MARIA DE FÁTIMA
*Odilon de CarvalhoFevereiro, dezenove,
Após uma luta insana
E de uma cesariana
Vieste à luz, meu anjinho.
Minha netinha querida,
Um pouco de minha vida.Todos nós te esperávamos,
Ansiosos, desejávamos
Que viestes, viva, à luz.
E fomos bem atendidos,
Nossos rogos foram ouvidos,
Por Maria e por Jesus.E neste teu nascimento
Eu tive um pressentimento:
- Eras menina -, e assim
Deveríamos tributar
À Maria te ofertar
Como reconhecimento.MARIA DE FÁTIMA: estás
Concretizando o meu sonho,
Meu viver inda risonho
De vovô que te quer bem.Que sejas feliz na vida,
De teus pais seja querida
E da Mamãe do Céu também.*Meu avô materno, Odilon de Carvalho, era jornalista, escritor e poeta. Muito religioso, quando eu estava para nascer, na Maternidade Cândida Vargas, em João Pessoa e minha mãe sofria muito por não conseguir me ter de parto normal, ele fez uma promessa, aos pés da imagem de Nossa Senhora de Fátima, que lá existe, para que, se tudo corresse bem, me batizarem como Maria de Fátima, em agradecimento.
ESTRELA CADENTE
(Para a "Galega")*
08/09/2006Mulher de sangue no olho
e com uma flor nos dentes
onça estimuladora
dos sentidos mais latentesinvasora dos espaços
dos tímidos inconfidentes
pantera dominadora
amante das mais ardentesErótica torturadora
que, muito provavelmente,
bailava nos bacanais
dos nobres de antigamenteés arco em ponto de guerra
és emoção indecente
entre Eros e Tanato
passeias alegrementebolinando a consciência
gueixa das dores silentes
miragem animalesca
quebrando todas correntestripudiando o poema
que morre suavemente
antevendo o paraíso
com a ética da serpentemulher de mente plural
que passa tão de repente
sob nuvens de desejos
como uma estrela cadente.* A "Galega" sou eu...
À MINHA AMIGA FATINHAConheci minha amiga por inteira,
Restando apenas só uma parcela
Que cobrarei ao me encontrar com ela,
Por ser uma vontade derradeira.Vivendo muito bem à sua maneira,
Fatinha é exclusiva e muito bela,
Colhendo calmaria na procela
E sendo cada vez mais verdadeira.Já faço parte desse seu projeto
Sendo guindado ao posto de arquiteto
De um futuro que vislumbra glória.A vida tem capítulos e fases.
Precisamos, apenas, ser capazes
De unificá-los numa só história.
FRUTOS E FLORES
Marina ColasantiMeu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas.
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.
ESCONDIDA TAMBAÚ
José Virgolino de AlencarAh! essa ânsia de contemplar-te Tambaú;
Os espigões, arranhando o céu, não deixam,
As torres, como florestas, se enfeixam,
Vendam meus olhos, não vejo teu mar azul.Ah! exuberante Tambaú, do cone sul a rainha.
Tuas águas, para a vista, manhosamente se fecham,
Meus olhos, tristes, lacrimejantes, se queixam.
Para ver-te, não há sequer uma frestinha.O céu claro, sem nuvens, é límpido, fascinante;
O sol brilha forte, caloroso, intensamente,
Temperando um clima de amor ardente;
Acima do mar aberto tudo é belo, esfusiante,Mas, tuas águas azuis, ondas mansas, não as vejo,
Um vendaval revolve, redemoinha na mente;
Doi não poder ver o cenário inteiramente.
Tambaú! De apreciar-te, frustra-se meu ansioso desejo.
PARAIBANIZANDO
Carlos SilvaRio do Peixe abençoado por São João
Rio Piranhas teu protetor é São José
Monte Horebe tua serra é um aviso
Deste povo bonito de Santa FéCachoeira orgulho dos teus índios
Bom Jesus admirando as cajazeiras
Santa Helena com seu manto protetor
Em São Bento zelando as mangabeirasNo sinal da Santa Cruz santificada
Nesta terra germina a cultura
Com o brilho da luz de diamante
Ilumina no ser Boa VenturaPelos olhos a bendita Conceição
Alumia o povo d'uma vez só
Pelo vale que estende nesse olhar
Alcançando de Ibiara a PiancóParaíba teu reinado é infinito
Feito sonho reservado na capanga
E com nome tão duro feito pedra
Erigiu tua extensa ItaporangaEm cor cinza eu vi a vegetação
E a espera por uma manhã chuvosa
Vi o riso estampado do teu povo
Pela fé e pela paz tão corajosaVi o símbolo que tremula tuas cores
Ao dizer "NÉGO", assumiu tua coragem
Com postura soberana se fez livre
Sem trair dos teus filhos bela imagemNo martelo ou na glosa do poeta
Neste berço que pariu o cantador
No ponteio do repente nordestino
Dedicado a ti com vasto amorSob o clarear da lua seresteira
Cá ti deixo Paraíba, sem vontade
Te levando num versar de cantoria
Preservando um sentimento de saudadeEste texto é uma simples homenagem ao povo paraibano, pela acolhida deste estradeiro cantador, CARLOS SILVA.
VIRTUALIDADE É ISSO!
Diná FernandesVirtualidade... coisa de momento
Textos bonitos sem realidade
Corações cheios de maldades
Fingindo até sentimento!Nos momentos de empolgação
Escrever, escrever e escrever
A quem, do outro lado vai receber
Pouco importa o impacto ou açãoNão sei se empolgação, ou judiação
Tirando proveito da alma carente
Nos recados se fazem presentes
E tudo não passa de gozaçãoAmigos virtuais sim... namoro virtual ora, ora!
É bom ficar atento prá tanta picaretagem
Pois no mundo da atual malandragem
Quem estiver de dentro cuide de dar o fora
Cabedelo/Jul2008
NOITE ESCURA
Diná FernandesVago pelas ruas escuras
Súbito, me ronda o perigo
No desespero das minhas agruras
Me sinto no âmbito do castigoA noite silenciosa...tenebrosa
Dos cantos...ouve-se vozes
Cantos da violência maldosa
Daqueles que estão como algozesA dor de quem ora suporta
Dos desumanos que matam
Matam inocentes desavisados
Tortura...a eles pouco importa
Cabedelo/Jul2008
A SAUDADE QUE AINDA SINTO DE TI
Diná FernandesQuando sinto os olhos a ressumar
Logo me vem à mente um sonho perdido
Vai-me crescendo o desejo de ainda te amar
Minhas endorfinas tecem meu sexto sentidoLabirintos dos quais neles me perco
As teias que no meu ego se emaranham
Vão me desconcentrando, sinto que arrefeço
Busco a força dos Deuses que me acompanhamUm sopro de vida na cálida noite
Faz ressurgir na escuridão uma luz
Cerro meus olhos, ouço do vento o açoite
É força obscura ou estrela que reluz?Escrevo versos que me fazem recordar
Acabo esmagada nas doces lembranças
O impossível me impediu de contigo ficar
A falta do teu amor facultou minhas andanças
Cabedelo/Jul2008
SEM VOCÊ
Diná FernandesSentei-me a beira do rio
Sozinha a pensar no meu amor
A tarde que estar por um fio
Recebe a noite com todo pudorDesgastada da rotina da solidão
A noite é longa, fria e insone
Acendo a lareira, fogo lembra paixão
Pensamentos sórdidos passam como ciclonePerco-me em meus devaneios
Uma música lembra nossos momentos
Viajo no tempo, pensamentos sem freios...
O presente sem você é um grande tormentoPeço licença ao tempo, falo dos meus sonhos
Perdão, se danos causei ao meu amor
Sonhava contigo fogoso e risonho
Ao acordar, quero esquecer essa dorEstou presa pelos laços da paixão
Regidos pelo verbo amar
São raízes incrustadas no coração
São fortes como a fúria do marNão sei ainda comandar essa coisa de amar
Sei apenas, que já não sou o que era antes
Ter um ao outro, é querer sempre estar
São meandros da alma que rondam a todo instante
Cabedelo/Jul2008
AMAR
Diná FernandesAmar é,
Respeitar
Compartilhar
Confiar mesmo com dúvidas
Estar sempre desejando
Sempre querendo mais
É uma renúncia constante
Uma doação por inteiro
Sem neuras ou cobranças
É quando você chega
Que desordena tudo
Meu coração não aguenta
Bate forte,
Mãos que se descontrolam
Tremores frenéticos
Pernas bambeiam
Perco a noção
Vou além da imaginação
Vivo em você o sonho real
Que me aquece
Me enlouquece
Me fustiga
Com essa voz tão quente
De homem menino
Que chega tão de mansinho
Me enche de amor
Todo dia
Qualquer hora
Em qualquer lugar
Nos fazemos felizes
Assim, eu sinto...
É assim que eu amo!
Cabedelo/Jul2008
PARA OS MESTRES, COM DESRESPEITO
Alberto da Cunha MeloDizem que meu povo
é alegre e pacífico.
Eu digo que meu povo
é uma grande força insultada.Dizem que meu povo
aprendeu com as argilas
e os bons senhores de engenho
a conhecer seu lugar.Eu digo que meu povo
deve ser respeitado
como qualquer ânsia desconhecida
da natureza.Dizem que meu povo
não sabe escovar-se
nem escolher seu destino.Eu digo que meu povo
é uma pedra inflamada
rolando e crescendo
do interior para o mar.Do livro SOMA DOS SUMOS, de 1983, publicado pela Editora José Olympio e Fundarpe.
TENHO PENA E NÃO RESPONDO
Fernando PessoaTenho pena e não respondo.
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.Cada um é muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros --- cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.Ah, deixem-me sossegar.
Não me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que outros me encontrem?
DEPOIS DE UM TEMPO
Veronica ShoffstallDepois de um tempo você aprende
a sutil diferença entre
segurar uma mão e acorrentar uma alma
e você aprende
que amar não significa apoiar-se
e companhia não quer sempre dizer segurança
e você começa a aprender
que beijos não são contratos
e presentes não são promessas
e você começa a aceitar suas derrotas
com sua cabeça erguida e seus olhos adiante
com a graça de mulher, não a tristeza de uma criança.
E você aprende
a construir todas as estradas hoje
porque o terreno de amanhã é
demasiado incerto para planos
e futuros têm o hábito de cair
no meio do vôo.
Depois de um tempo você aprende
que até mesmo a luz do sol queima
se você a tiver demais
então você planta seu próprio jardim
e enfeita sua própria alma
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que você realmente pode resistir
você realmente é forte
você realmente tem valor
e você aprende
e você aprende
com cada adeus, você aprende.
POEMA DA AMANTE
Adalgisa NeryEu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
AVISO DA LUA QUE MENSTRUA
Elisa LucindaMoço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereiaBarriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita...Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas. Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos...
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente.Ela é uma cobra de avental.
Não despreze a meditação doméstica.É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofia
cozinhando, costurando
e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
LIBERDADE
Paul Eluard
Traduzido por Jorge de SenaNos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nomeEm todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nomeNas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nomeNas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nomeNas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nomeNos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nomeNos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nomeNo bafejar das auroras
no oceano dos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nomeNa espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nomeNas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nomeNos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nomeNo candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nomeNo fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nomeNo meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nomeNo trampolim desta porta
nos objetos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nomeNa carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nomeNa vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nomeNos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nomeNa ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nomeNa saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nomePelo poder duma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te
liberdade.
TRIBUTO A SIVUCA
Marco di Aurélio
http://www.marcodiaurelio.com
Se ainda falta no céu
animador de terreiro
escancarem as porteiras
acenda todo luzeiro
pois subiu do meu nordeste
o melhor cabra da peste
o maior dos sanfoneiros.Uma vida Severina
num Sivuca, amoitada
uma saga nordestina
de poesia bem regada
na ponta de cada dedo
se arreganhava o segredo
numa sanfona rasgada.Passarim calava o bico
juriti sentava os pés
procissão deixava o santo
por conta de outros fiéis
pra ouvir um outro terço
feirante perdia o preço
por qualquer vinte mil réis.Era assim, Mestre Sivuca
cumpridor de seu destino
forrozeiro de primeira
que nunca bateu o pino
cantou nossa natureza
musicou com mais beleza
o vivente nordestino.Nosso Senhor lhe conceda
um lote bem na esquina
um juazeiro frondoso
c´uma sombra assim bem fina
uma sanfona branquinha
naquela luz da tardinha
de fundo uma sarafina.Que deixe de vez em quando
um sustenido escapar
escorregar mundo abaixo
chegar no lado de cá
pra gente sentir saudade
num forró de qualidade
do melhor que ainda há.Nosso Senhor de bondade
não é pecado pedir
deixe outros dez dedinhos
doidinhos pra se bulir
pra acompanhar o Sivuca
Gonzaga tá de mutuca
querendo também agir.Agora o céu tá completo
chegou forró e baião
s´isso for sinal dos tempos
não falta mais nada não,
quem disse que a terra presta
que outro som se encabresta
sem Sivuca e Gonzagão?Marco di Aurélio - Escritor e cordelista, autor de vários folhetos de Literatura de Cordel, feitor de poemas e militante da Academia Paraibana de Poesias. Entre outras publicações, é autor do livro de contos autobiográficos sobre as coisas do sertão "Com-Caso".
E-mail: marcodiaurelio@uol.com.br
EU NUNCA ESQUECI VOCÊ
Marco di Aurélio
Nem mesmo fechando os olhos
nem também na lua cheia
nem flores que vem de molhos
acordo e logo lhe vejo
no teto desse meu mundo
teus olhos verde profundos
miragem vale de espelho
e o tempo fica vermelho
no espaço que imagino
pergunto: é meu destino
sofrer sem te alcançar
verter meu sangue ladino
saindo pra passear
pensando haver de jeito
um outro amor tão perfeito
será que no mundo há?Me diga eu quero ouvir
de tua boca com alma
se tua vida destina
se tua paixão me salga
se teu amor me abraça
s'ele se entrega de graça
se não é coisa mofina.Corrija o meu entender
minha paixão preferida
e não me deixe morrer
pensando em ter mais vida
pois o viver sem amar
é não viver é penar
é vida não possuída.Abrace o nosso destino
se o seu amor for o meu
esqueça de quem lhe falo
ess'outro amor já morreu
me olhe dentro da alma
me diga com toda calma
que seu amor é só meu.
SABER DE NÓS
Marco di Aurélio
Saber de mim
é saber pouco
pois é de mim
saber-se o outro
quando bem sei
que lendo a lei
sou só um louco.Saber de ti
sei que existo
sabendo nós
sabemos misto
querendo a dois
sabemos pois
desse imprevisto.Não sabem eles
nossa loucura
eu que escrevo
essa estrutura
e tu não vês
quando me lês
não temos cura.
HÁ DE SE TER NESTA TERRA
Marco di Aurélio
mais coração
menos guerra
pra se viver a promessa
de um presente vivido
que de tão bom, recebido
se faça dele uma festa
que não se dá, nem se empresta
mas que se faz derramado
como se rio assim fosse
feito de leite e arroz-doce
pr'um penitente escutado.Que nesta terra assim haja
um manto que bem nos cubra
sem carecer ser de seda
mas que no frio da chuva
nos faça olhar a vereda
com olhos de correnteza
e almas de servidão
ao soro da natureza
que cai com sua leveza
alimentando o sertão.
SEM TER TEMPO
Marco di Aurélio
Passar o tempo
sem prazo e sem ter tempo
vereda com seu vento
mirar o sol se pôr.E sem calor
olhar o firmamento
e sem contar o tempo
contar estrelas.E assim ao vê-las
deitado no relento
e sem contar o tempo
o tempo se ajoelha.Passar o tempo
é só sentir o vento
voar no pensamento
no leito da vereda.Leito de seda
forrado de areia
os grãos também passeiam
como as estrelas.E sem ter tempo
meu tempo assim se finda
sem ter letra divina
sem letra pra meu tempo.
DE CARA LAVADA
Martha Medeirosficas mais distante, cada dia
cada noite, mais ausente
mais idoso, cada mês
cada instante, mais alheio
cada beijo, mais decente
mais fumante, cada ano
cada encontro, mais estranho
mais sofrido, cada vez
mais dolorido, mais parente
menos meuquem é você dentro de mim
que não teme a opinião alheia
que se alimenta de dinamite
que explodindo não incendeia
quem é você por trás dos meus atos
que quando concordo suspeita
que quando aceito discorda
que quando adormeço não deita
quem é você escondida em meu corpo
que arranca as folhas da agenda
que vive fazendo minha mala
que não reconhece minha letra
quem é você invisível no espelho
que sempre me despenteia
DE CARA LAVADA - 177
Martha Medeiroshoje me desfiz dos meus bens
vendi o sofá cujo tecido desenhei
e a mesa de jantar onde fizemos planoso quadro que fica atrás do bar
rifei junto com algumas quinquilharias
da época em que nos juntamosa tevê e o aparelho de som
foram adquiridos pela vizinha
testemunha do quanto erramosa cama doei para um asilo
sem olhar pra trás e lembrar
do que ali inventamosaquele cinzeiro de cobre
foi de brinde com os cristais
e as plantas que não regamoscoube tudo num caminhão de mudança
até a dor que não soubemos curar
mas que um dia vamos
SERRA GRANDE FEITICEIRA
*Miguel Arraes de AlencarSerra grande de olhos verdes
Por que me chamas para o lado de lá?
Deixa que eu fique aqui bem quieto
Com meu bodoque, meu samburáCavalo de pau, gado de osso
Corridas sem fim na terra quente
Céu limpo, urubus bem altos
Purificados pela distânciaSerra grande enganosa
Por que me chamas e não me amas?
Milhares pisaram teu dorso quente
Teu manto verde como a esperançaFugiam da fome, corriam do medo
Comeram mandioca, roeram piquí
Teu chão se abriu para os receber
E tu, enganosa, fingindo bondade, salvaste algunsSerra grande, feiticeira
Já não resisto ao teu olhar
Se é que me amas, por que não me dizes?
O que tens do lado de lá?Toma meu bodoque, meu samburá
Será minha sorte, será meu penar?
Serra grande, dona do tempo
Se não me dizes deixa eu passarVou pra bem longe, pra outras terras
Pra meu destino, pra meu penar.*Miguel Arraes de Alencar nasceu em 15 de dezembro de 1916, em Araripe, Ceará. Concluiu o curso secundário em 1932, na cidade do Crato. Em seguida, mudou-se para o Recife para dar continuidade aos estudos e seguir carreira profissional, prestando concurso público e tornando-se, em 1933, funcionário do Instituto de Açúcar e do Álcool (IAA). Estudou na Faculdade de Direito do Recife, formando-se em 1937 e continuando a carreira de servidor público.
Foi Delegado Regional do IAA, nomeado por Barbosa Lima Sobrinho. Arraes iniciou sua carreira política em 1948, ocupando o cargo de secretário estadual da Fazenda, durante o governo de Barbosa Lima Sobrinho. Em 1950, elegeu-se deputado estadual. Em 1958, conquista novamente uma vaga na Assembléia Legislativa de Pernambuco. Em 1959, foi secretário da Fazenda no governo de Cid Sampaio e prefeito da cidade do Recife.
Em 1962, Arraes foi eleito pela primeira vez governador de Pernambuco, porém não concluiu o mandato sendo deposto pelo Golpe Militar. Teve passagens por algumas prisões brasileiras, seguindo para a Argélia em 25 de maio de 1965. Após 14 anos de exílio, voltou ao Brasil beneficiado pela anistia. Foi eleito deputado federal em 1982 e, em 1986, elegeu-se mais uma vez governador de Pernambuco. Em 1990, foi novamente deputado federal. Em 1994, voltou ao governo de Pernambuco pela terceira vez. Em 2003, assumiu mais um mandato como deputado federal. Faleceu no Recife, no dia 13 de agosto de 2005, vítima de uma infecção generalizada.
LIBERTAÇÃO
Wilma Lessa*Minha liberdade
Posso medir
Menos por ir e vir, a todos os lugares
O infinito possível.Mas por estar só
Destituída de paixões
Que acorrentam
Ao cotidiano
De apenas um.Liberdade pura
Da cama enorme
Louça empilhada
Jornais espalhados
Priorizando o que eu quiser,
Pois minhas asas
Estão abertas ao infinito.*Wilma Lessa foi uma grande defensora dos direitos das mulheres, fundou o Grupo Viva Mulher e fez parte da Comissão que implantou a Delegacia da Mulher em Pernambuco. Wilma lutou, com muitas companheiras do Fórum de Mulheres de Pernambuco para ver as mulheres brasileiras vivendo em condições dignas, com respeito e direitos assegurados.
Fonte: www.sindromedeestocolmo.com
O PASSADO
Cora CoralinaO salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano".
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.D. Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.O Passado...
Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
Que vale para eles o sobrado?Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do passado.
O CÂNTICO DA TERRA
Cora CoralinaEu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranquila ao teu esforço.Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranquilo dormirás.Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
MASCARADOS
Cora CoralinaSaiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranquilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
ASSIM EU VEJO A VIDA
Cora CoralinaA vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
JESSIER QUIRINO
www.poesiamatuta.com.brArquiteto por profissão, poeta por vocação, matuto por convicção. Paraibano de Campina Grande filho adotivo de Itabaiana onde reside há dezessete anos. Autor dos livros: Paisagem de Interior (poesia), Agruras da Lata D'água (poesia), O Chapéu Mau e o Lobinho Vermelho (infantil), Prosa Morena - acompanhado de CD com declamações de alguns poemas, músicas e causos, Política de Pé de Muro, A Folha de Boldo Notícias de Cachaceiros - em parceria com Joselito Nunes, além de causos, músicas, cordéis e outros escritos. Todos publicados pelas Edições Bagaço - Recife/PE.
COMÍCIO DE BECO ESTREITO
Jessier QuirinoPra se fazer um comício
Em tempo de eleição
Não carece de arrodei
Nem dinheiro muito não
Basta um F-4000
Ou qualquer mei caminhão
Entalado em beco estreito
E um bandeirado má feito
Cruzando em dez posição.Um locutor tabacudo
De converseiro comprido
Uns alto-falante rouco
Que espalhe o alarido
Microfone com flanela
Ou vermelha ou amarela
Conforme a cor do partido.Uma gambiarra véa
Banguela no acender
Quatro faixa de bramante
Escrito qualquer dizer
Dois pistom e um taró
Pode até ficar melhor
Uma torcida pra torcer.Aí é subir pra riba
Meia dúzia de corruto
Quatro babão cinco puta
Uns oito capanga bruto
E acunhar na promessa
E a pisadinha e essa:
Três promessa por minuto.Anunciar a chegança
Do corruto ganhador
Pedir o "V" da vitória
Dos dedo dos eleitor
E mandar que os vira-lata
Do bojo da passeata
Traga o home no andor.Protegendo o monossílabo
De dedada e beliscão
À cavalo na cacunda
Chega o dono da eleição
Faz boca de fechecler
E nesse qué-ré-qué-qué
Vez por outra um foguetão.Com voz de vento encanado
Com o VIVA dos babão
É só dizer que é mentira
Sua fama de ladrão
Falar do roubo dos home
Prometer o fim da fome
E tá ganha a eleição.E terminada a campanha
Faturada a votação
Foda-se povo, pistom
Foda-se caminhão
Promessa, meta e programa...
É só mergulhar na brahma
E curtir a posição.Sendo um cabra despachudo
De politiquice quente
Batedorzão de carteira
Vigaristão competente
É só mandar pros otário
A foto num calendário
Bem família, bem decente:Ele, um diabo sério, honrado
Ela, uma diaba influente
Bem vestido e bem posado
Até parecendo gente
Carregando a tiracolo
Sem pose, sem protocolo
Um diabozinho inocente.
PARAFUSO DE CABO DE SERROTE
Jessier QuirinoTem uma placa de Fanta encardida
A bodega da rua enladeirada
Meia dúzia de portas arqueadas
E uma grande ingazeira na esquina
A ladeira pra frente se declina
E a calçada vai reta nivelada
Forma palmos de altura de calçada
Que nos dias de feira o bodegueiro
Faz comércio rasteiro e barateiro
Num assoalho de lona amarelada.Se espalha uma colcha de mangalho:
É cabestro, é cangalha e é peixeira
Urupema, pilão, desnatadeira
Candeeiro, cabaço e armador
Enxadeco, fueiro, e amolador
Alpercata, chicote e landuá
Arataca, bisaco e alguidar
Pé de cabra, chocalho e dobradiça
Se olhar duma vez dá uma doidiça
Que é capaz do matuto se endoidar.É bodega pequena cor de gis
Sortimento surtindo grande efeito
Meia dúzia de frascos de confeito
Carrossel de açúcar dos guris
Querosene se encontra nos barris
Onde a gata amamenta a gataiada
Sacaria de boca arregaçada
Gargarejo de milhos e farelos
Dois ou três tamboretes em flagelo
Pro conforto de toda freguesada.No balcão de madeira descascada
Duas torres de vidro são vitrines
A de cá mais parece um magazine
Com perfume e cartelas de Gillete
Brilhantina safada, canivete
Sabonete, batom... tudo entrempado
Filizolla balança bem ao lado
Seus dois pratos com pesos reluzentes
Dá justeza de peso a toda gente
Convencendo o freguês desconfiado.A Segunda vitrine é de pão doce
É tareco, siquilho e cocorote
Broa, solda, bolacha de pacote
Bolo fofo e jaú esfarofado
Um porrete serrado e lapidado
Faz o peso prum março de papel
Se embrulha de tudo a granel
E por dentro se encontra uma gaveta
Donde desembainha-se a caderneta
Do freguês pagador e mais fiel.Prateleiras são tábuas enjanbradas
Com um caibro servindo de escora
Tem também não sei qual Nossa Senhora
Com um jarrinho de louça bem do lado
Um trapézio de flandres areados
Um jirau com manteiga de latão
Encostado ao lado do balcão
Um caneiro embicando uma lapada
Passa as costas da mão pelas beiçadas
Se apruma e sai dando trupicão.Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Tem rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
Bodegueiro despacha a um artesão
Parafuso de cabo de serrote.
UMA PAIXÃO PRA SANTINHA
Jessier QuirinoXanduca de Mané Gago
Tinha querença mais eu
Me vestia de abraço
Bucanhava os beiço meu
Era aquele tirinete
Parecia dois colchete
Eu in nela e ela in nêu.No apolegar das tetas
Nos chamego penerado
Nas misturação das perna
Nos cafuné do molengado
Nos beijo mastigadinho
Nos açoite de carinho
Nós era bem escolado.Era aquele tudo um pouco
Era aquela amoridade
Mas faltava na verdade
Sensação de friviôco
Um querer, uma pujança
Daquela que dá sustança
Na homencia do cabôco.No dia que`u vi Santinha
Sobrinha do sacristão
O bangalô do meu peito
Se enfeitou feito um pavão
Foi quando esqueci Xanduca
Sem mágoa sem discussão
Pois vimos que nós só tinha
Uma paixãozinha mixa
Uma jogada de ficha
Uma piola de paixão.Santinha é a indivídua
Que misturou meu pensar
Que me deixou friviando
Sem nem sequer me olhar
Matutinha aprincesada
Mulher de voz aflautada
Olhosa de se olhar
Fulô de beleza fina
É a tipa da menina
Que se deseja encontrar.Mas Santinha é quase santa
Nem percebe o meu amor
Não tem na boca um pecado
Tem o beicinho encarnado
Pintado a lápis de cor
Só tem olhos pra bondade
Mas não faz a caridade
De enxergar um pecador.Ah! se eu fosse um monsenhor
Um padre, um frei, um vigário
Eu achucalhava os sino
De riba do campanário
Eu abria o novenário
Eu enfeitava um andor
Botava ela impezinha
Feito uma santa rainha
Padroeira dos amor.Arranjava um pedestal
Um altar um relicário
Chamava todas carola
Chamava todo igrejário
E dizia em toda altura
Com voz de missionário:
Oh! minha santa Santinha!
Tire este manto celeste
Saia deste relicário
Olhe pra mim e garanta
Que vai deixar de ser santa
Que`u deixo de ser vigário!
VOU-ME EMBORA PRO PASSADO*
Jessier QuirinoVou-me embora pro passado
Lá sou amigo do rei
Lá tem coisas "daqui, ó! "
Roy Rogers, Buc Jones
Rock Lane, Dóris Day
Vou-me embora pro passado.Vou-me embora pro passado
Porque lá, é outro astral
Lá tem carros Vemaguet
Jeep Willes, Maverick
Tem Gordine, tem Buick
Tem Candango e tem Rural.Lá dançarei Twist
Hully-Gully, Iê-iê-iê
Lá é uma brasa mora!
Só você vendo pra crê
Assistirei Rim Tim Tim
Ou mesmo Jinne é um Gênio
Vestirei calças de Nycron
Faroeste ou Durabem
Tecidos sanforizados
Tergal, Percal e Banlon
Verei lances de anágua
Combinação, califon
Escutarei Al Di Lá
Dominiqui Niqui Niqui
Me fartarei de Grapette
Na farra dos piqueniques
Vou-me embora pro passado.No passado tem Jerônimo
Aquele Herói do Sertão
Tem Coronel Ludugero
Com Otrope em discussão
Tem passeio de Lambreta
De Vespa, de Berlineta
Marinete e Lotação.Quando toca Pata Pata
Cantam a versão musical
"Tá Com a Pulga na Cueca"
E dançam a música sapeca
Ô Papa Hum Mau Mau
Tem a turma prafrentex
Cantando Banho de Lua
Tem bundeira e piniqueira
Dando sopa pela rua
Vou-me embora pro passado.Vou-me embora pro passado
Que o passado é bom demais!
Lá tem meninas "quebrando"
Ao cruzar com um rapaz
Elas cheiram a Pó de Arroz
Da Cachemere Bouquet
Coty ou Royal Briar
Colocam Rouge e Laquê
English Lavanda Atkinsons
Ou Helena Robinstein
Saem de saia plissada
Ou de vestido Tubinho
Com jeitinho encabulado
Flertando bem de fininho.E lá no cinema Rex
Se vê broto a namorar
De mão dada com o guri
Com vestido de organdi
Com gola de tafetá.Os homens lá do passado
Só andam tudo tinindo
De linho Diagonal
Camisas Lunfor, a tal
Sapato Clark de cromo
Ou Passo-Doble esportivo
Ou Fox do bico fino
De camisas Volta ao Mundo
Caneta Shafers no bolso
Ou Parker 51
Só cheirando a Áqua Velva
A sabonete Gessy
Ou Lifebouy, Eucalol
E junto com o espelhinho
Pente Pantera ou Flamengo
E uma trunfinha no quengo
Cintilante como o sol.Vou-me embora pro passado
Lá tem tudo que há de bom!
Os mais velhos inda usam
Sapatos branco e marrom
E chapéu de aba larga
Ramenzone ou Cury Luxo
Ouvindo Besame Mucho
Solfejando a meio tom.No passado é outra história!
Outra civilização...
Tem Alvarenga e Ranchinho
Tem Jararaca e Ratinho
Aprontando a gozação
Tem assustado à Vermuth
Ao som de Valdir Calmon
Tem Long-Play da Mocambo
Mas Rosenblit é o bom
Tem Albertinho Limonta
Tem também Mamãe Dolores
Marcelino Pão e Vinho
Tem Bat Masterson, tem Lesse
Túnel do Tempo, tem Zorro
Não se vê tantos horrores.Lá no passado tem corso
Lança perfume Rodouro
Geladeira Kelvinator
Tem rádio com olho mágico
ABC a voz de ouro
Se ouve Carlos Galhardo
Em Audições Musicais
Piano ao cair da tarde
Cancioneiro de Sucesso
Tem também Repórter Esso
Com notícias atuais.Tem petisqueiro e bufê
Junto à mesa de jantar
Tem bisquit e bibelô
Tem louça de toda cor
Bule de ágata, alguidar
Se brinca de cabra cega
De drama, de garrafão
Camoniboi, balinheira
De rolimã na ladeira
De rasteira e de pinhão.Lá, também tem radiola
De madeira e baquelita
Lá se faz caligrafia
Pra modelar a escrita
Se estuda a tabuada
De Teobaldo Miranda
Ou na Cartilha do Povo
Lendo Vovô Viu o Ovo
E a palmatória é quem manda.Tem na revista O Cruzeiro
A beleza feminina
Tem misse botando banca
Com seu maiô de elanca
O famoso Catalina
Tem cigarros Yolanda
Continental e Astória
Tem o Conga Sete Vidas
Tem brilhantina Glostora
Escovas Tek, Frisante
Relógio Eterna Matic
Com 24 rubis
Pontual a toda hora.Se ouve página sonora
Na voz de Angela Maria
"- Será que sou feia?
- Não é não senhor!
- Então eu sou linda?
- Você é um amor!... "Quando não querem a paquera
Mulheres falam: "Passando,
Que é pra não enganchar! "
"Achou ruim dê um jeitim! "
"Pise na flor e amasse! "
E AI e POFE! e quizila
Mas o homem não cochila
Passa o pano com o olhar
Se ela toma Postafen
Que é pra bunda aumentar
Ele empina o polegar
Faz sinal de "tudo X"
E sai dizendo "Ô Maré!
Todo boy, mancando o pé
Insistindo em conquistar.No passado tem remédio
Pra quando se precisar
Lá tem Doutor de família
Que tem prazer de curar
Lá tem Água Rubinat
Mel Poejo e Asmapan
Bromil e Capivarol
Arnica, Phimatosan
Regulador Xavier
Tem Saúde da Mulher
Tem Aguardente Alemã
Tem também Capiloton
Pentid e Terebentina
Xarope de Limão Brabo
Píluas de Vida do Dr. Ross
Tem também aqui pra nós
Uma tal Robusterina
A saúde feminina.Vou-me embora pro passado
Pra não viver sufocado
Pra não morrer poluído
Pra não morar enjaulado
Lá não se vê violência
Nem droga nem tanto mau
Não se vê tanto barulho
Nem asfalto nem entulho
No passado é outro astral
Se eu tiver qualquer saudade
Escreverei pro presente
E quando eu estiver cansado
Da jornada, do batente
Terei uma cama Patente
Daquelas do selo azul
Num quarto calmo e seguro
Onde ali descansarei
Lá sou amigo do rei
Lá, tem muito mais futuro
Vou-me embora pro passado.*Poema inspirado na leitura do livro Memorial de Marco Polo Guimarães, Edições Bagaço; em conversa antiga; e em outros poemas meus.
ZÉ QUALQUER E CHICA BOA
Jessier QuirinoEmpurra a cancela Zé
Abre o curral da verdade
Pra mostrar pra mocidade
Como é que vive um Zé
Sem um conforto sequer
Com sua latas furadas
E a cacimba tão distante
Um Zé arame farpante
Feito de gente e de fé.O Zé que se aprisiona
Aos cacos velhos da enxada
Que nasce herdeiro do nada
E qualquer lado é seu caminho
Medalhas, são seus espinhos
Quedas de bois são batalhas
Seus braços, duas cangalhas
De taipa e barro é seu ninho.O Zé metido em gibão
Numa besta atrás dum boi
Por entre as juremas pretas
Por onde o bicho se foi
A poder de grito e ois
Peitando graveto torto
Um dos três vai sair morto
Ou ele, a besta ou o boi.É cabôco elefantado
Que não tem medo de cruz
Que fita o sol faiscando
Dez mil peixeiras de luz
O Zé que assim se conduz
Nas brenhas deste sertão
O Zé Ninguém, Zé Qualquer
Mas o Qualquer desse Zé
Não é qualquer qualquer não.É um Qualquer niquelado
Acabestrado num Zé
Não é Zé pra qualquer nome
Nem Qualquer pra qualquer Zé
Diante desses apois
Eu vou dizer quem tu sois
Pode escrever se quiser:Sois argumento de foice
Sois riacho correntoso
Tu sois carquejo espinhoso
Sois calo de coronel
Sois cor de barro a granel
Sois couro bom que não mofa
Sois um doutor sem farofa
Sem soqueira de anel.Sois umbuzeiro de estrada
Sois ninho de carcará
Sois folha seca, sois galho
Sois fulô de se cheirar
Sois fruto doce e azedo
Sois raiz que logo cedo
Quer terra pra se enfiar.No inverno sois caçote
Espelho de céu no chão
Chorrochochó de biqueira
Espuma de cachoeira
Sois lodo, sois timbungão
Sois nuvem quebrando a barra
Violino de cigarra
Afinando a chiação.Sois bafo de cuscuzeira
Sois caldo de milho quente
Sois a canjica do milho
Sois milho pessoalmente
Tu sois forte no batente
Tu sois como milho assado
Se não for bem mastigado
Sai inteirinho da gente.Tu desarruma as tristezas
Caçando uma risadinha
Sois doido, doido tu sois
Tu sois um baião-de-dois
Tu sois pirão de farinha
Sois bruto que se ameiga
No amor tu sois manteiga
Numa creamecrackerzinha.Sois um Zé Qualquer do mato
Provador de amargor
Tu sois urro, sois maciço
Devoto do padre Ciço
Sois matuto rezador
O Zé Qualquer em pessoa
Marido de Chica Boa
O teu verdadeiro amor.É Francisca Caliméria
Feliciana Qualquer
Chica Boa é apelido
Pode chamar quem quiser
Mas digo as outras pessoas
Não digam que Chica "É " boa
O cabra que assim caçoa
Vê direitim quem é Zé.
UMA CRIATURA
Machado de AssisSei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga à maneira do abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida.
ORGIA DE INOCÊNCIA
Ivan SanttanaBoboletas
Meretrizes
Fazem programa
No jardim.Tão promíscuos,
Os beija-flores
Beijam rosas,
Beijam dálias,
Beijam jasmins.Todo dia é assim:
Uma orgia de inocência
No meu jardim.
SONHEI COMIGO
Eugênia TabosaSonhei comigo
esta noite
Vi-me ao comprido
Deitada
Tinha estrelas
nos cabelos
em meus olhos
madrugadas
Sonhei comigo
esta noite
como queria
ser sonhada
Senti o calor da mão
percorrendo uma guitarra
De loge vinha um gemido
uma voz desabalada
Havia um campo
de trigo
um sol forte
me abrasava.
E acordei
meio sonhando
procurando
me encontrar
Quando me vi
ao espelho
era teu
o meu olhar.
SE
Waltel Branco e Alice RuizSe por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer,
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso,
de noite uma farra
a gente ia viver com garra
eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto
ia ser um riso
ia ser um gozo,
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio
daí, vá ficando por aí,
eu vou ficando por aqui,
evitando, desviando,
sempre pensando,
se por acaso a gente se cruzasse.
VOU TIRAR VOCÊ DO DICIONÁRIO
Itamar Assumpção e Alice RuizEu vou tirar do dicionário
A palavra você
Vou trocar-lá em miúdos
Mudar meu vocabulário
e no seu lugar
vou colocar outro absurdo
Eu vou tirar suas impressões digitais
da minha pele
Tirar seu cheiro
dos meus lençóis
O seu rosto do meu gosto
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos "nãos" se faz um sim
Eu vou tirar o sentimento
do meu pensamento
sua imagem e semelhança
Vou parar o movimento
a qualquer momento
Procurar outra lembrança
Eu vou tirar, vou limar de vez sua voz
dos meus ouvidos
Eu vou tirar você e eu de nós
o dito pelo não tido
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos "nãos" se faz um sim
"Tudo que você disser
deve fazer bem
Nada que você comer
deve fazer mal"
"Eu quero as mulheres
que dizem sim
E quem não tem vergonha
de ser assim? "
MAIS OU MENOS
Chico XavierA gente pode
morar numa casa mais ou menos,
numa rua mais ou menos,
numa cidade mais ou menos,
e até ter um governo mais ou menos.A gente pode
dormir numa cama mais ou menos,
comer um feijão mais ou menos,
ter um transporte mais ou menos,
e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.A gente pode
olhar em volta e sentir que tudo está
mais ou menos.Tudo bem.
O que a gente não pode
mesmo, nunca, de jeito nenhum,
é amar mais ou menos,
é sonhar mais ou menos,
é ser amigo mais ou menos,
é namorar mais ou menos,
é ter fé mais ou menos,
e acreditar mais ou menos.Senão a gente corre o risco de se tornar
uma pessoa mais ou menos.
AS ROSAS NÃO FALAM
CartolaBate outra vez
Com esperança o meu coração
Pois já vai terminando o verão, enfimVolto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar para mimQueixo-me às rosas, mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, aiDevias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E quem sabe sonhar com meus sonhos
Por fim
CARTAS DE AMOR
Fernando PessoaTodas as cartas de amor são
ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
ridículas.Também escrevi, no meu tempo, cartas de amor
como as outras,
ridículas.As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
ridículas .Quem me dera o tempo, em que eu escrevia
sem dar por isso, cartas de amor,
ridículasAfinal,
só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
ridículas...Poemas Escolhidos - 20/10/1935
DÁ A SURPRESA DE SER
Fernando Pessoa, do "Livro do Corpo"Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro,
faz bem só pensar em ver
seu corpo meio maduro.Seus seios altos parecem
(se ela estivesse deitada)
dois montinhos que amanhecem
sem ter que haver madrugada.E a mão do seu braço branco
assenta em palmo espalhado
sobre a saliência do flanco
do seu relevo tapado.Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
O MARRUÊRO
Catulo da Paixão CearenseO canto alegre dos galo
no sertão amiudava!...
Nos taquará das lagoa
as saracura cantava!...Cantando passava um bando
das verde maracanã!
Fermosa, cumo a cabôca,
Vinha rompendo a minhã!O vento manso da serra,
vinha acordando os caminho!
Vinha das mata chêrosa
um chêro de passarinho!...Lá, no fundo d'uma gróta,
adonde um córgo gimia,
gragaiava as siriêma
cum o fresco nacê do dia.Uma araponga, atrepada
n'um braço de mato, im frô,
gritava, como se fosse
os grito da minha dô!!E a sabiá, lá nos gaio
da larangêra, serena,
cantava, cumo si fosse
uma viola de pena!Um passarinho inxirido,
mardosamente iscundido
nas fôia de um tamburí,
satisfeito, mangofando,
de mim se ria, gritando
lá de longe: "bem te vi"!Chegando na incruziada,
despois do dia rompê,
sipurtei o meu segredo
n'um véio tronco de ipê.Dênde essa hora, inté hoje,
eu conto as hora, a pená!...
Eu vórto a sê marruêro!
Vou vivê com os marruá!Eu tinha o corpo fechado
prá tudo o que é marvadez!
Só de surucucutinga
eu fui mordido três vez!...Dos marruá mais bravio,
que nos grotão derribei,
munta pontada, sá dona,
munta chifrada eu levei.Prá riba de mim, Deus pode
mandá o que ele quizé!O mundo é grande, sá dona!...
Grande é o amô!... Grande é a fé!Grande é o pudê de Maria,
isposa de São josé!...
O Diabo, também, sá dona,
foi grande!... Cumo inda é!!!Mas porém, nada é mais grande,
mais grande que Deus inté,
que uma cornada dos chifre
dos óio d'uma muié...
AINDA EU TENHO...
PepeQuando eu era jovem e me embriagava
Com ilusões das quais hoje rio
Sonhei ser dono de grandes terras
E hoje tenho um pedaço de terra meu!...Logo a vida que ensina tanto,
Acalmou todo meu desvario
Mas se no caminho perdi as terras
Ainda tenho um pedaço de terra meu!Um pedaço de terra ingrato,
Ao pé de um muro sombrio,
É a terra que cobre a sepultura
Onde enterrei um filho meu...Em ele jazem meus sonhos
De amor, glória ou poderio,
E ante os céus e os homens
Aquele pedaço de terra é meu!!!
FALO DE TI
Florbela EspancaFalo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que e louro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!
AMOR QUE MORRE
Florbela EspancaO nosso amor morreu...Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre...e loga aponta
A luz doutra miragem fugidia...Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos pra partir.E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor imposível que há-de vir!
OS VERSOS QUE TE FIZ
Florbela EspancaDeixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
A MULHER QUE PASSA
Vinicius de MoraesMeu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me concontrava se te perdias?Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!Que fica e passa, que pacífica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.
O MAIS-QUE-PERFEITO
Vinicius de MoraesAh, quem me dera ir-me
Contigo agora
Para um horizonte firme
(Comum, embora... )
Ah, quem me dera ir-me!Ah, quem me dera amar-te
Sem mais ciúmes
De alguém em algum lugar
Que não presumes...
Ah, quem me dera amar-te!Ah, quem me dera ver-te
Sempre a meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais: cuidado...
Ah, quem me dera ver-te!Ah, quem me dera ter-te
Como um lugar
Plantado num chão verde
Para eu morar-te
Morar-te até morrer-te...
SONETO A QUATRO MÃOS
Vinicius de MoraesTudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra meu próprio dar demasiado.Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
AMÔ DE REDE
Myriam PeresAmô de rede é bão.
É bão mesmo pra daná.
A gente fica agarrado,
Fica tudo atracado,
E a rede pra lá, pra cá...
E o Zeca só a pitá...É uma fuxicada arretada,
Que num sei mesmo explicá.
São fungada nos cangote,
São alisado pra cá.
São uns roçado pra lá.
E o Zeca só a pitá...Êta pitada lascada,
Tão boa de se pitá!
A gente nesta esfregada,
Virando os ôio danada.
A rede pra lá, pra cá...
E o Zeca só a pitá...Num dá mais pros cafuné,
Pros suspirinhos inté,
Só dá é pros afiná.
Fica tudo sem dá pé.
"Vige Maria da Fé "!
Salve-se quem pudé...Fica tudo embolado.
Fica uma confusão.
Na rede é muito dificil,
Mas é pra lá de bão...
Não quero outra vida, não.
A rede pra lá, pra cá...
E o Zeca só a pitá...Quando chega mais adiante,
Dessa baderna inferná,
Tá todo mundo cansado,
E eu, cum os ôio arregalado,
De tanto me arrepiá.
A rede pra lá, pra cá...
E o Zeca só a pitá...Nessa embolada gostosa.
Nesses suspiro ideá.
Sem podê se alevantá.
Caimos nos dois no sono,
Pra tentá nos descansá.
A rede pra lá, pra cá...
E o Zeca parou de pitá...
ESPERA
J. G. de Araújo JorgeSe tivesses mandado uma palavra - "Espera"!
Sem mais nada, nem mesmo explicado até quando,
Eu teria ficado até hoje esperando...
- Era a eterna ilusão de que fosses sincera -Que importaria a vida, o sol, a primavera,
Se eras a vida, o sol, a flor desabrochando?
Se tivesses mandando uma palavra - "Espera"!
Eu teria ficado até hoje esperando...Não mandaste. Tu nada disseste, e eu segui,
Sem saber que fazer da vida que era tua,
Procurando com o mundo esquecer-me de tiE afinal o destino, irônico e mordaz
Ontem, fez-me cruzar com teu olhar na rua,
Ouvi dizer-te, "Espera" e ser tarde demais!
Ai! SE SÊSSE!...
Zé da LuzSe um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dois se impariásse,
Se juntin nós dois vivesse!
Se juntin nós dois morasse
Se juntin nós dois drumisse;
Se juntin nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e tu cum eu insistisse,
prá que eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o bucho do céu furasse?...
Tarvez que nós dois ficasse
tarvez que nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!
O QUI É BRASÍ CABÔCO?
Zé da LuzÉ um Brasí deferente
Do Brasí das capitá.
É um Brasí brasilêro,
Sem mistura de istrangêro,
Um Brasí nacioná!É o Brasí qui não veste
Liforme de gazimira,
Camisa de peito duro,
Cum bituadura de ouro...
Brasí Cabôco só veste,
Camisa grossa de lista,
Carça de brim da "Polista"
Gibão e chapéu de couro!Brasí Cabôco não come
Assentado nos banquete,
Misturado cum os hôme
De casaca e anelão...
Brasí Cabôco só come
O bode sêco, o feijão,
E as vêz uma paneláda,
Um pirão de carne verde,
Nos dias das inleição,
Quando vai servi de iscáda
Prôs hôme de pusição!Brasí Cabôco não sabe
Falá ingrês nem francês,
Munto meno o purtuguês
Qui os outro fala imprestádo...
Brasí Cabôco não iscreve;
Munto má assina o nome
Prá votá, prumode os hôme
Sê Gunverno e Diputádo!Mas porém, Brasí Cabôco,
É um Brasí brasilêro,
Sem mistura de istrangêro
Um Brasí Nacioná!É o Brasí sertanêjo
Dos côco, das imboláda,
Dos samba, dos rialêjo,
Zabumba e caracaxá!É o Brasí das vaquejada,
Do abôio dos vaquêro,
Do arranco das boiáda
Nos fechado ou tabulêro!É o Brasí das cabôca
Qui tem os óio feiticêro,
Qui tem a bôca incarnada,
Como fruta de cardêro
Quando ela náce alêjáda!É o Brasí das promessa
Nas noite de São João!
Dos Carro-de-bôi cantando
Pela bôca dos cocão!É o brasí das cabôca
Qui cum sabença gunverna,
Vinte e cinco pá-de-birro
Cum a munfada entre as perna!Brasí das briga de Galo!
Do jôgo do "Sôco-tôco"!
É o Brasi dos cabôco
Amansadô de cavalo!É o Brasí dos cantadô,
Dêsses cabôco afamado,
Qui nos verso impruvisado,
Sirrindo cantáro o amô;
Cantando choráro as mágua;
-Brasí de Pelino Guéde,
De Ináço da Catinguêra,
De Ugulino do Texêra,
E Rumano da Mãe-d'água!É o Brasí das cabôca,
Qui de noite se dibruça,
Machucando os peito virge
No batente das jinéla...
Vendo, os cabôco pachóla,
Qui geme, chora e saluça
Nas corda de uma vióla
Ruendo paixão, prú éla!É êsse o Brasí Cabôco,
Um Brasí bem brasilêro,
Sem mistura de istrangêro
Um Brasí nacioná!Brasí, qui foi, eu tou certo,
Argum dia discuberto,
Prú Pêdo Arves Cabrá !!!
A TERRA CAIU NO CHÃO
Zé da LuzVisitando o meu sertão
que tanta grandeza encerra,
trouxe um punhado de terra
com a maior satisfação.Fiz isso na intenção,
Como fez Pedro Segundo,
de quando eu deixasse o mundo
levá-lo no meu caixão.Chegando ao Rio, pensei
guardá-lo só para mim
e num saquinho de brim
essa relíquia encerrei!Com carinho e com cuidado
numa ripa do telhado,
o saquinho pendurei...Uma doença apanhei
e vendo bem próxima a morte
lembrando as terras do norte
do saquinho me lembrei.Que cruel desilusão!
As traças, sem coração
meterem os dentes no saco,
fizeram um grande buraco
e a terra caiu no chão.
A CACIMBA
Zé da LuzTá vendo aquela cacimba
lá na bêra do riacho,
im riba da ribanceira,
qui fica, assim, pru dibáxo
de um pé de tamarinêra.Pois, um magóte de môça
quage toda manhanzinha,
foima, assim, aquela tuia,
na bêra da cacimbinha
prá tumar banho de cuia.Eu não sei pru quê razão,
as águas dessa nacente,
as águas que ali se vê,
tem um gosto diferente
das cacimbas de bêbê...As águas da cacimbinha
tem um gôsto mais mió.
Nem sargada, nem insôça...
Tem um gostim do suó
do suvaco déssas môça...Quando eu vejo éssa cacimba,
qui inspio a minha cara
e a cara torno a inspiá,
naquelas águas quiláras,
Pego logo a desejá...... Desejo, prá quê negá?
Desejo ser um caçote,
cum dois óio dêsse tamanho
Prá ver aquele magóte
de môça tumando banho!
AS FLÔ DE PUXINANÃ
(Paródia de As "Flô de Gerematáia" de Napoleão Menezes)
Zé da LuzTrês muié ou três irmã,
três cachôrra da mulesta,
eu vi num dia de festa,
no lugar Puxinanã.A mais véia, a mais ribusta
era mermo uma tentação!
mimosa flô do sertão
que o povo chamava Ogusta.A segunda, a Guléimina,
tinha uns ói qui ô! mardição!
Matava quarqué critão
os oiá déssa minina.Os ói dela paricia
duas istrêla tremendo,
se apagando e se acendendo
em noite de ventania.A tercêra, era Maroca.
Cum um cóipo muito má feito.
Mas porém, tinha nos peito
dois cuscús de mandioca.Dois cuscús, qui, prú capricho,
quando ela passou pru eu,
minhas venta se acendeu
cum o chêro vindo dos bicho.Eu inté, me atrapaiava,
sem sabê das três irmã
qui ei vi im Puxinanã,
qual era a qui mi agradava.Inscuiendo a minha cruz
prá sair desse imbaraço,
desejei, morrê nos braços,
da dona dos dois cuscús!
CONFISSÃO DE CABÔCO
Zé da LuzSeu duotô, sou criminoso.
Sou criminoso de morte.
Tou aqui pra mim intregá.
Voimicê fique sabendo:
- Quando a muié traz a sorte
De atraiçoá o isposo
Só presta para se matá.Nunca pensei, seu doutô
Qui a mão nêga do distino,
Merguiasse as minhas mão
No sangue dos assarcino!Vô li pidí um favô
Ante de vossamercê
Mim butá daqui pra fora:
- É a licença do doutô
Pr'eu li contá minha histora.Sinhô dotô delegado,
Digo a vossa sinhuria
Qui inté onte fui casado
Cum a muié qui im vida
Se chamô ROSA MARIA.Faz dez mês qui se gostemo,
Faz oito qui fumo noivo
Faz sete qui nós casêmo.Nós casêmo e nós vivia
Cuma pobre, é verdade,
Mas a gente se sentia
Rico de filicidade!Pras banda qui nós morava,
No lugá Chã da Cutia,
Morava tombém um cabra
Chamado Chico Faria.Esse cabra, antigamente,
Tinha gostado de Rosa,
Chegaro, inté a sê noivo,
Mas num fizero a "introza"
Do casamento, prumode
Mané Uréia de bode,
Qui era padrim de Maria
Tê dismanchado essa prosa.Entoce, o Chico Faria,
Adispois qui nós casêmo,
In cunversa, as vez dizia,
Qui ainda mi dava fim
Pra se casá cum Maria.Dessa coisa eu sabia,
Mas nunca dei importança.Tinha toda cunfiança
Na muié qui eu tanto amava,
Ou mais mió, adorava...
Cum toda a minha sustança!Dispois disso, o meu custume
Era vivê trabaiando
Sem da muié tê ciume.A muié pru sua vez
Nunca me deu cabimento
Deu pensá qui ela fizesse
Um dia um farcejamento.Mas, seu doutô, tome tento
No resto da minha histora,
Qui o ruim chegô agora:Se não me farta a mimora,
Já faz assim uns três mêis,
Qui o cabra, Chico Faria,
Todo prosa, todo ancho,
Quage sempre, mais das vêz,
Avistava o meu rancho.Puralí, discunfiado
Como quem qué e não qué,
Eu fui vendo qui o marvado
Tentava a minha muié.Ou tentação ou engano,
Eu fui vendo a coisa feia!
Pru derradêro eu já tava
C'a mosca detrás da uréia.Os tempo foi se passando
E o meu arriceiamento
Cada vez ia omentano.Seu dotô, vá iscutano:
Onte, já de tardezinha
O meu cumpade, Quinca Arruda,
Mi chamô pra nós dança
Num samba - lá na Varginha,
Na casa do mestre Duda.Mestre Duda é um cabôco,
Um tocado de premêra.
É o imboladô de côco
Mió daquela rebêra.Entonce Rosa Maria,
Sempre gostou de samba,
Mas, porém, de tardezinha
Me disse discunfiada,
Qui pru samba ela não ia,
Qui tava munto infadada,
Percisava se deita...Eu fiquei discunfiado
Cum a preposta da muié!Dispois qui tomei café,
Cuage puro sem mistura,
Cum a faca na cintura
Fui pru samba, fui sambá.Cheguei no samba, dotô.
Repare agora, o sinhô,
Quem era qui tava lá?O cabra Chico Faria.
Qui quano foi me avistando,
Foi logo mi preguntando:
- Cadê siá dona Maria,
Num veio não, pra dançá?- Não sinhô. Ficô im casa.
Pru cabôco arrispondí.Senti, entonce uma brasa
Queimano meu coração,
Nunca mais pude tirá
As palavra desse cabra
Da minha maginação.Perdí o gosto da festa
E dançá num pude não.O cabra, pru sua vez
Num dançava, seu doutô.
De vez im quando me oiva
Cum um oiá de traidô.Meia noite, mais ou meno,
Se dispidino do povo
Disse: - Adeus, qui eu já vô.Quando ele se arritirô,
Eu tombem me arritirei
Atraiz dele, sim sinhô.
Ele na frente, eu atrais.
Se o cabra andava ligêro,
Eu andava munto mais!Noite iscura qui nem breu!
Nem eu avistava o cabra,
Nem o cabra via eu!Sempre andando, sempre andando.
Ele na frente, eu atrais.Já nem se iscutava mais
A voz do fole tocando
Na casa do mestre Duda!A noite tava mais preta
Qui a cunciênça de Judá!Sempre andando, sempre andando.
Eu fui vendo, seu doutô,
Qui o marvado ia tumando
Direção da minha casa!Minha casa!... Sim sinhô!
Já pertinho, no terrero
Eu mim iscundí pru detraiz
De um pé de trapiazêro.Abaixadim, iscundido,
Prendi a suspiração,
Abri os óio, os ouvido,
Pra mió vê e ouvi
Qua era a sua intenção.Seu doutô, repare bem:
O cabra oiando pra traiz,
Do mermo jeito, qui faiz
Um ladrão pra vê arguém,
Num tendo visto ninguém,
Na minha porta bateu!De lá de dentro uma voiz
Bem baixim arrispondeu...Ele entonce, cá de fora:
- Quem ta bateno sou eu!
De repente abriu-se a porta!
Aí seu doutô, nessa hora
A isperança tava morta,
Tava morto o meu amô...No iscuro uma voiz falô:
- Taqui, seu Chico, essa carta,
Qui a tempo tinha iscrivido
Pra mandá pra voismicê.
Pru favô num leia agora,
Vá simbora, vá simbora,
Qui quando chegá im casa
Tem munto tempo pra lê.Quando minhas oiça ouviu,
As palavra qui Maria
Dizia pru disgraçado,
Eu fiquei amalucado,
Fiquei quage cuma loco,
Ou mio, cumo um cabôco
Quando ta chêi de isprito!Dum sarto, cumo um cabrito,
Eu tava nos pés do cabra
E sem querer dei um grito:- Miserave! E arrastei
Minha faca da cintura.Naquela hora dotô,
Eu vi o Chico Faria,
Na bêra da sipurtura!Mas o cabra têve sorte.
Sempre nessas circunstança
Os home foge da morte.Correu o cabra, dotô
Tão vexado, qui dêxou
A carta caí no chão!Dei de garra do papé,
O portadô da traição!Machuquei nas minha mão,
A honra, douto, a honra
Daquela farsa muié!Dispois oiando pra carta
Tive pena, pode crer,
De num tê prindido a lê.
Nas letra alí iscrivida
O qui dizia Maria
Pru marvado traidô.Tive pena, sim sinhô.
Mas, qui haverá de fazê
Se eu nunca prindí a lê?Maria mi atraiçuô!
Essa muié qui um dia,
Juêiada nos pé do artá
Jurou im nome de Deus
Qui inquanto tivesse vida,
Haverá de mim honrá
E mim amá cum todo amo.Cum perdão do seu doutô.
Quando eu vi a miserave
Na iscurideza da noite
Dos meu oio se iscondê
Sem dêxá nem sombra inté
Entrei pra dentro de casa
Pra mi vingá da muié.Douto, qui hora minguada!
Maria tava ajuêiada,
Chorando, cum as mão posta
Cumo quem faz oração.
Oiando pra eu pedia,
Pelo cali, pela osta,
Pru Jesus crucificado,
Pelo amo qui eu li amava
Qui num fizesse isso não.Eu tava, doutô, eu tava
Cego de raiva e paixão.Sem dizê uma palavra,
Agarrei nas suas mão,
Levantei ela pra riba
E interrei inté o cabo,
O ferro da parnaíba
Pru riba do coração!Sarvei a honra, doutô,
Sarvei a honra, apois não!Dispois qui vi a Maria
Caí sem vida no chão,
Vim fala cum vosmicê,
Vim cunfessá o meu crime
E mim intregá as prisão.Se o sinhô num acredita
Se eu sô criminoso ou não,
Tá aqui a faca assarcina
E o sangue nas minhas mão.Cumo prova da traição,
Tá aqui a carta, doutô.Li peço um grande favô:
Ante de vossa-sinhuria
Mi mandá lá para prisão
Me lêia aqui essa carta
Pr'eu sabê cumo Maria
Perparava essa trição!A CARTA
"Seu Chico:
Chã da Cutia. Digo a vossa senhoria
Que só lhe escrevo essa carta
Pru senhor ficar sabendo
Que eu não sou a mulher
Que o senhor tá entendendo.Se o senhor continuar
Com os seus disbiques atrevidos
O jeito que tem é contar
Tudo, tudo a meu marido.O senhor fique sabendo
Que com seu discaramento,
Não faz nunca eu quebrar
O sagrado juramento
Que eu jurei nos pés do altar,
No dia do casamento.Se o senhor é inxirido,
Encontrou u'a mulher forte,
O nome do meu marido
Eu honro até minha morte!Sou de vossa senhoria,
Sua criada.
MARIA. "