentei ler a nova antologia de autores
brasileiros que trouxe, para preparar um pouco as aulas do
próximo semestre, mas não consegui concentrar-me. Para que é
que Mirá me convidou??
Não
entendo como esses homens, colegas de universidade e de
profissão, possam ter algo em comum.
Não conversam, mal se comunicam com as
próprias mulheres. Tornei-me companheiro de Meg, a quem contei
lendas brasileiras. Ela adorou as histórias sobre onças e
jabutis, a Iara, o Curupira, a Mula-sem-Cabeça...
Hoje de
manhã, Jeanne, Bob e eu fomos esquiar. Rainer continua
isolado. Tentei descobrir se está fazendo alguma pesquisa
importante, uma tese ou algo assim, mas olhou-me sem
responder, como se fosse eu o mal-educado. Acho que é biruta,
isso sim. Às vezes, lê dois livros ao mesmo tempo, sempre
mastigando o cachimbo apagado. Parece comparar os textos: lê
um, depois o outro, volta ao primeiro, anota alguma coisa num
caderninho. Às vezes, murmura alguma coisa entre os dentes.
Mirá
criou raízes na sala de estar. Lê jornal, boceja, passeia pela
casa, mas não sai nem arrastada. Henri está contrariado, o que
o torna ainda mais fechado e carrancudo que o normal. Hoje à
tarde, descobri uns clássicos de jazz num armário – Cole Porter, Louis
Armstrong – boas gravações. Tentei tocar um. Mal coloquei o
disco no prato, recebi olhares fulminantes de todos os lados.
Tive vontade de sumir!
- Vocês
não gostam de jazz? – perguntei, sorrindo amarelo.
Para
variar, ninguém respondeu. A princípio pensei, “bolas, que se
danem, se quiserem silêncio que troquem de sala; temos três à
disposição!” Claro, acabei desligando o aparelho,
covardemente, e fui consolar-me com uísque, no bar da sala
contígua.
27 de dezembro
Bebo. É o
que me resta a fazer. Uma nevasca desabou durante a noite,
ameaçando acabar com a alegria dos esquiadores. Minha
tentativa de ontem foi a última. Desisti para sempre. Não dá.
Não tenho coordenação nem “molejo”, calculo mal as
distâncias, a neve me ofusca, apesar dos óculos de sol. Meu
negócio é mesmo literatura e samba! Dei fim no (parco) estoque
de uísque, mas descobri gim, Pernod, conhaque, poire e até (brr!) absinto. Espero não chegar
até lá!
Mirá está
cada vez mais deprimida. Agora anda encolhida pelos cantos,
sentindo um frio impossível, com as lareiras acesas o tempo
todo. Meg brinca com sua boneca, sob o olhar contrariado
(ainda!) do pai. Jeanne tentou aproximar-se de Mirá,
em vão. Ficou tão
frustrada que agora me faz companhia no bar, fumando um
cigarro atrás do outro. Rainer tornou-se inquieto; perambula
pela casa, às vezes falando sozinho em alemão, o eterno
cachimbo na boca. Tenho pena dele.
28 de dezembro
Nevou a
noite toda. Pela manhã, Henri, Bob e eu saímos para
desobstruir a porta de entrada e a saída da garagem até a
estrada. Eles cavavam e eu jogava sal na parte limpa. Não sei
se nosso trabalho valeu a pena, pois o céu carregado anuncia
mais neve. Mirá passou a roer as unhas enquanto olha para as
nuvens. Quase não fala. Durante o almoço, perguntou de
repente, com voz rouca:
- Já
pensaram se ficamos presos aqui?
- Uma
avalanche seria pior – comentou Bob, seco.
O papo
morreu ali mesmo.
29 de dezembro
Depois de
uma horrível tempestade, parou de nevar, graças a Deus! O céu
continua encoberto, mas diz a Meteorologia (que aqui tem um
bom porcentual de acerto) que o tempo tende a firmar-se.
Espero que tenham razão, de outro modo acabarei tornando-me
alcoólatra, de puro tédio...
Ontem à
noite, houve uma discussão entre Mira e Henri. Eles ocupam o
quarto ao lado do meu. Percebi que brigavam porque ele a
chamou pelo nome – Mireille – e não pelo apelido. Estava
exasperado com as atitudes dela, que classificou de infantis,
o que, evidentemente, não resolve nada. Estou cada vez mais
ansioso para sair daqui, mas faltam ainda quatro dias, ninguém
parece disposto a ir embora, e, como não tenho condução
própria, sou obrigado a ficar e curtir a fossa alheia.
2 de janeiro
Finalmente, o pesadelo acabou. E de
maneira terrível. No último dia do ano, Henri cismou de
esquiar, apesar da neve ainda não estar suficientemente firme
para isso. Mirá tentou dissuadi-lo, mas ele teimou
em sair. Acho que
queria escapar da atmosfera lúgubre do chalé, de qualquer
maneira. A neve, fofa e traiçoeira, derrubou-o e partiu-lhe a
perna esquerda em três partes. O hospital da estação só pôde
fazer o atendimento de emergência, já que a gravidade do caso
requeria uma cirurgia, possível somente em cidade maior,
próxima à fronteira francesa.
No chalé,
a depressão cedeu lugar ao desespero. Mira chorava, Jeanne
tentava ministrar-lhe um calmante, eu procurava consolá-la. Os
outros homens não se mexiam. Rainer fora para seu quarto. Bob
observava-nos, como se fôssemos cobaias num labirinto. Meg,
impressionada, enfaixara a perna de sua boneca e dizia que
também ela se machucara.
- Como
vamos removê-lo, meu Deus? – perguntou Mira.
Entreolhamo-nos. Eu não sei dirigir. O
estado de Mirá, mais a sua fobia, desqualificavam-na
igualmente. Encaramos Bob, todos ao mesmo tempo.
-
Impossível – disse ele – Somos três pessoas no carro, mais a
bagagem, e ele tem que viajar com a perna esticada.
Nesse
instante, Rainer apareceu. Carregava sua bagagem. Passou por
nós, a cabeça baixa. Ficamos esperando que voltasse, depois de
arrumar as malas no bagageiro. Minutos depois, porém, ouvimos
o motor do carro. Corri para fora a tempo de vê-lo afastar-se
rapidamente.
Quando
voltei à sala, Mirá chorava novamente, enquanto
Meg e sua madrasta tentavam confortá-la. Bob disse:
- O
hospital deve ter uma ambulância.
Fomos até
lá. O fato, porém, da outra cidade ficar além-fronteiras,
impedia a ambulância de levar o paciente. Finalmente,
conseguimos encontrar uma, particular, caríssima e
desconfortável – não tinha aquecimento – para fazer o serviço.
Que alívio!
O carro
de Henri foi levado a Paris por um motorista contratado, e
Mirá acompanhou o marido na ambulância.
Quanto a
mim, fui novamente tolerado no carro de Bob. Nevava forte, e,
lá dentro, a atmosfera estava carregadíssima. A frieza de Bob
chocara a mulher, que Não conseguia esconder sua decepção.
Parece que somente agora, após três anos de vida em comum, ela
o conheceu realmente, e não gostou da descoberta.
Meg
também estava triste. Teria que voltar ao seu cinzento
internato. De vez em quando, enxugava os olhos e assoava
discretamente o nariz. Tentei distrai-la, mas não funcionou.
Acabei fechando-me também; fiquei a cismar, enquanto lá fora
passava a paisagem branca, se, afinal, é mesmo aqui o meu
lugar, ou se devo seguir o apelo do meu coração, que há dois
anos clama desesperadamente pelo Brasil...
*
A
VISITA Ó
O grande
sonho se realizara. Enfim! Todas as testemunhas de OVNIS,
discos voadores, contatos imediatos de qualquer grau, puderam
finalmente exclamar: “Eu não disse?!”
Três
naves extra-terrestres entraram em órbita ao redor do nosso
planeta. Radiotelescópios e observatórios astronômicos foram
os primeiros a dar o alarme. A imprensa mundial lançou ao
redor do globo a incrível notícia: “eles” chegaram! A salvação
da humanidade, o fim do mundo, suicídios, celebrações, feriado
nacional, uma semana de festa na Bahia.
Quando as
naves estabilizaram a sua órbita sobre a cidade francesa de
Toulouse, outro frêmito agitou o mundo. Os franceses
interpretaram o gesto como a “consagração universal da sua
cultura”; os ingleses comentaram que os alienígenas “não
conheciam ainda a superioridade da Ilha sobre o Continente”;
os americanos, desesperados, tentavam em vão entrar em contato
com os visitantes, para provar que eram superiores à “velha
Europa”.
Foram os
E.T.s que iniciaram o contato,
pelo rádio. Um borbulhar rítmico e modulado formava a sua
linguagem. Em pouco tempo, porém, o estranho som foi
substituído pela voz sintética de um computador, que passou a
falar em... chinês. Os alienígenas justificaram sua escolha
pela quantidade de terrestres que dominavam essa língua, e
pela semelhança de seus conceitos e formação de frases com a
sua. O jeito foi (suspiro!) conformar-se e traduzir as
mensagens uma segunda vez.
Após
alguns dias, eles pediram que os técnicos de Toulouse
enviassem, em freqüência pré-determinada, imagens de TV para o
satélite estacionado sobre a Europa. Assim, eles poderiam
capta-las em seus aparelhos e ter uma idéia mais concreta dos
habitantes da Terra – sem esquecer, é claro, que estariam em
perfeita segurança dentro de suas naves, se não gostassem de
alguma coisa.
Eufóricos, os franceses apressaram-se em
enviar as imagens pedidas. De acordo com as mais avançadas
técnicas de comunicação, psicologia, ufologia, etc., foram
mandadas fotos dos palácios de Versailles, do Louvre, de
Paris, das parisienses, sob protestos indignados do resto do
mundo: E as mulatas brasileiras? E a estátua da Liberdade? E
as pirâmides? E a Rainha da Inglaterra?
Em
atenção à grita geral, os franceses resolveram, então, enviar
também imagens de outras espécies, extintas ou não, que
compartilhavam o planeta com o homem; documentários de Jacques
Cousteau, filmes de ecologistas franceses, fotos de Brigitte
Bardot com os bichinhos, foram transmitidos sob as vaias do
resto do mundo. Tentativas de entrar em contato com os
alienígenas por outros meios eram sistematicamente bloqueadas
por eles.
De
repente, um sinal imperioso cortou o fluxo de informações:
- Parem!
Queremos mais dados sobre o ser aquático com tentáculos,
mostrado no filme nº 3.244! Onde vive? Como se comporta?
Todas as
informações sobre polvos foram enviadas para as naves em
órbita, sob grande expectativa de todo o mundo.
Interromperam-se até as tradicionais hostilidades entre as
diferentes nações, povos, ideologias e religiões para
especular sobre o motivo do interesse dos estranhos pelos
humildes habitantes marinhos. Afinal, polvos são tímidos,
apesar da fama de perigosos, popularizada por filmes de
ficção-científica. Destacam-se, entre os moluscos, por sua
inteligência e capacidade mimética, e parecem comunicar-se
através de sinais luminosos e coloridos que lhes perpassam o
corpo em pulsações rítmicas.
Após 36
horas de suspense, a mensagem alienígena atingiu os terrestres
como uma pedrada:
- Estamos
muito emocionados. Acabamos de encontrar nossos semelhantes,
embora num estágio inexplicavelmente primitivo. Somos muito
gratos a vocês por isso. Passaremos, agora, a estuda-los mais
de perto, a fim de descobrir por que seu desenvolvimento e sua
natural tendência à civilização deixaram de acontecer.
Dito
isso, graciosamente, as três naves mergulharam no oceano. Ali
permaneceram. Após o choque inicial, os terrestres passaram a
preocupar-se com seus próprios problemas. Ocasionalmente, um
ou outro jornal sensacionalista mencionava movimentos
suspeitos na superfície do mar, no ponto onde as naves
mergulharam. Decorridos dois anos, os veículos alienígenas
levantaram vôo, e, sem mais palavras, desapareceram no
espaço.
Oceanógrafos vêm manifestando preocupação
com o aumento recente da população de polvos e
com sua nova capacidade de organização.
*
Poema:
B o
r b o l e t a s Ó
Asas
belas
Luminosas
asas
Transparentes vitrais
Ou
tenebrosas
Como
plúmbea noite
Asas
belas
Transparentes asas
Desdobradas à luz
Ofertadas
ao sol
Asas
belas
Noctívagas asas
Veludosas, inquietas,
Desabrochadas ao luar
Belas
asas
Condenadas
Hirtas,
mortas, espetadas
Em
almofadas de seda
E
bandejas sem gosto
Quem vos
vingará.
Belas
asas estendidas
Crucificadas
Para
nossa maldição?
Sonhando
à Beira-Rio
Primavera... Verão...
A
floração despenca
E
flutua
Na pele
do rio,
Flor
contra flor,
Num beijo
narcísico e circular,
Redemoinhando...
P r e g u
i ç o s a m e n t e...
Rumo
ao mar
Perdas &
Danos
Objetos
que se perderam...
Cartas
que se extraviaram...
Pessoas
que se foram...
Corações
que se partiram...
Objetos
que se foram...
Cartas
que não partiram...
Pessoas
que se perderam...
Corações
que se extraviaram...
*
Anamaria
Kovács |