O PODER MÉDICO
 
Ao entrar no consultório e colocar-se diante do médico, o paciente está irremediavelmente envolvido na rede de poder que estabelece as diretrizes e sustenta a relação médico-paciente-doença e na qual o médico é a grande figura: inquisidor, juiz, carrasco e deus. Muitas vezes, este envolvimento começa bem antes do contato com o médico. Dependendo do paciente, da sua capacidade de análise, do seu nível de esclarecimento e do seu acesso à informação, a sua posição frente a doença, a medicina e a figura do médico já está consolidada.É de submissão e entrega.  

O paciente dificilmente entra nesta relação em igualdade de condições com o seu interlocutor. Primeiro, porque não está em seu ambiente, não se considera em boas condições de saúde , está preocupado, apresenta um problema qualquer, denunciado por um sintoma, na maioria das vezes não muito claro, enfim, precisa de ajuda, vive questões que sozinho não é capaz de resolver. Além disso, foi educado segundo normas e padrões que colocam o seu consultor como legítimo detentor da verdade sobre a saúde e sobre a doença, devendo portanto ouvi-lo e seguir suas orientações sem questionar.

O médico, por outro lado, está em seu território, é o legítimo conhecedor dos mistérios da saúde e da doença, deve ser escutado e obedecido, atua de um lugar social seguro, submete-se somente ao Divino, ainda assim apenas para explicar os seus fracassos .  

A posição do doente no relacionamento com o médico é de total dependência. Sua situação e os conceitos ligados a ela favorecem essa dependência. Preocupado, com a auto-estima avariada por constatar ser uma pessoa "funcionando" mal, de alguma forma inferiorizada, o paciente entrega-se inteiro aos cuidados e infelizmente também aos descuidados do médico.  

A submissão do paciente no ritual médico é total. Começando por uma sala de espera normalmente lotada, atrasos de horário e a aviltante naturalidade da recepcionista e do próprio profissional diante da situação. Para eles, o paciente dispõe de todo o tempo do mundo para esperar. Não trabalha, não tem outros afazeres. O mais grave é que o, literalmente, paciente, em geral, acha que deve esperar sem reclamar. Não consegue enxergar mais do que um lado na relação. Afinal, quem precisa do outro é ele.  

Não há, na maioria dos pacientes, a consciência de que o médico é uma pessoa como ele. Sofre as mesmas angústias, os mesmos medos. Trabalha suas emoções e desenvolve sua conduta de acordo com sua história de vida, suas experiências, seus objetivos e suas crenças. Portanto, como todos, comete acertos e erros. Acontece que o paciente não quer, não pode e não deve fazer parte dos erros do médico. Que ele cometa erros na compra do apartamento, do carro, que ele cometa erros na escolha do cônjuge, do sócio, todos podemos errar, é natural, é humano, mas que ele não erre na sua relação com o paciente.  

Que alternativas possui um paciente diante de seu médico? O que ele sabe sobre a sua doença que o seu médico não sabe?  

Em princípio, parece lógico que os pacientes não formados na ciência médica nada tem a oferecer ao médico além dos sintomas de suas doenças. Parece lógico também, que o conhecimento existente na relação e que é capaz de possibilitar a cura pertence ao médico. Portanto, nada de importante existiria no campo do conhecimento sobre a doença que colocasse o paciente num plano mais próximo ao do médico.  

Não acreditamos nisso. Acreditamos que um sintoma, por mais genérico e comum que possa parecer traz implícito inúmeras questões específicas ao seu portador que não serão encontradas em nenhum outro paciente e muito menos nos compêndios de medicina. Seja no plano orgânico seja, principalmente, no plano psíquico."  

Ao postar-se diante do médico o paciente não é portador apenas de um sintoma, que pode até ser comum aos olhos do médico. Ele é portador também de sua relação com este sintoma, e isso não tem nada de comum, nada de plural, isso é pura singularidade. É importante ressaltar que não estamos falando aqui de traumas e desvios de caráter ou conduta, estamos falando de uma relação singular vivida pelo ser humano ao perceber alguma deficiência no funcionamento do seu organismo.  

Os padrões definidos pelas instituições sociais (família, escola, universidades, hospitais), para o encontro médico-paciente, estabelecem papéis bem definidos para cada um, qual seja: o médico pergunta, o paciente responde, o médico emite o diagnóstico subsidiado pelo seu saber legítimo, o paciente acata e segue as determinações do médico.  

A relação do paciente com a sua doença, a sua forma de viver o sintoma, o habilita a desenvolver uma prática, na entrevista com o médico, que subverte totalmente o padrão oficial. Mergulhado nesta relação, vivendo emoções únicas a sua pessoa e as circunstâncias, o paciente traz um sem número de questões que não serão respondidas pelo diagnóstico do médico. Primeiro porque na grande maioria das vezes não conseguem ser formuladas, o poder médico não permite tal abuso. Segundo porque, se formuladas, as respostas não podem vir traduzidas em alopatias ou homeopatia ou qualquer outra "patia". Para essas questões não existe outro código além da emoção. Não são questões para ser respondidas, são para ser consideradas no instante mesmo da entrevista, são para orientar médico e paciente acerca dos reais efeitos da doença, são para orientar médico e paciente acerca do caminho a seguir para a busca da cura.  

Na realidade, a prática do poder médico não permite que questões sejam levantadas por parte do paciente. É do médico, o ato de perguntar. Afinal o médico está formalmente habilitado para fazer as perguntas, sabe o que deve ser perguntado. Além disso existem outros pacientes para serem atendidos. Não há tempo para se perder com conversas sem importância.  

Tal situação tem se agravado bastante ultimamente. A conversa médica torna-se cada vez mais curta em duração e cada vez mais distante do mundo do paciente. Não se realizam mais aquelas consultas de pelo menos 40 minutos, onde ao invés de ser submetido a uma série de aparelhos esquisitos, o paciente conversava com o médico e este, munido de um termômetro e de um estetoscópio, montava um quadro clínico fundamentado na sua experiência profissional e nos hábitos do paciente. Exames sofisticados e caros, somente no caso de esclarecer uma dúvida ou confirmar um diagnóstico realmente negativo. Tinham o objetivo de, quando necessário, complementar o quadro clínico e eram conhecidos como "exames complementares".  

Hoje, vivemos outra medicina. Não existem mais dúvidas para serem esclarecidas nem diagnósticos para serem confirmados. A investigação aparelhada precede qualquer reflexão, o diagnóstico é um produto da tecnologia, não mais do saber.Os exames complementares transformaram-se em exames de rotina. Médicos e pacientes são moldados em outra realidade. A realidade do avanço tecnológico, que lança seus tentáculos a distâncias inimagináveis, com uma eficiência assustadora.  

Futuros médicos são atingidos ainda no seu curso de formação. Lá não aprendem mais a montar um quadro clínico e diagnosticar estabelecendo correlações entre patologias, hábitos e padrões sociais. Aprendem sim que um novo e moderno aparelho pode agora fornecer todas as informações "necessárias" sobre o funcionamento de um determinado órgão ou sobre a constituição de um conjunto de células. Basta aparecer alguém com uma pequena dor aqui ou acolá para que se justifique o emprego de mais uma maravilha tecnológica.  

E por quê é assim? A resposta talvez surpreendentemente passe ao largo da questão médica, da saúde e da formação do profissional de medicina. A resposta talvez esteja intimamente ligada a outra área de conhecimento. Quantos milhões de dólares são investidos na pesquisa de um novo equipamento? De um novo exame? De uma nova técnica? É preciso haver o retorno do capital.  

Quanto investe um laboratório para se modernizar? Cada equipamento adquirido tem sua cota de exames a realizar, haja ou não doentes.  

A população, por sua vez, precisa estar preparada para o seu papel de paciente neste contexto tecnológico. E lá estão os tentáculos do desenvolvimento agarrando mentes e corações através da mídia espetacular que invade a todos com as novas maravilhas tanto da medicina científica, representadas pelos aparelhos e equipamentos quanto da medicina comercial, representada pelos planos de saúde.  

Preocupados e pensando em se cuidar, os pacientes em potencial vêem maravilhados, todas as noites em sua casa, um helicóptero resgatando um doente em algum lugar distante, uma UTI super equipada com aparelhos modernos e médicos e enfermeiras simpáticos, arrancando dos braços da morte pacientes sorridentes e agradecidos. São os planos de saúde, que no vácuo criado pela saúde oficial vão acumulando fortunas incalculáveis em troca da promessa de prover o elixir da longa vida dos tempos modernos.  
A influência dos planos de saúde na relação paciente - médico - doença é enorme. A primeira pergunta do médico, antes mesmo de ouvir as queixas do paciente, é: "tem plano de saúde?". Qualquer sintoma é justificativa para ultra-som, ressonâncias magnéticas, tomografias computadorizadas e outros maravilhosos e caros exames. E o paciente, cumprindo a risca o seu papel sente-se moderno, sente-se cuidado pelo que há de melhor, chegando mesmo as raias da vaidade. Não raro, exige o exame moderno. É comum as novas mamães exigirem o ultra-som para descobrir o sexo do bebê, para ter assunto moderno, para colar no álbum ou para guardar na gaveta.  

Todos concordam, espero, que saúde é coisa séria. Portanto paciente, não brinque com a sua saúde, não submeta sua saúde aos padrões estabelecidos. Pergunte e fale. Fale e pergunte, não apenas dos sintomas, mas de você e de como você está com o seu sintoma. E você doutor. Ouça. Não o órgão a ser enquadrado nas inúmeras patologias que você aprendeu,dependendo do resultado deste ou daquele exame, mas sim o ser humano que precisa de sua ajuda, da ajuda de um outro ser humano.  

Numa época em que tentamos de todas as formas um novo rumo na saúde em nosso país, combatendo a criminosa falsificação de remédios e os não menos condenáveis laudos de exames clínicos incorretos, é oportuno instigar pacientes e médicos a uma mudança na sua relação com a doença e principalmente na relação entre um e outro. Uma mudança que tornará o paciente mais cidadão e o médico mais médico.  

 
 

Home
  1