UMA RESERVA NACIONAL
Diogo Mainardi
Todo escritor brasileiro, cedo ou tarde, tem de enfrentar o tema: a miséria. Mais: a miséria dos nordestinos. Ninguém consegue escapar. Nem Clarice Lispector. O seu último livro, A Hora da Estrela, escrito em 1977, o ano de sua morte, é sobre uma datilógrafa alagoana chamada Macabéa. Por mais que se esforce, porém, Clarice Lispector nunca consegue interessar-se completamente por sua pobre nordestina. Quem de fato importa, para ela, é o escritor que está narrando a sua história, um certo Rodrigo S.M. É só através dos sentimentos ambivalentes que provoca em Rodrigo S.M. que Macabéa passa a existir. Tudo começa quando Rodrigo S.M. cruza com Macabéa pela rua. E é tomado por uma mistura de piedade, culpa, afeto, desespero, desprezo. Macabéa é tola. Nada tem a dizer, nada tem a pensar: "sua vida era uma longa meditação sobre o nada". Limita-se a inspirar e a expirar: um pária. A sua história é igualmente insignificante. Muda-se de Alagoas para o Rio de Janeiro. Má datilógrafa. Virgem. Conhece o paraibano Olímpico de Jesus. Sonha em se casar. Olímpico a abandona. Ela consulta uma cartomante. Ao sair da cartomante, morre atropelada. Só isso? Só isso. Nenhum fato relevante que dê um sentido à sua existência, que a redima. Depois de passar a vida inteira tratando de coisas vagas como Deus, amor, morte, quatis e ovos de galinha, Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, tenta mostrar que nada é mais vago do que a realidade. Fazendo o contrário do que sempre fizeram nossos autores regionalistas, ela despe Macabéa de todos os encantos folclorizantes. A pobreza, de acordo com Rodrigo S.M., "é feia e promíscua". E ele se recusa a embelezá-la. Usa uma linguagem embrutecida, descarnada, que reflete a nulidade de Macabéa, sem manchar "com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa". Ou seja, o anti-Guimarães Rosa. Macabéa não é personagem de cordel, não pertence ao universo mítico do Nordeste. Ela não se parece com seus conterrâneos alagoanos Talvane e Chapéu de Couro, envolvidos no assassinato daquela deputada. Está mais para a empregada doméstica de Rodrigo S.M., a mesma que, inadvertidamente, joga fora três páginas fundamentais de seu romance. É aí que entra Clarice Lispector. Que se pergunta, diante de um ser de todo supérfluo e irrelevante como Macabéa: tenho mais valor do que ela? Claro que sim. Clarice Lispector tem mais valor do que Macabéa, do que eu, do que você. Mas o ponto é outro. Vinte e dois anos atrás, quando A Hora da Estrela foi escrito, ainda vivíamos num "apartheid" relativamente eficiente. Os miseráveis ficavam longe de nós, atormentando-nos apenas com o seu desamparo. De lá para cá, eles se tornaram bem mais visíveis. Quebram os vidros dos nossos carros e roubam nossos rádios. E minha sobrinha ouve as músicas que eles ouvem. A exasperada compaixão de Clarice Lispector acabou sendo sufocada. A uma certa altura do romance, Rodrigo S.M. teme que a história de Macabéa possa ser usada como "válvula de escape da média burguesia". O problema agora é saber se a média burguesia ainda sente a necessidade de buscar válvulas de escape ou se ficou definitivamente anestesiada. A minha idéia inicial era fazer um apanhado da obra de Clarice Lispector, aproveitando o fato de que a editora Rocco está relançando todos os seus livros. Deu chabu. Comecei a falar de A Hora da Estrela e ocupei inteiramente o espaço disponível. Melhor assim. Nos próximos tempos pretendo tratar sobretudo de literatura brasileira. Como é raro que publiquem algo que mereça ser resenhado, os outros livros de Clarice Lispector ficam guardados para uma emergência, de reserva. Clarice Lispector é isso: uma das poucas reservas nacionais.
(Revista Veja)