REINÍCIO

 

Pronto, é isso: daqui a pouco a festa vai estar terminando e não foi tão ruim assim. Somos todos civilizados, não somos?

Eu não devia ficar sozinho, devia me juntar a algum grupo, circular, fazer uma exibição de bom-humor, mas estou simplesmente me lixando para as conclusões que possam tirar. Depois de quatro horas de sorrisos, beijos e tapinhas nas costas, tentando dizer as coisas geniais que sempre esperam que eu diga, agora quero é sossego.

Sabendo o tempo todo que o grande assunto da noite somos nós, amanhã vai estar todo o mundo comentando. Eu, Helena, Artur. E a namoradinha dele.

Primeira vez que somos convidados para a mesma festa desde que Helena largou Artur. E ninguém deixou cair a peteca nem uma vez: todos amigos, efusivos, como se desejassem que fôssemos os quatro felizes para sempre, agora que Artur se curou da fossa e da dor-de-cotovelo.

 

Daqui vejo Helena de costas, costas lindas, ainda é a-mulher-mais-bonita-da-festa, como tem sido desde que a conheci. Por quanto tempo ainda, hein? Mais três anos? Se tanto.

Como sempre, cercada por toda a corte de tietes, admiradores & cia. De costas para mim, costas lindas, Helena segura com gesto de princesa seu drinque: água mineral na taça de champanhe. Tudo nela é marca registrada, nada é comum, igual à plebe. Pombas, por que não pode tomar uísque como eu, como todo o mundo? Mas todos adoram mostrar que conhecem as idiossincrasias dela, entra num lugar e já vem alguém correndo com uma flûte cheia de Caxambu, Helena levanta uma sobrancelha, diz "uau!..." baixinho, todos riem cúmplices, encantados. Orgulha-se de estar sempre lúcida, agudamente lúcida, diz ela, quando todos nós, mortais, já estamos devidamente bêbados e vagos. Lúcida demais, Helena, você sempre foi lúcida demais.

 

Será possível que eu esteja me irritando com ela, me irritando justamente com as coisas sempre me atraíram? Ou será que ter encontrado Artur tão feliz, relaxado - pelo menos aparentemente - é o que está incomodando? Afinal, o que é que eu queria? Que ele chegasse abatido, de olhos vermelhos e ficasse comendo Helena com os olhos de longe? Pomba, é claro que não. Mas não pude deixar de invejar aquela tranquilidade, a garota pendurada no braço olhando para ele com a maior admiração, como se tudo o que ele dizia fosse muito importante. Pomba, será que meu problema no fundo é Artur, será que eu quis Helena só porque era dele e agora, que ele parece não precisar mais dela, perde o interesse para mim? Não; é claro que não.

 

Todos os anos que passei louco por essa mulher, isso não vai acabar em um ano de casamento. Ou vai? Desde os tempos de colégio, quando Artur e eu éramos os melhores alunos da classe e competíamos em tudo, e Helena morava na casa em frente à casa de Artur e já era a namorada dele. Íamos ao cinema, Artur com Helena, eu com a menina do momento, cada vez uma diferente, Helena me chamava "o garanhão da Paulicéia" – é claro que eu não levava para sair com ela as meninas com quem podia ser garanhão, naquele tempo as coisas eram bem separadas. Depois que deixávamos Helena em casa, Artur e eu saíamos por aí; Helena ria: "Não volte tarde, vou ficar na janela...".

Outros tempos. Agora, no fim do casamento deles, Helena era quem voltava tarde. Tenho certeza de que algumas vezes vi Artur na janela.

 

Quando a convidei, há dois anos, para assumir a produção de moda na revista, deixando a agência de publicidade, não foi com a intenção de levá-la de Artur. Eu estava tão acostumado a ser o amigo solteirão, ir almoçar na casa deles nos domingos, nem me passava pela cabeça, puxa. Juro, estava tão acostumado.

Desde os tempos de colégio. Hoje em dia parece tão estranho, tão anacrônico, tão démodé. O colégio de padres para os rapazes, o de freiras para as meninas. Helena uma gracinha naquele uniforme, cruzinha pendurada no cinto, um sorriso lindo, as covinhas mais fundas que já vi. Como mudou o mundo, hein, nestes anos. Antigamente, a menina ria, a gente ficava pensando se teria covinhas em algum outro lugar. Na piscina, de maiô inteiro, a gente tinha que imaginar.

 

Tá, então foi isso: convidei Helena para trabalhar comigo com a melhor das intenções (daquelas que pavimentam o caminho para o inferno? Nada disso, nem vem. Com a melhor das intenções.). Artur até achou legal, gostou da idéia. O que eu não esperava era Helena chegar para mim meses depois com aquela segurança toda e um pedido de demissão. Que ia assumir a direção de outra revista, uma revista feminina ainda por ser lançada, sinto muito mas o projeto é meio secreto, e tal e coisa. Fiquei indignado, perdi a calma. "Você não pode ser minha concorrente, Helena." Ela me olhou com os olhos verdes muito abertos, levantou a sobrancelha e quase sorriu. Helena tem um jeito de quase sorrir. Mas não voltou atrás, é claro. Será que foi aí que resolvi: eu tenho que ter essa mulher? Sei lá. Acho que foi desde sempre. Sei lá.

Por que ela me quis já é outra história. Por que agora e não antes, nunca vou entender. O homem certo no momento certo? Ecos de Capitu.

 

Hoje, quando Artur veio se despedir de mim, aperto firme de mão, abraço como antigamente, senti um nó na garganta, ridículo, um nó na garganta, só falta eu chorar agora. Te vejo por aí, cara, ele disse. Apertei a mão com força, não achei o que dizer, queria dizer "você fez falta, cara, você fez tanta falta". Não disse, nem tinha cabimento, ele todo descontraído, tranquilão, eu começar a fazer drama.

 

Eu não tinha percebido ainda como fez falta essa amizade, essa coisa de irmãos que a gente sempre teve. Vai ver era mesmo a coisa mais importante para mim, eu filho único, Artur cheio de irmãos e irmãs, no fundo eles eram a minha família. Mãe, vou dormir na casa do Artur hoje. Mãe, dona Cida convidou a gente para passar a Páscoa lá. Minha mãe ficava feliz, sempre quis uma família grande. Tenho certeza de que Helena sentiu saudade dele também. Se eu perguntar, ela diz. Me olha fundo nos olhos e diz. Essa mania de sempre dizer a verdade. Por isso, acho, as coisas se resolveram tão depressa. "Não posso, querido, não posso ficar enganando Artur." Por mim você ficava, sim, Helena. Assim continuávamos os três juntos. Era tão bom, não era? A gente se afinava.

Por mim, não abriríamos o jogo nunca. Um medo de enfrentar cenas, de tomar atitudes irrevogáveis. Um diplomata, dizem nossos amigos. Um gentleman. Imagine. Covarde, isso sim.

Helena não foi covarde. E Artur não fez cena nenhuma. Por que é que eu achava que faria?

 

Daqui a pouco Helena vai olhar para trás, vai dar uma piscadinha, estender a mão me chamando. Vou lá, passo o braço pelo ombro dela, reclamo que estão monopolizando minha mulher, vamos para casa que lugar de mulher é em casa. Todos já riram tanto esta noite, uma última risada, despedidas. Não quero nem pensar no zumzum depois que saírmos.

No carro Helena se transforma, deita doce no meu ombro, só eu conheço esse lado meigo dela, sem sofisticação, sem pose. Será que ela era assim com Artur também, quando ficavam sozinhos?

 

Digo a Helena que fico feliz por ver que ele está tão bem, ela responde pensativa que a moça é muito bonita. "Você conversou com ela, Helena?" "Pouco. Ela fala pouco. Mas gostei dela. E não é bonita?"

Digo que não é mais bonita que você, Helena, mas de repente penso, e o pensamento é abominável: daqui a cinco anos vai ser. "Que idade você acha que ela tem, hein?" "Sei lá, Reinaldo. Uns vinte? Vinte e dois?" "Menos que a metade da idade dele. Que coisa."

Helena levanta a cabeça do meu ombro, me olha com um sorriso que é de espanto, de malícia, de compreensão: "Reinaldo! Você está com inveja!" "Besteira, quê isso. Pelo contrário, acho que ele vai ter muito trabalho."

Muito trabalho, mas talvez não tanto quanto eu, casado com o centro-das-atenções-em-toda-a-parte, príncipe consorte.

 

Quando Artur se despediu de mim a menina estendeu a mão, tímida. Mãozinha fluida, imaterial, gozado que sempre gostei tanto do aperto de mão firme de Helena e agora fiquei encantado com a mão de pluma dessa menina. Os dois se afastaram abraçados, ela tem um andar que parece não pesar nada no chão, levinha, levinha. "Helena, você podia mandar fazer uns testes de foto dessa moça. Ela deve fotografar bem." Helena, séria: "Reinaldo, eu não vou fazer nada para nos reaproximarmos de Artur. Acho um perigo. Para nós e para ele."

 

Eu concordo, concordo. Entramos em casa, vou tomar um último drinque, devíamos ter voltado mais cedo, tenho muito trabalho amanhã, Helena. Mas ela já está dormindo, os cabelos escovados, brilhantes, escuríssimos, os cílios longos sombreando a pele tão clara, tão lisa, as pálpebras cobrindo os olhos verdes.

Tenho certeza de que não vou conseguir dormir. E, para ser sincero comigo mesmo, tenho medo de dormir e sonhar com — como é mesmo o nome dela? Virgínia. Virgínia.

 

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