Trincheiras
Há poucos dias fomos surpreendidos com
a descoberta de uma bala "achada" dentro de nossa estante. O projétil
perfurou o vidro da janela, a lateral de madeira da estante, estragou a
lombada de uma Bíblia e ficou pousada sobre a prateleira. Tivemos
sorte, dormíamos em outros cômodos ou não estávamos
em casa. Não sabemos ao certo quando aconteceu.
Considerando a topografia da cidade do
Rio de Janeiro, que concede a cidade sua beleza natural inquestionável,
e as distâncias alcançadas pelas modernas armas de fogo, não
existe mais lugar longe o suficiente dos campos de batalha urbanos, geralmente
os morros. Não pela sua característica social, mas principalmente
pela sua característica estratégica.
Ficamos e continuamos horrorizados. Um
sentimento de impotência imediatamente nos invadiu fazendo aflorar
toda a nossa vulnerabilidade diante do perigo. A esse horror, seguiu-se
um sentimento de solidão, desamparo, quase desespero: vamos nos
mudar, já ! A dificuldade da mudança, entretanto, impôs
a reflexão e aí percebemos que não estamos tão
solitários assim, não vivemos problema singular.
Todos os habitantes da cidade do Rio
de Janeiro moram hoje em trincheiras. Nossas casas estão transformadas
em trincheiras, umas mais resistentes outras mais vulneráveis, mas
todas trincheiras, não importa o bairro, a condição
social da família ou a espessura das grades que rodeiam os prédios.
Com a reflexão, o quase desespero
vai se transformando em revolta. Revolta pela violenta forma como a realidade
é distorcida dia após dia, seja pelo discurso das autoridades,
seja pela "ingenuidade" da imprensa.
Querem nos fazer crer que a solução
de situação tão grave assim - a maioria já
admite essa gravidade - é extremamente complexa e demorada, além
disso são "experts" em pulverizar responsabilidade entre Município,
Estado e União num interminável jogo de empurra.
É mentira, é tudo mentira!
A complexidade não pode ser medida
pela dificuldade da polícia subir ou não os morros, como
tem ocorrido nesses últimos dias no Rio. Não há complexidade
nenhuma nisso, mesmo porque não há necessidade da polícia
subir o morro. Não é subindo o morro que esse problema será
resolvido. As armas podem estar no morro, mas o problema se resolve em
outro lugar.
Alguém acredita que os traficantes
que comandam os morros cariocas, desçam, vez ou outra, munidos de
seus passaportes e viajem para o exterior para negociar, em vários
idiomas e ao melhor estilo da economia globalizada, fantásticas
partidas de pó e armas sofisticadas?
Não, a solução para
o problema não está no morro. A solução para
o problema está no controle de nossas fronteiras, não nossas
longínquas fronteiras geográficas, mas nossas fronteiras
urbanas, principalmente nossos vários aeroportos internacionais
e nossos portos. Cortem os suprimentos que o mal acaba! Não importa
que compromissos existam entre os poderes públicos e os colarinhos
brancos que lucram com mortes e desgraças.
Exorto pois a sociedade brasileira a
não aceitar a simplificação desse problema, quando
nos apontam o morro e a baixa marginalidade como coisa complicada de se
resolver. Não podemos nos acostumar com essa situação.
Não podemos nos acostumar com balas "achadas". Não podemos
aceitar a "banalização" da violência. Não podemos
aceitar que isso faça parte do nosso cotidiano. Mortes estão
ocorrendo cada vez mais e existem mais responsáveis por elas. Vamos
cobrar!
Não sei ainda se substituo o vidro
por chapa metálica, madeira ou concreto. Talvez tenha que consultar
um especialista em balística e estratégia militar, coisa
que jamais imaginei fazer em minha vida.
Não vamos aceitar essa situação!
Oduvaldo Barroso
da Silva - maio 1997
|