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A primeira vez que ela ouviu aquele som pensou na sua infância, nas festas de sua família para comemorarem o ano novo que de novo só tinha o número porque nada mais mudava. Ah, certo, ela então sabia-se um pouco maior a cada ano novo e a cada ano novo suas necessidades se expandiam e tornavam-se mais complexas e eram sempre superiores, em quantidade e qualidade, ao que ela possuía para satisfazê-las.
Foi assim quando queria o peito da mãe para mamar leite morno e ganhava uma chupeta insossa; ou quando desejou bonecas, muitas e variadas, e engoliu a frustração ao receber uma menina desenhada em papel grosso e na qual, ao invés de lindas roupas em tecido, colocava outros papéis em moldes de vestidos, camisas e calças.
Foi assim quando quis uma bicicleta com rodinhas para não cair, como a da amiga da amiga, e ganhou o velocípede que fora do irmão mais velho e do mais novo que o mais velho e depois da irmã mais velha que ela, mas mais nova que o irmão mais novo que o mais velho, a cada dono uma nova cor pintada pelo pai.
Foi assim quando sonhou com o sutiã visto na revista e ganhou mais panos para cobrir-se e esconder-se e deformar-se para que não se percebessem da mulher que se construía pelos hormônios.
Foi assim quando molhou-se pelo amigo do irmão mais velho, sem nem entender porquê, e percebeu que sequer existia para ele, coberta, escondida e deformada por tantos panos no corpo.
Foi assim quando abriu a boca para seu primeiro beijo de amor e carinho e recebeu lábios por demais ansiosos em por as mãos por baixo dos panos que envolviam e engrossavam seu corpo.
Foi assim sempre que quis, desejou e sonhou e recebeu sempre menos do que querido, desejado. Aprendeu que a vida se vive em duas, a vida sonhada e a vida vivida e aprendeu a fingir que a vida que vivia de dia era o pesadelo da vida que vivia de noite, deitada em seu quarto ao som dos barulhos de seus irmãos e sua irmã, esta sim, vida que sentia vuibrante em seus olhos fechados e cenários que criava, gentes que moldava e que não eram de papel grosso, mas de carne e osso fantasiados.
Foi assim quando seu pai lhe disse que ela iria casar e ela sequer tinha sentido necessidade de viver com um homem e para um homem pois nem tinha vivido com e para ela mesma. Tinha necessidade dela mesma e ganhou um homem para dela cuidar e para ser por ela cuidado.
Foi assim quando deixou a casa do pai para ir para a casa do marido e viu que nada mudara de verdade, era apenas um ano novo fora de época, também dia de festa, mas quando não se mudam números, apenas o seu nome, dela, do pai para o do marido.
E, após algum tempo, descobriu um pedaço de sua vida sonhada entrando em sua vida vivida. Não com a mesma forma e força que tinha aquele pedaço em sonhos, mas entendeu que assim se desse pela passagem do mundo dos sonhos, diáfano, etéreo, para o denso, pesado mundo físico. Intuiu que fora nessa transfiguração que ele ganhou alguns defeitos, não era tão tanto quanto antes fora em sua imaginação, mas ainda conseguira, esforçado, guardar algumas das suas virtudes maiores.
E ela, que se resignara ao respeito do marido, descobriu o carinho do amante e sua necessidade de proteção se satisfez com a paixão.
Mais daqueles sons que ela sabe serem, agora, de bombas explodindo em sua cidade e arredores, mandadas por povos do oeste longínquo cujos nomes aprendera no pouco que estudou; antes dessas, foram bombas de seus vizinhos contra amigos e parentes dela e das famílias de seu pai e de seu marido. Eram granadas e tiros sérvios, depois mísseis americanos.
Seu marido, como ela também neto de albaneses, morreu passivo e choroso na primeira parte da guerra, foi para os braços das huris, por Alá; seu amante morreu, ela não sabe como, nesta segunda parte da guerra, porque era eslavo e matara seu marido, foi para o Céu.
Do marido, guardou o nome, do amante, numa caixinha de jóias, a jóia maior, a que ele trouxe do mundo dos sonhos da adolescência dela para a viva vivida: a virilidade palpável!
Fria e morta, embalsamada, dele para ela, como ela.
Pristina, 1999
Sam
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