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Um Pote de Margarina Sem Sal

 

Eu estou hospedada nesta década, mas não sou daqui, foi o que passou rapidamente pela mente de Henrietta, naquela noite de sábado, borrifando com uma nuvem de água a samambaia na sacada do seu apartamento. Nascera no ano de 1928 ("As mulheres que sejam inteligentes e que, com a mesma perversa suavidade com que suplicam um vestido, segredem ao ouvido do amado:´trata da tua beleza, sim, meu amor!´ - Revista da Semana, revista feminina, 1928). E não fosse pelas raríssimas ausências mais prolongadas, andou sempre em torno desta cidade, fosse inverno ou verão. Abandonou o borrifador-esguicho e voltou para a cadeira na frente da televisão, onde um apresentador louro e falso tentava atrair a atenção dos velhos ou solitários feito ela, que era as duas coisas. Eram vinte e três horas e trinta minutos e naquele momento se completavam exatas quatro horas desde que fora ao supermercado para comprar papel higiênico e comida de passarinho, o que poderia perfeitamente ter esperado até segunda-feira. Mas é claro que não esperou porque Henrietta precisava de um pretexto para sair de casa. Um pressentimento, uma coisa estranha a oprimira desde que abriu os olhos pela manhã, na cama, e ao se levantar confirmou que o final de semana amanhecia sem sol, apenas mormacento e coberto de nuvens, naquele mês de março. Preparou sua própria comida e comida, naquele momento, para ela, era só a sopa com macarrão e arroz ou o arroz com salsicha, esquentados e requentados incessantemente, a pretexto de almoço ou de jantar. Comeu pensando em se deitar após o almoço, se deitou após o almoço pensando em ir à missa das cinco da tarde e foi à missa das cinco da tarde pensando em ir depois ao supermercado comprar papel higiênico e a ração do passarinho. Nunca teve filhos e jamais se casou, mas a irritava a idéia de chamar aquele passarinho ou um cachorro sonolento de "meu filho", como a maioria das mulheres solitárias da sua idade fazia. Não gostava de bichos e menos ainda de gatos ou de cachorros, aquelas coisas peludas e idiotas, que gostam de fazer cocô pelos cantos. E o passarinho não era filho nem bicho, era passarinho. Filho seria filho de verdade e filhos ela nunca os teve. Isso, agora, se tornava especialmente dolorido quando lembrava da sua ida ao supermercado naquele inicio de noite, há passadas exatas quatro horas. Ao resolver comprar também um pote de margarina sem sal (sem sal por causa dos seus rins), aquela compra extra significou não apenas uma mudança de planejamento da sua economia doméstica mas, sobretudo e principalmente, uma extravagância no seu programa de sábado. A solidão era para ela um grand canyon profundo, onde mergulhava com bastante tempo, tempo suficiente para planejar as tarefas mais prosaicas, antes de o seu corpo e a sua alma frágeis se estatelarem lá no fundo, contra as rochas da sua própria realidade, repetidamente, várias vezes por semana. Ao dobrar no corredor onde deveria estar o balcão refrigerado da margarina, seus olhos puxaram de dentro do fundo falso que havia em seu coração a fotografia fora de moda de Décio, então com trinta anos de idade, vestindo paletó e gravata, em 1955. ("Explique a ele que sua mamãe desaprova programas noturnos para mocinhas de sua idade (...), que seus pais não deixam você sair com pessoas que eles mal conhecem" - Revista A CIGARRA, Seção ‘Mocinha’, 1954). Aquela foto imaginária, que por muito tempo ficou guardada com a lembrança das suas cinco irmãs, a maioria mortas, e até com a lembrança recente da vizinha Maria Cristina que se foi embora para a sua cidade na Fronteira e que a deixou privada do simples, puro e seguro afeto de uma companhia para assistir novelas na televisão ou para tomar chá nas tardes de sexta-feira. E Décio saltou daquele compartimento falso da sua vida de velha, e se pôs ali, na frente dela, no corredor do supermercado, com um vidro de massa de tomate na mão direita, óculos na ponta do nariz, calculadora, caneta e papel na mão esquerda. Décio segurando em sua mão – o vidro de massa de tomate - um pedaço de vida ordinária como ordinária havia sido a vida inteira de ambos. Décio velho e ainda magro, cabelos nem tão brancos nos seus quase setenta e cinco, ao lado da sua mulher enrugada, essa última com os cabelos tingidos por uma falsa e improvável juventude. Ele olhou Henrietta com o olhar desesperado e sufocante, recatado, de quem viveu numa época em que a lembrança, assim, sem aviso, dos beijos trocados por ambos, escondidos ou na rua, há quase cinquenta anos atrás, eram marcas que tatuavam a pele de alguém feito fogo e o fogo da única vez em que foram um para o outro homem e mulher no quarto de um hotelzinho, tatuavam a pele de alguém feito dor e saudade que se levava para o resto da vida, condenando quase sempre um dos dois a um amar eterno e silencioso, casto e conformado como é o amar daqueles que têm pudor e medo, o amar de dois puros, de dois inocentes. ("Noite perdida, / não te lamento:embaixo a vida/ no pensamento, / busco a alvorada/ do sonho isento, / puro e sem nada, / (...) rosa encarnada, / do sonho isento, / muda alvorada / que o pensamento deixa confiada / ao tempo lento.../ minha partida, / minha chegada, / é tudo vento..." – Cecília Meireles, "Música", 1929). Ele a cumprimentou apenas mexendo a cabeça, como se qualquer palavra pronunciada em voz alta, por banal que fosse, naquele ambiente público, na presença da mulher dele, pudesse lançar numa tela a imagem de dois jovens ingênuos, na década de cinquenta, abraçados numa cama clandestina, jurando amor para toda a vida. Henrietta desligou a tevê pensando em Décio e considerando que num momento como aquele, o melhor era – à custa de algum remédio poderoso ou da emoção latente – fazer parar logo o seu coração, pois àquela altura da sua vida já não precisava mais dele nem para alimentar o passarinho que cantava na área de serviço do seu apartamento.                                                                                                                                   (03/00)

 

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