O problema da heteronímia através da figura de Álvaro de Campos

Podemos analisar algumas inconseqüência da versão pessoana da gênese dos heterônimos. Com efeito, as missivas dirigidas à Gaspar Simões e Casais Monteiro incluem afirmações e dizeres contraditórios. Ao posar perante a crítica, decerto de olhos em alvo na posteridade, bem se compreende que esse homem, justamente orgulhoso e por natureza retraído, procurasse, mais uma vez, tirar partido do seu gênio de simulação. Desta vez, porém, o disfarce ficou a meio caminho. Se Pessoa garantiu que foi forçado mediunicamente a escrever em nome de Caeiro, Reis ou Álvaro de Campos, revelou, por outro lado, quanto havia de cálculo, de sábio artifício, nas criações heterônicas; mais: chamou-lhes “ficções de interlúdio”, sugerindo perigosamente a natureza lúdica da sua invenção.

O “romance” dos heterônimos contado por Pessoa Casais Monteiro resume-se no seguinte. Desde criança atuou nele uma tendência orgânica para inventar personagens, forjando assim um mundo fictício em que lhe era grato viver. Já aos seis anos visionava o seu primeiro heterônimo, um certo Chevalier de Pas em nome do qual escrevia cartas a si próprio. Por 1912, portanto à roda dos vinte e quatro anos, tendo-lhe ocorrido a idéia de compor poesia de índole pagã, esboçou poemas em versos semi-regular, que desprezou porque não o satisfizeram, ao mesmo tempo vagamente se lhe representava na imaginação o autor desses poemas. Sem ele dar por isso, começava a gestação de Ricardo Reis. Ano e meio ou dois anos depois, lembrou-se de “pregar uma partida” a Sá-Carneiro inventando um “poeta bucólico de espécie complicada”. Tentou elaborá-lo durante vários dias sem nada conseguir. Inesperadamente, no “dia triunfal” de 8 de março de 1914, abeirou-se de uma cômoda alta e, de pé, numa espécie de êxtase de natureza mal definida, escreveu a fio trinta e tantos poemas d’O Guardador de Rebanhos. Nascera outro heterônimo a quem logo deu o nome de Alberto Caeiro. A sensação imediata que experimentou foi de ter achado o seu mestre. A seguir tratou de lhe descobrir “instintiva e subconscientemente” os discípulos.

Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos, ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Salta aos olhos a preocupação de sublimar o caráter involuntário, fatal, destes nascimentos: de repente, num jato, Pessoa teria gerado Campos como as fêmeas dão à luz aos filhos. Mas o relato acrescenta que, uma vez nascidos os heterônimos, Pessoa procurou fixar-lhes os traços biográficos, determinar diferenças de critério, graduar influências. Uma coisa é certa: Fernando Pessoa simulou ao forjar heterônimos; pelo menos em parte, dissimulou ironicamente ao redigir a carta a Casais Monteiro.

Nesta mesma peça capital que é a carta dirigida a Casais Monteiro, e em que atribui os heterônimos ao “fundo traço de histeria”, talvez, Pessoa, embora a certa altura ponha ironicamente em dúvida que o seu “eu” seja mais real que os “eus” de personagens inventadas, expressamente inculca os heterônimos como partes dele próprio, autor em segundo grau, auto de autores.

Toda a problemática da heteronímia, tem uma sistematização e uma quase superstição, frustadas, uma como sobreposição a um Deus negado, mas criador na hipótese de o haver, uma nostalgia do verbo construtor, magicamente interrogadas na transmutação dos símbolos ocultos nos seus versos e desoladoramente inatingidas na conclusão com que comenta inoperante o desejo inscrito na sua poesia.

O que se traduz na vontade criadora de Fernando Pessoa não está de forma alguma, por sua própria maneira de ser, condicionado mais que incidentalmente às atitudes significantes a que ele foi levado em seu próprio comportamento social. Porque, quando Fernando Pessoa se entrega ao exercício do seu dom da literatura, o que escreve, ainda que partindo de uma ligação, sentida, com o real, realiza-se em um irrealismo potentíssimo.

Portanto, o heterônimos correspondem a processos de conhecimento da complexidade cósmica, visto que esta ultrapassa o entendimento de uma só pessoa. Todavia, não poderiam multiplicar-se em quantidade igual à de todos os seres, um a um, que formaram e formarão a humanidade. Em vista disto, Fernando Pessoa fragmenta-se em heterônimos-símbolos, como se desenvolvesse as cosmovisões particulares.

O processo gerador de heterônimos corresponde a uma genial mistificação, na medida dos desdobramentos constituem máscaras de que Fernando Pessoa se vale para, escondendo-se, revelar a íntima essência do seu psiquismo ou vice-versa. Bem por isso, a poesia ortônima (ou seja, a que publicou com o próprio nome) continua sendo heterônima, de forma que o verdadeiro Fernando Pessoa se manteria oculto ou inexpresso atrás das máscaras. Ou, por outra, ele se exprimiria igualmente em todas as configurações assumidas por seu talento imaginativo, mas, no caso se quisesse colocar o problema da “sinceridade”, poder-se-ia dizer que é através da figura de Álvaro de Campos, que Fernando Pessoa se mostra “sincero”, vale dizer, por intermédio dele, Fernando Pessoa teria revelado com sinceridade o que realmente existiria no fundo de sua mente. Desse modo, as posições se trocariam e Álvaro de Campos seria o “Fernando Pessoa” de quem Fernando Pessoa ele-mesmo seria heterônimo, como se o poeta fosse Álvaro de Campos e Fernando Pessoa um seu heterônimo.

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