Pessoa, Criação Dramática ou... razão poética?
   Anneliese Schmidt
(anneliese@rj.sol.com.br)

 
Apesar  da insistência de Fernando Pessoa em afirmar que  os  heterônimos  equivalem  a  personagens  teatrais,  ponho  em  dúvida essa sua tese: escrita a peça, os personagens,  esses
fantasmas, abandonam o autor e se transferem para  o  texto;  os heterônimos, no entanto, jamais abandonam Pessoa.
 
Desse modo os papéis se invertem: Fernando Pessoa está  mais  vivo  em nossa mente que seus heterônimos, porque dele, sim,  temos um conhecimento dramático. Ele, e não Caeiro, Reis  ou
Álvaro de Campos, é que é o personagem com história e drama.  Ele  é  que,  aos cinco anos perde o pai, seis meses  depois  perde  o  irmão e, em menos de dois anos, ganha um padastro;  ele  é  que  vê  morrer a avó, louca,  e  teme  ele  próprio  enlouquecer; ele é que, desde cedo, percebe que não consegue viver;  ele  é  que  se  sente como  inexistente,  como  uma  passividade que quase nada pode, a não ser se multiplicar em  personagens  fictícios; ele é que, homossexual  que  não  se  aceita, desiste de qualquer vida sexual; ele é que conhece a  solidão  e  o vazio; ele é que conhece "a amargura essencial desta  vida  estranha à vida humana _vida  em  que  nada  se
passa, salvo na consciência dela" e que, por isso, inveja  o  homem  comum, normal, "que sente cansaço em vez de  tédio  e  que sofre em vez de supor que sofre".
 
Pode-se   questionar  se  Fernando  Pessoa  era   um   poeta  dramático, como ele se definiu, mas um personagem dramático, isso ele o foi seguramente.
 
A  relação de um dramaturgo com seus personagens não é igual  à  de  Fernando  Pessoa com seus heterônimos,  mesmo  porque estes  não  são  a  rigor personagens dramáticos.  Isso  não  significa, porém, que não haja diferença entre Pessoa  e  os  heterônimos,  que  eles não existam enquanto  personalidades fictícias por ele criadas ou sejam fruto de mero capricho do poeta.  Não,  os  heterônimos são  expressão  necessária  da personalidade  de  Fernando Pessoa, talvez que  inicialmente como  consequência  de uma tendência  à  mistificação  ou  à  simulação,  conforme ele mesmo admite, mas  que  mais  tarde  tornaram-se parte essencial de seu universo intelectual,  de
sua elaboração da matéria poética.
 
A  novidade que é a criação dos heterônimos _fenômeno  único na  história  da  literatura_,  longe  de  resultar  de  uma originalidade  buscada, nasce das características  especiais da  personalidade  de Fernando Pessoa  e  mesmo  do  que  se  poderia designar como suas deficiências.
 
É  por  não  ter nunca certeza de nada, é por desconfiar  da existência do mundo material à sua volta, por não distinguir  firmemente as fronteiras entre o percebido e o pensado,  por  lhe  parecer tão real _ou irreal_ o que pensa quanto  o  que  percebe sensorialmente, enfim, por não se saber quem  é  nem  quantos  é  nem  mesmo se é, por tudo isso ele  se  projetou  nesses personagens fictícios, que usam de sua mente e de seu  corpo  para existir ou, pelo menos, para pensar e  escrever.  Pode-se  ainda encarar esses heterônimos com  uma  busca  de  alternativa  para  a visão desencantada  e  sofrida  que  se apreende nos versos de Fernando Pessoa-ele-mesmo:
 
   ''Com que ânsia tão raiva
   Quero aquele outrora!
   E eu era feliz? Não sei:
   Fui-o outrora agora''
 
   ou
 
   ''Sou nulo dos dias vãos
   Cheios de lida e de calma,
   Aquece ao menos as mãos
   De quem não entras na alma!''
 
   Ou
 
   ''Ditosos a quem acena
   Um lenço de despedida!
   São felizes: têm pena...
   Eu sofro sem pena a vida''.
 
 
Esse sofrimento  vazio,  que  não  decorre  das   relações  afetivas,  das  paixões e das perdas reais, esse  sofrimento  que  dói  mais por parecer fingimento que por parecer  real,  talvez  encontre um consolo quando Pessoa se  torna  Alberto  Caeiro  e,  na  pele dele, vive uma vida menos  doída.  Como Caeiro, Pessoa aceita a realidade do mundo e se conforma com  vê-la, sem se atormentar em indagações: 

   ''Creio no mundo como um malmequer
   Porque o vejo.
   Mas não penso nele
   Porque pensar é não compreender...
   O mundo não se fez para pensarmos nele
   (Pensar é estar doente dos olhos)
   Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo
   Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
   Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
   Mas porque a amo, e amo-a por isso,
   Porque quem ama não sabe o que ama
   Nem sabe por que ama, nem o que é amar...''
 
 
Alberto  Caeiro  é,  assim,  a  manifestação  de  uma  opção  filosófica  implícita na negatividade da visão  de  Fernando Pessoa:  a  descrença  na  possibilidade  de,  pela   razão,  compreender-se  o  mundo. Mas, em lugar de  tal  verificação conduzir ao desencanto ou ao desespero, conduz, em Caeiro, à  aceitação  tácita  da realidade. O mundo  existe,  está  aí,  basta  senti-lo, uma vez que "há metafísica bastante em  não  pensar  em  nada", e mesmo porque não há o que  indagar,  já
que:

  ''O único sentido íntimo das coisas
   É elas não terem sentido íntimo nenhum''.
 
 

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