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Anamaria Kovács   
Blumenau - SC
akovacs@terra.com.br

Anamaria Kovács é carioca, tem 54 anos e vive em Blumenau desde 1976. Formou-se em Comunicação Social e fez o doutorado em Letras. Trabalhou em jornais do Rio de Janeiro e de Blumenau, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Regional de Blumenau. Publicou, entre outros, os livros infantis O Pingüim que Procurava o Sol e O Burrinho que Calculava, e os infanto-juvenis O Monstro Atômico e O Canto da Sereia.

 

Contos Minimax:

 

“Papai, eu quero um pônei!” Ó 

                                                       

Aquele foi o começo de um longo calvário.

A pequena era filha única, mimada, o pai, executivo.

Mas não foi ele o crucificado. 

O sacrifício foi mesmo do pônei, um ano depois que o pai perdeu o emprego e não havia mais nada para comer.

 

*

Uma Coincidência Ó 

 

As dondocas lotavam o banheiro feminino do clube, no intervalo do biriba beneficente,

cacarejando comentários na fila do WC. Quando a porta se abriu, porém, uma onda de choque varreu a sala. As mulheres contemplaram com repulsa o retardado inocente, que lhes sorria desdentado, enfrentando com olhos límpidos aquele muro de asco:

- Oi!- ele disse. Uma das mulheres, forçando um sorriso, o rosto inundado de lágrimas, soprou:

- Oi...

Seu filho também era assim.

 

*

Conto de Natal Ó 

 

Na agência do Correio, apinhada, a fila avançava lentamente.

Suzana sentiu que chamava a atenção, com seu short ousado e o decote generoso, mas não se importou.

Ignorou os comentários das mulheres, os olhares dos homens. Os cabelos escondiam-lhe a cara, que enfiava de vez em quando no braço do seu homem, num desafio. Finalmente, despacharam o enorme pacote.

- Você foi tão bom, amorzinho... Toda essa comida pra mamãe...

 

*

Namorados Ó 

 

Chovia na praça, bem na hora em que haviam marcado o encontro. Mesmo assim, ele esperava, todo encolhido.

Mas era chuva de verão, e, de fato, logo passou, reacendendo-lhe as esperanças.

A maré do “rush” subiu e desceu, e, à luz dos lampiões e da lua, a praça sonhava, plácida.

Derrotado, ele convencia-se já de que ela não viria, quando um rufar de asas fê-lo erguer a cabeça.

Feliz, o pombinho branco voou do encosto do banco para o chão, a fim de recepcionar a amada.

 

*

Um mundo à parte Ó 

 

Jorge e Sandra, sentados no banco da praça, bem juntinhos, trocavam carícias e juras de amor.

À volta deles, porém, o povo agitava-se: mulheres cansadas reclamando, crianças choramingando, o pessoal da fila do ônibus xingando o governo, xingando a vida.

As turbinas de um avião a jato afogaram-se na freiada do ônibus, enquanto a balbúrdia continuava, em torno da sua ilha de paz.

Jorge e Sandra só tinham ouvidos um para o outro, e olhos não tinham para nada, cegos que eram.

 

*

A Dançarina do Templo Ó 

 

Quando Swami anunciou que queria ser bailarina do templo, o mundo de sua mãe desmoronou. A menina, porém, não desistiu.

Sabia o que a esperava: a partir dos treze anos, serviria aos deuses, dançando todos os dias; não se casaria, não teria filhos, e, quando envelhecesse, trabalharia na cozinha, na limpeza ou na costura, até morrer.

A mãe fez uma última tentativa:

- É tão importante para você, agradar aos deuses? Você os ama tanto assim?

- Não é aos deuses que eu amo, mamãe. É a dança!

*

Contos:

 

LIBERDADE, LIBERDADE Ó 

      Para Lilo                                                                                        

Meia-noite. Os foguetes clareiam o céu. Os móveis da varanda aparecem e desaparecem, como dançarinos sob a luz estroboscópica duma discoteca. O barulho é infernal. Os cachorros da vizinhança, apavorados, latem seu protesto contra a loucura dos homens. Na casa em frente, as luzes estão todas acesas e o pessoal canta, grita e estoura champanhas, entre beijos e abraços nem sempre inocentes. Eu os conheço tão bem...

Eles devem estar admirados de ver as luzes acesas aqui. E de ouvirem o samba-enredo que pus no volume máximo – se o seu próprio barulho o permitir, é claro. Sei que há muitos olhos cravados nas minhas janelas, disfarçadamente, como é o jeito deles. Estão sempre me observando. Não é paranóia minha, não. Eles é que são bisbilhoteiros – tanto os homens quanto as mulheres. As intenções é que diferem...

Mas hoje eu não quero pensar em nada disso. Hoje é um dia especial – o meu dia, só meu, de mais ninguém! O dia da minha liberdade: independência e vida! Não independência ou morte, ah, não – porque o que eu quero, daqui para a frente, é viver, como não pude viver até agora, sendo eu mesma, indo para onde eu quiser, à hora que bem entender, com quem eu quiser.

Eles devem pensar que enlouqueci, o que, aliás, nem seria de espantar, depois do que passei. Letícia, principalmente. Ela não me entenderá nunca. Como pode uma jovem ser tão velha? Ainda vejo o seu espanto quando anunciei que ia passar o réveillon sozinha. Primeiro, pensou que eu estivesse na fossa. Eu, hein! Depois, que ia receber alguém. Seria interessante, mas em outra ocasião, não hoje. O dia de hoje é só meu! Ouço a voz dela: “Mas, mamãe, que idéia mais absurda! O que é que os outros vão pensar?”

Ora, não dou a mínima para o que pensa esta gente. Nunca me importei com a opinião deles. Acho que têm é inveja. Eles jamais puderam me dominar com seus mexericos, suas fofocas, suas mentes sujas e a vileza do seu caráter. Se me vissem, agora, certamente pensariam que enlouqueci, e espalhariam pela cidade: “Aline está pirada! Passou o Ano Novo sozinha em casa, cantando e dançando. Deve ter bebido, é óbvio! Dor de cotovelo, só pode ser, embora ela não o admita...”

Dor de cotovelo, ha, ha! Como se eu fosse capaz de correr atrás daquele vagabundo mulherengo que me desgraçou a vida... Esperei foi demais, isso sim! Na verdade, deveria ter me livrado dele há muito tempo, quando Letícia tinha seus doze, treze anos. Naquela época, sim, eu teria conseguido reconstruir a minha vida, voltar a trabalhar, encontrar, talvez, um novo amor, um pai de verdade para ela e um companheiro mais digno para mim...

Enfim, está feito! Foi ele quem saiu com seus trastes e eu fiquei com toda a razão. A pobre esposa abandonada... E quantos já apareceram para consolá-la! Posso me orgulhar do meu “charme” , na meia-idade, com tanto broto atrás de mim... Na verdade, não acredito em nenhum deles: devem estar apostando, entre si, quem chegará primeiro à cama de Aline... Mas o que eles não sabem, é que será Aline quem escolherá, e não eles. E que será Aline quem determinará dia, hora, lugar; e, finalmente, que será Aline, também, quem dirá ao escolhido: “Foi bom enquanto durou, querido, mas agora não quero mais. Adeus!”  Ah, a surpresa que terão!

Este caviar está delicioso... E o champagne, perfeito. Maldito telefone! Quem será? Letícia, o que houve? Mas eu já não lhe disse, filha, pare de se preocupar! Obrigada, querida, feliz ano novo pra você também! Você está se divertindo, aí? Que bom! Eu também! É claro que estou feliz... Entenda, Letícia: estou comemorando o início de uma vida nova, sem grilos, sem discussões, sem suspeitas... Não estou deprimida, de jeito nenhum: botei o meu vestido branco, decotadíssimo, já sambei adoidado, bebi meia garrafa de champagne, jantei, belisquei o caviar – enfim, fiz tudo a que tinha direito! Quê? Sozinha, sim! Você ainda pensa que estou acompanhada? Bem, querida... Pense o que quiser, não me incomodo. Trate de se divertir aí no clube. Tchau!

O estoque de foguetes acabou. Ainda há uns sinos badalando, carros tocando buzinas na rua. Os vizinhos dançam abraçados – ainda há umas trinta pessoas por lá, a rua está cheia de carros estacionados. De vez quando, eles ainda olham para cá. Billie Holiday choraminga um “blues” ... tirei os sapatos... apaguei a luz. Assim vejo melhor as estrelas. O cheiro de pólvora ainda está no ar, enjoativo,  misturado ao perfume das flores de laranjeira.

O ano novo está começando. A minha vida está começando. Para trás ficou uma velha carcaça, azeda, revoltada, doente, cheia de lembranças desagradáveis. Eu sou a mariposa que seca as asas à luz da lua, e ensaia o primeiro vôo na brisa da madrugada!

*

 

NATAL  (EM)  BRANCO

Para Faleiro

23 de dezembro

Enfim! Instalado nessa enormidade de chalé. Nunca vi coisa igual: três andares, cinco suítes, três salões de estar, varandas em toda a volta, um bar imenso e bem abastecido, aparelhagem de som de última geração, home theater, o escambau! Muito melhor – e mais barato – que um hotel. Além disso, é claro, tenho a companhia dos amigos.

Mirá e Henri me trouxeram no seu carrinho, ela apavorada com as curvas e os abismos da estrada. Chegou a pedir que eu sentasse na frente, ao lado do marido, só para não ver os precipícios. Ele não disse nada, mas percebi que não gostou. Depois da nossa troca de lugares, o ambiente ficou tenso. Tentei remendar a situação, puxei assunto, mas só recebi monossílabos (dela) e grunhidos (dele). Acabei desistindo e passei a curtir a paisagem alpina. Graças a Deus, as montanhas não me assustam!

Fomos os primeiros a chegar. Logo depois vieram os Stilts – Bob, psiquiatra como Henri e seu colega de faculdade na Sorbonne, sua filhinha Meg, de uns nove ou dez anos, e a segunda mulher dele, Jeanne, uma francesa miúda e bem-humorada. O último a chegar, perto do meio-dia, foi Rainer, o colega alemão de Henri, divorciado, reservado, frio. Não fui com a cara dele.

Estamos com sorte, por enquanto, na questão do tempo. Temos céu azul, sol, a neve está firme, ótima para esquiar. A estação de esqui é aqui pertinho. Estou resolvido a não deixar passar mais um inverno sem ter ao menos tentado aprender este difícil esporte. Tenho cá minhas dúvidas... Acho que teria sido preciso nascer europeu para esquiar com elegância – assim como só um brasileiro – e carioca! – é capaz de sambar com perfeição.

24 de dezembro

Que estranho dia o de hoje! Começou com um ambiente pesado, já de manhã. A fobia de Mirá está piorando: não quis sair de casa, nem para nos ver esquiar. Minha tentativa redundou em fracasso total, mas diz o instrutor que é assim com todos. Sei não... O pior é tentar levantar depois do tombo, com os esquis estorvando as pernas e aqueles paus, cujo nome esqueci, a encherem as mãos. Um sufoco! Ainda bem que ninguém riu. Provavelmente eram todos suíços; nunca vi gente mais desprovida de senso de humor...

À tarde, quando caminhava pela varanda, surpreendi uma ácida discussão, em voz baixa, entre Jeanne e Bob. Tive que ouvir, dado o silêncio ao redor.

- Que mal há em dar-lhe a boneca? – sussurrava Jeanne. Parecia perplexa.

- Eu a criei de modo a não ter falsas expectativas.

- Mas, Bob, todas as crianças ganham presentes no Natal!

- Menos Meg. Esse era um dos poucos pontos em que Elizabeth e eu concordávamos. Se ela ganhar um presente, uma vez, no Natal, achará que teremos a obrigação de presenteá-la sempre. E pode ser que não tenhamos condições, algum dia.

- Isso é ridículo! – Indignada, Jeanne afastou-se e esbarrou comigo, que vinha poucos passos atrás e ainda não dobrara a esquina.

Quando voltei à sala de estar, pensei que os homens também tivessem brigado. Henri entrincheirara-se atrás de um jornal. Rainer mastigava seu cachimbo e lia um livro de Psicanálise, parando de vez em quando para fazer anotações nas margens. O silêncio era espesso. A pequena Meg, lá fora, era a única que parecia divertir-se, fazendo um boneco de neve.

Ninguém falou em comemoração do Natal. À noite, sugeri que fôssemos a um restaurante. Meg abraçava a sua boneca e lançava sorrisos radiosos para Jeanne, quando o pai não estava olhando. O jantar foi desanimado. Parecíamos um grupo de autistas, cada um trancado em seu mundo particular. Ah, que saudade do meu Natal de tradição portuguesa, com bacalhoada, rabanada e cerveja gelada, em pleno calor carioca, um presépio extravagante cada vez mais cheio de bonequinhos e enfeites, meus sobrinhos correndo feito loucos pela casa! E depois da solenidade da Missa do Galo, a alegria dos presentes, toda a nossa espontaneidade explodindo em risos e abraços, acabando em danças até às três da manhã!

Sinto-me deslocado no meio dessa gente. Parece que é inverno também em suas almas, e seu coração congelou.

26 de dezembro

Nem me animei a fazer anotações, ontem. O ambiente continua o mesmo. Uma pasmaceira geral. Tentei ler a nova antologia de autores brasileiros que trouxe, para preparar um pouco as aulas do próximo semestre, mas não consegui concentrar-me. Para que é que Mirá me convidou??

Não entendo como esses homens, colegas de universidade e de profissão, possam ter algo em comum. Não conversam, mal se comunicam com as próprias mulheres. Tornei-me companheiro de Meg, a quem contei lendas brasileiras. Ela adorou as histórias sobre onças e jabutis, a Iara, o Curupira, a Mula-sem-Cabeça...

Hoje de manhã, Jeanne, Bob e eu fomos esquiar. Rainer continua isolado. Tentei descobrir se está fazendo alguma pesquisa importante, uma tese ou algo assim, mas olhou-me sem responder, como se fosse eu o mal-educado. Acho que é biruta, isso sim. Às vezes, lê dois livros ao mesmo tempo, sempre mastigando o cachimbo apagado. Parece comparar os textos: lê um, depois o outro, volta ao primeiro, anota alguma coisa num caderninho. Às vezes, murmura alguma coisa entre os dentes.

Mirá criou raízes na sala de estar. Lê jornal, boceja, passeia pela casa, mas não sai nem arrastada. Henri está contrariado, o que o torna ainda mais fechado e carrancudo que o normal. Hoje à tarde, descobri uns clássicos de jazz num armário – Cole Porter, Louis Armstrong – boas gravações. Tentei tocar um. Mal coloquei o disco no prato, recebi olhares fulminantes de todos os lados. Tive vontade de sumir!

- Vocês não gostam de jazz? – perguntei, sorrindo amarelo.

Para variar, ninguém respondeu. A princípio pensei, “bolas, que se danem, se quiserem silêncio que troquem de sala; temos três à disposição!” Claro, acabei desligando o aparelho, covardemente, e fui consolar-me com uísque, no bar da sala contígua.

27 de dezembro

Bebo. É o que me resta a fazer. Uma nevasca desabou durante a noite, ameaçando acabar com a alegria dos esquiadores. Minha tentativa de ontem foi a última. Desisti para sempre. Não dá. Não tenho coordenação  nem “molejo”, calculo mal as distâncias, a neve me ofusca, apesar dos óculos de sol. Meu negócio é mesmo literatura e samba! Dei fim no (parco) estoque de uísque, mas descobri gim, Pernod, conhaque, poire e até (brr!) absinto. Espero não chegar até lá!

Mirá está cada vez mais deprimida. Agora anda encolhida pelos cantos, sentindo um frio impossível, com as lareiras acesas o tempo todo. Meg brinca com sua boneca, sob o olhar contrariado (ainda!) do pai. Jeanne tentou aproximar-se de Mirá, em vão. Ficou tão frustrada que agora me faz companhia no bar, fumando um cigarro atrás do outro. Rainer tornou-se inquieto; perambula pela casa, às vezes falando sozinho em alemão, o eterno cachimbo na boca. Tenho pena dele.

28 de dezembro

Nevou a noite toda. Pela manhã, Henri, Bob e eu saímos para desobstruir a porta de entrada e a saída da garagem até a estrada. Eles cavavam e eu jogava sal na parte limpa. Não sei se nosso trabalho valeu a pena, pois o céu carregado anuncia mais neve. Mirá passou a roer as unhas enquanto olha para as nuvens. Quase não fala. Durante o almoço, perguntou de repente, com voz rouca:

- Já pensaram se ficamos presos aqui?

- Uma avalanche seria pior – comentou Bob, seco.

O papo morreu ali mesmo.

29 de dezembro

Depois de uma horrível tempestade, parou de nevar, graças a Deus! O céu continua encoberto, mas diz a Meteorologia (que aqui tem um bom porcentual de acerto) que o tempo tende a firmar-se. Espero que tenham razão, de outro modo acabarei tornando-me alcoólatra, de puro tédio...

Ontem à noite, houve uma discussão entre Mira e Henri. Eles ocupam o quarto ao lado do meu. Percebi que brigavam porque ele a chamou pelo nome – Mireille – e não pelo apelido. Estava exasperado com as atitudes dela, que classificou de infantis, o que, evidentemente, não resolve nada. Estou cada vez mais ansioso para sair daqui, mas faltam ainda quatro dias, ninguém parece disposto a ir embora, e, como não tenho condução própria, sou obrigado a ficar e curtir a fossa alheia.

2 de janeiro

Finalmente, o pesadelo acabou. E de maneira terrível. No último dia do ano, Henri cismou de esquiar, apesar da neve ainda não estar suficientemente firme para isso. Mirá tentou dissuadi-lo, mas ele teimou em sair. Acho que queria escapar da atmosfera lúgubre do chalé, de qualquer maneira. A neve, fofa e traiçoeira, derrubou-o e partiu-lhe a perna esquerda em três partes. O hospital da estação só pôde fazer o atendimento de emergência, já que a gravidade do caso requeria uma cirurgia, possível somente em cidade maior, próxima à fronteira francesa.

No chalé, a depressão cedeu lugar ao desespero. Mira chorava, Jeanne tentava ministrar-lhe um calmante, eu procurava consolá-la. Os outros homens não se mexiam. Rainer fora para seu quarto. Bob observava-nos, como se fôssemos cobaias num labirinto. Meg, impressionada, enfaixara a perna de sua boneca e dizia que também ela se machucara.

- Como vamos removê-lo, meu Deus? – perguntou Mira.

Entreolhamo-nos. Eu não sei dirigir. O estado de Mirá, mais a sua fobia, desqualificavam-na igualmente. Encaramos Bob, todos ao mesmo tempo.

- Impossível – disse ele – Somos três pessoas no carro, mais a bagagem, e ele tem que viajar com a perna esticada.

Nesse instante, Rainer apareceu. Carregava sua bagagem. Passou por nós, a cabeça baixa. Ficamos esperando que voltasse, depois de arrumar as malas no bagageiro. Minutos depois, porém, ouvimos o motor do carro. Corri para fora a tempo de vê-lo afastar-se rapidamente.

Quando voltei à sala, Mirá  chorava novamente, enquanto Meg e sua madrasta tentavam confortá-la. Bob disse:

- O hospital deve ter uma ambulância.

Fomos até lá. O fato, porém, da outra cidade ficar além-fronteiras, impedia a ambulância de levar o paciente. Finalmente, conseguimos encontrar uma, particular, caríssima e desconfortável – não tinha aquecimento – para fazer o serviço. Que alívio!

O carro de Henri foi levado a Paris por um motorista contratado, e Mirá acompanhou o marido na ambulância.

Quanto a mim, fui novamente tolerado no carro de Bob. Nevava forte, e, lá dentro, a atmosfera estava carregadíssima. A frieza de Bob chocara a mulher, que Não conseguia esconder sua decepção. Parece que somente agora, após três anos de vida em comum, ela o conheceu realmente, e não gostou da descoberta.

Meg também estava triste. Teria que voltar ao seu cinzento internato. De vez em quando, enxugava os olhos e assoava discretamente o nariz. Tentei distrai-la, mas não funcionou. Acabei fechando-me também; fiquei a cismar, enquanto lá fora passava a paisagem branca, se, afinal, é mesmo aqui o meu lugar, ou se devo seguir o apelo do meu coração, que há dois anos clama desesperadamente pelo Brasil...

 

*

 

A  VISITA Ó 

                                                                                      

O grande sonho se realizara. Enfim! Todas as testemunhas de OVNIS, discos voadores, contatos imediatos de qualquer grau, puderam finalmente exclamar: “Eu não disse?!”

Três naves extra-terrestres entraram em órbita ao redor do nosso planeta. Radiotelescópios e observatórios astronômicos foram os primeiros a dar o alarme. A imprensa mundial lançou ao redor do globo a incrível notícia: “eles” chegaram! A salvação da humanidade, o fim do mundo, suicídios, celebrações, feriado nacional, uma semana de festa na Bahia.

Quando as naves estabilizaram a sua órbita sobre a cidade francesa de Toulouse, outro frêmito agitou o mundo. Os franceses interpretaram o gesto como a “consagração universal da sua cultura”; os ingleses comentaram que os alienígenas “não conheciam ainda a superioridade da Ilha sobre o Continente”; os americanos, desesperados, tentavam em vão entrar em contato com os visitantes, para provar que eram superiores à “velha Europa”.

Foram os E.T.s  que iniciaram o contato, pelo rádio. Um borbulhar rítmico e modulado formava a sua linguagem. Em pouco tempo, porém, o estranho som foi substituído pela voz sintética de um computador, que passou a falar em... chinês. Os alienígenas justificaram sua escolha pela quantidade de terrestres que dominavam essa língua, e pela semelhança de seus conceitos e formação de frases com a sua. O jeito foi (suspiro!) conformar-se e traduzir as mensagens uma segunda vez.

Após alguns dias, eles pediram que os técnicos de Toulouse enviassem, em freqüência pré-determinada, imagens de TV para o satélite estacionado sobre a Europa. Assim, eles poderiam capta-las em seus aparelhos e ter uma idéia mais concreta dos habitantes da Terra – sem esquecer, é claro, que estariam em perfeita segurança dentro de suas naves, se não gostassem de alguma coisa.

Eufóricos, os franceses apressaram-se em enviar as imagens pedidas. De acordo com as mais avançadas técnicas de comunicação, psicologia, ufologia, etc., foram mandadas fotos dos palácios de Versailles, do Louvre, de Paris, das parisienses, sob protestos indignados do resto do mundo: E as mulatas brasileiras? E a estátua da Liberdade? E as pirâmides? E a Rainha da Inglaterra?

Em atenção à grita geral, os franceses resolveram, então, enviar também imagens de outras espécies, extintas ou não, que compartilhavam o planeta com o homem; documentários de Jacques Cousteau, filmes de ecologistas franceses, fotos de Brigitte Bardot com os bichinhos, foram transmitidos sob as vaias do resto do mundo. Tentativas de entrar em contato com os alienígenas por outros meios eram sistematicamente bloqueadas por eles.

De repente, um sinal imperioso cortou o fluxo de informações:

- Parem! Queremos mais dados sobre o ser aquático com tentáculos, mostrado no filme nº 3.244! Onde vive? Como se comporta?

Todas as informações sobre polvos foram enviadas para as naves em órbita, sob grande expectativa de todo o mundo. Interromperam-se até as tradicionais hostilidades entre as diferentes nações, povos, ideologias e religiões para especular sobre o motivo do interesse dos estranhos pelos humildes habitantes marinhos. Afinal, polvos são tímidos, apesar da fama de perigosos, popularizada por filmes de ficção-científica. Destacam-se, entre os moluscos, por sua inteligência e capacidade mimética, e parecem comunicar-se através de sinais luminosos e coloridos que lhes perpassam o corpo em pulsações rítmicas.

Após 36 horas de suspense, a mensagem alienígena atingiu os terrestres como uma pedrada:

- Estamos muito emocionados. Acabamos de encontrar nossos semelhantes, embora num estágio inexplicavelmente primitivo. Somos muito gratos a vocês por isso. Passaremos, agora, a estuda-los mais de perto, a fim de descobrir por que seu desenvolvimento e sua natural tendência à civilização deixaram de acontecer.

Dito isso, graciosamente, as três naves mergulharam no oceano. Ali permaneceram. Após o choque inicial, os terrestres passaram a preocupar-se com seus próprios problemas. Ocasionalmente, um ou outro jornal sensacionalista mencionava movimentos suspeitos na superfície do mar, no ponto onde as naves mergulharam. Decorridos dois anos, os veículos alienígenas levantaram vôo, e, sem mais palavras, desapareceram no espaço.

Oceanógrafos vêm manifestando preocupação com o aumento recente da população de polvos e com sua nova capacidade de organização. 

 

*

Poema:

 

 

B o r b o l e t a s  Ó 

Asas belas

Luminosas asas

Transparentes vitrais

Ou tenebrosas

Como plúmbea noite

Asas belas

Transparentes asas

Desdobradas à luz

Ofertadas ao sol

Asas belas

Noctívagas asas

Veludosas, inquietas,

Desabrochadas ao luar

Belas asas

Condenadas

Hirtas, mortas, espetadas

Em almofadas de seda

E bandejas sem gosto

Quem vos vingará.

Belas asas estendidas

Crucificadas

Para nossa maldição?

Sonhando à Beira-Rio

Primavera... Verão...

A floração despenca

E flutua

Na pele do rio,

Flor contra flor,

Num beijo narcísico e circular,

Redemoinhando...

P r e g u i ç o s a m e n t e...

Rumo  ao  mar

Perdas  &  Danos

Objetos que se perderam...

Cartas que se extraviaram...

Pessoas que se foram...

Corações que se partiram...

Objetos que se foram...

Cartas que não partiram...

Pessoas que se perderam...

Corações que se extraviaram...

 

*

Anamaria Kovács

 

 

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