A certa altura da sua vida, o lisboeta e mundano (...porque universalista na sua raiz filosófica) Fernando Pessoa víu cair a Monarquia e subir a República, entre um e outro gole de café ali, bem no centro de tudo quanto era, e ainda é, o Poder. Ao fundo, tinha ainda o som luxurioso de uma revolução permanente chamada Tejo.
Um pouco mais tarde,
o mensageiro da velha-nova História, poeta e marujo-de-miragem,
haveria de falar de um "tiraninho", aquele que
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Apelidado, por alguns
homens e mulheres das Letras e outros ilustres intelectuais, de retrógrado,
egoísta e fascista, Fernando Pessoa fazia um percurso muito particular
de identificação d'Ele-mesmo com a época, querendo
mesmo encher a alma com toda a parafernália idealizante apanhada
em cada esquina da Vida, sobretudo a do cotidiano lisboeta. Alguns dos
seus críticos não percerberam, e creio que ainda não
percebem,
essa nítida
jogada em que ía ensaiada, também uma travessia política
cujos contornos ideologizadores não definiam um corpo partidário
- sim, o corpo d'ação cultural e social, aquele cuja amplidão
de subsídios individuais possibilita a formação de
uma corrente autónoma de opiniões!
Sob o olhar crítico pessoano foram analisadas as questões monárquicas como as republicanas e, no meio, a cavalgada rumo ao Poder de um homem simples - politicamente falho mas ideologicamente muito forte: António de Oliveira Salazar. Esse mesmo, o que era
...feito de sal e azar.Assim foi identificado pelo poeta-filósofo aquele que subíu ao Poder para acabar com a anarquia económica de entre a Monarquia e a Primeira República e que se esqueceu de governar Portugal como um país... Este poema pessoano foi primeiramente publicado no Brasil e depois levado ao público português por Sena (1). E a constatação da religiosidade ideológica de Salazar em relação ao Poder não impedíu o poeta de apoiar, por instantes, o Estado Novo enquanto meio de pacificação do país que vivia o caos sociopolítico. Nem o poema Mensagem, premiado pelo SNI (2), foi um ato patriótico culturalmente servido para aquela época; basta observar que o poeta trata de um outro Portugal, um outro que nunca agradou nem a Salazar nem à Igreja católica romana e muito menos à sociedade castrense que forjava os pilares do Estado Novo. E isto, apesar de Ferro (3) ter sido um companheiro do poeta... Pelo que, apelidar o poeta da vasta heteronímica de fascista não passa de uma brincadeira de mau gosto. Bom, e se ele o fosse? Deixaria de ser o poeta maior?...
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só o azar...
Entre um e outro gole de café a febre pessoana de enxergar tudo conseguíu penetrar o mundo delicado do homem de Santa Comba, esse excelente professor universitário - porém, esse político incapaz de se mover para lá do umbigo sacralizado pela Igreja católica romana.
A concha fechada e intolerante do pensar salazarista, naqueles Anos 30 e 40, deixou um traço amargo no olhar pessoano que logo pintou um quadro psicologicamente lírico:
o que não faz sentidoIsto é, o poeta achava também que ela - a Ditadura (ou o Estado Novo) e o seu Chefe político deveriam ser tolerantes o suficiente para abarcar as mudanças vividas pelo mundo moderno. E isto não é um principio, mesmo que simples, de contradição sociopolítica? É. Mas também é o regime de contradições e ambiguidades da qual se alimenta toda a Arte e toda a Cultura -, das quais (re)nasce um país livre. Ou não. Ao sufocar tal percurso, naturalmente humano e ideológico, António de Oliveira Salazar permitíu que Portugal deixasse de ser um país para ser só apelido: o Portugal salazarista e não o Portugal dos portugueses. Claro que para constatar isto ninguém precisa ser marxista: basta ser-português. Eis a razão pela qual a obra poético-histórica Mensagem, face à questão, passou a ser uma pedra de toque do Portugal que deveria ser Portugal; uma obra que era/é uma travessia política dentro do olhar crítico pessoano, almejando o poeta ser-português na sua identificação de Portugal com o Tempo, e não a identificação simples e absurda com o regime
É o sentido que tudo isto tem.
...de sal e azar!Com isto não pretendo diminuir a força ideológica de Salazar, que foi (e bem forte...) um caso histórico na Europa, mas somente chamar a atenção para a negação política que impedíu o desenvolvimento de uma nação tradicionalmente forte dentro dos aspectos socioeconómicos - tão bem (re)tratados por intelectuais como Ferreira de Castro. Porque, ser-salazarista é uma coisa bem particularizada no íntimo de cada correlegionário ideológico, e ser-anti-português é impedir uma Política de aberturas ao mundo e respeitando, inclusive, esse mundo em mudança constante: foi o que fez Salazar. O salazarismo (4) nasceu da miopia de uma Igreja intolerante e politicamente obscena. O mesmo caso se deu com o franquismo, em Espanha... Daí a importância do estudo poético e crítico de Fernando Pessoa em torno do homem que durante quase meio século remou contra Portugal. Sem dúvida que o estudo pessoano foi ousado: vivia(-se), entre um e outro gole de café a não-universalidade do pensamento salazarista. Uma época de chumbo. E, humildemente, criando uma travessia políticadentro do oásis de uma Cultura muito própria, Fernando Pessoa ía deslumbrando a Política com a sua lírica de cidadão atento, muito atento, e apaixonado pelas coisas portuguesas...
(1) - SENA, Jorge de, ensaista e poeta que fez publicar aquele texto pessoano no lisboeta Diário Popular
(2) - Serviço Nacional de Informação
(3) - FERRO, António, foi o homem forte da fachada cultural salazarista
(4) - o salazarismo,
enquanto regime político do Estado Novo, foi derrubado em 25 de
Abril de 1974
|
|
|