O escritor gaúcho
Caio Fernando Abreu fala sobre a forte influência de Clarice
Lispector em sua obra em entrevista concedida ao Caderno 2 do
Jornal "O Estado de São Paulo" em 09.12.95. Caio era
portador do vírus da aids e faleceu em fevereiro de 1996.
TRECHO DA ENTREVISTA
Caderno 2 - De onde veio a
influência de Clarice Lispector?
Caio - Quando eu estava com 16 anos, ganhei de uma amiga um
exemplar de O Lustre. Fiquei absolutamente deslumbrado. É
um livro tão surpreendente que não parece sequer escrito na língua
brasileira - eu não gosto de falar em língua portuguesa. Li
outros livros de Clarice até que cheguei a Perto do Coração
Selvagem. Com esse livro, entrei de vez em seu universo.
Caderno 2 - Você a
conheceu pessoalmente?
Caio - Em 1971, li um dia no jornal que ela estava em Porto
Alegre para dar uma entrevista na TV e que depois ia autografar
seus livros. Peguei todos os livros que tinha da Clarice e corri
para o estúdio. Deparei, então, com uma mulher linda, enigmática,
silenciosa. Aquela gente toda em torno dela e ela absolutamente
quieta, sentada em uma cadeira com aquelas unhas vermelhas. Não
tive coragem de me aproximar e a fiquei olhando à distância. De
repente, ela me chamou e, com aquela voz cheia de erres presos,
me disse: "Você senta comigo. Você se parece com dom
Quixote e deve ficar a meu lado, porque eu estou muito assustada."
Caderno 2 - Ficaram amigos?
Caio - Pouco tempo depois, viajei ao Rio de Janeiro para o lançamento
de Limite Branco. Assim que cheguei no hotel, telefonei
para ela. "Eu quero ser a madrinha dessa noite", ela me
disse. Apareceu na livraria toda de preto e ficou a noite toda
sentada a meu lado, em silêncio absoluto. De vez em quando, ela
se voltava para mim e, com aquela voz rouca, sussurrava: "Você
é Quixote! Você é Quixote!" Nessa época, Clarice estava
escrevendo Água Viva. Nos dias seguintes, ela me
telefonou várias vezes me convidando para visitá-la em seu
apartamento. Quando eu chegava na portaria, o porteiro me dizia:
"Dona Clarice não está." Ela estava em casa, mas
deixava o porteiro com essa ordem de barrar as visitas e se
esquecia de mim.
Caderno 2 - Ela visitou
você em Porto Alegre?
Caio - Clarice não gostava muito de viajar. Mas um dia, numa
visita a Porto Alegre para um encontro literário, ela me
telefonou. "Quixote, estou aqui", me disse. "Venha
me levar a algum lugar diferente, porque eu não gosto de
escritores." Fomos, então, caminhar pela Rua da Praia. Em
um bar, pedimos um café, que foi servido no copo. "Numa xícara,
por favor", ela pediu. O rapaz, paciente, fez a troca. Ela
tomou o café em absoluto silêncio. Pensei que estivesse
aborrecida. De repente, ela me perguntou: "Como é mesmo o
nome dessa cidade?" Clarice já estava em Porto Alegre há
três dias! Mas isso não importava, ela habitava mesmo o planeta
Lispector.
Caderno 2 - Como você se
livrou de uma influência tão forte?
Caio - Chegou uma hora em que eu me proibi de ler Clarice
Lispector. Seus livros me provocam a sensação de que tudo já
foi escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais
ler as ficções de Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido
de mim mesmo. Mas elas me perturbam muito.