Certa vez, o filho pequeno, o pai jovem, o mar de ressaca e o sol preguiçoso recolhendo os ouros do mundo em seus raios mornos estendidos por sobre os montes da Serra, limite abrupto entre o mar dos peixes e a terra dos homens. A mãozinha dele tão pequena, abraçava com todos os dedinhos apenas um dos meus, ao mesmo tempo que olhava com olhinhos apertados e escuros o mar que, de tão violento àquele entardecer, expulsava os pequenos barcos caboteiros e dos pescadores, de volta ao reino dos homens. Difícil crer que mesmo assim, barcos maiores e submarinos com torpedos insensíveis singravam aquele mundaréu de espuma e sal. Súbito, não veio de nenhuma nação impiedosa o torpedo, mas sim do pequeno artilheiro de dedos minúsculos ao meu lado : - Pai, Deus existe ? O deserto da palavra. Quanto tempo se passou desde a minha primeira grande dúvida fundamental ? Sinceramente, poderia esperar por tudo, menos por essa. Por-que será que ele não perguntou algo mais simples, do tipo : "Como foi que eu nasci ?" ou "De onde eu vim ?". Claro ! Outras dúvidas fundamentais como estas só terão razão de ser daqui `a algum tempo. Adolescência talvez... Novamente a palavra estéril, a garganta sêca mas, não devo falhar...não posso. Estremeceu-me dos pés `a raiz dos cabelos a possibilidade quase palpável da não germinação dessa delicada semente que é a Fé humana, e que, embora delicada no início, cresce com velocidade vertiginosa regada pela vida, até se transformar em frondosa árvore de madeira de lei, sequóia por vezes, o único apoio em certos momentos de uma vida e eu, pai e jardineiro, tendo que lança-la nessa mentezinha tão fértil. Respirei fundo e confiei no taco de minha mãe, que dizia ter um filho com o dedo verde, mão boa para plantas. Será ? Em minha infância imaginei Deus como aprendi nas ralhas dos mais velhos e aulinhas do catecismo : O Senhor surgia-me em sonhos com sua enorme barba branca e seus olhos severos de pintura de Miquelângelo, sempre a ralhar conosco em nossas artes e mentiras. Descobrí-o mais bondoso desde então. Deus é pai ? Claro que sim mas, sempre fui meio contra essa absurda transferência de responsabilidade para a titubeante figura paterna, principalmente agora. Deus é amor, pareceu-me fim e não meio, portanto não serve, já que só somos o que somos se descobrir-mos através de nossas experiências, todo o porquê de existir. Falar que Deus criou tudo, o mundo, o universo, em sete dias, sob a minha ótica mais confunde do que explica. Só eu sei o quanto queimei os neurônios tentando engolir essa, que até hoje confesso, ainda não o fiz. A mente das crianças é por demais britânica quanto às nossas noções de tempo. Pelo menos a minha era. "Quando toda pergunta à respeito do nosso passado, da existência humana sobre a Terra, tiver merecido uma resposta convincente, algo restará no universo, que por falta de definição melhor, teremos que chama-la de ... Deus! " Pareceu-me que as de Eric Von Daniken também não serviriam. Eram os Deuses astronautas ? Claro ! Deus é astronauta ! Não, não devo colocar a NASA no meio disso. Chamou-me novamente o pequeno : - Existe pai ? - Claro ... existe sim. Precisava ganhar tempo, mas quanto tempo meu Deus, quanto ? Fitei o horizonte `a procura de ti e lá estavas, sob a forma de um farol, olhos dos navios da terra dos homens. A luz. - Veja, bem lá longe... - Num tô vendo nada ! - Preste atenção ... lá no horizonte. - Qui é horizonte, pai ? - É onde o céu encontra com a Terra, Deus mora lá. O horizonte é a casa de Deus. - E por que não dá pra ver o telhado da casa dele ? - Quem disse que não ? Agachei-me e raptei-o para dentro de minha jaqueta, erguí-me e apontei-lhe o farol, com a luz já visível. - Tá vendo aquela luzinha que acende e apaga lá longe ? - Humm-humm. - Então... é a luzinha do para-raios da casa de Deus ! Tinha-o iniciado na Física outro dia, quando lhe ensinei para quê serviam os para-raios. Um trabalhão a epopéia dos porquês infantis. - Ah ... e o que será que ele tá fazendo agora lá na casa dele ? - Deixa ver ... seis e meia ... deve estar tomando banho. - Eu não acho. Havia uma certa convicção nessa negativa do pequeno. Acho que eu não devia tê-lo provocado quanto à necessidade próxima do horário de seu banho. - Quer apostar ? Veja só quanta onda o mar faz na praia. Deus deve estar se balançando na banheira. - Todas as ondas são do banho de Deus ? - É...são ! Deus é muito grande, faz muita onda. - A espuma também ? - A espuma ... também ! A espuma também é do banho de Deus. Às vezes esquecemos que nós, pais mentirosos, hipócritas e canalhas, temos a natureza como cúmplice e, o silêncio dele, olhando para o mar e as ondas, fêz-me sentir a mais falsa das criaturas vivas sobre a terra dos homens, sensação que desapareceu após um sorriso dele. Alguma conclusão. - Pai ... - Que é ? A garganta tão sêca que a voz saiu quase de pedra. Esperei pelo pior. E o que poderia ser pior do que ser flagrado nesse momento ? - A mãe de Deus não fica brava com Deus se ele suja muito o banheiro quando ele toma banho ? Descobri que toda a água que me faltou à garganta tinha sido bombeada para os meus olhos, mas acho que ele não percebeu. - Não sei filhote, não sei. |