CARMINHA SABUGO DE MILHO


        Lá vem Dona Carminha, miúda e ligeira, com seus mais de oitenta anos, lencinho amarrado nos cabelos de algodão, meia em um dos pés e uma faixa amarela no outro. Os moleques da rua insultam-na dizendo:
        -Velha biruta, sabugo de milho...
        Ela responde:
        -Sexta feira santa é 1º de abril
        Os moleques riem e vão embora correndo e pulando.
        Enquanto minha tia varre as folhas da calçada, Dona Carminha se achega, protegendo o rosto contra o sol com sua bolsinha preta. Sempre muito falante, vai logo dizendo:
        -Trago assim esta bolsa para proteger-me do sol, mas dinheiro nela não há, só tem nela um pouquinho de sabão em pó que achei, veja...
        E vai tirando da bolsa um lencinho azul e, desdobrando, mostra um fundo de caixa de sabão em pó com um resto grudado.
        Logo a vizinha se aproxima e começa uma conversa curiosa: Dona Carminha nos conta que já foi casada, teve dois filhos e que foi de família abastada, mas hoje vive só, pois todos morreram e ela vive de uma miserável aposentadoria e da ajuda do povo da pequena cidade.
        Chamou-me a atenção o vocabulário e o português corretos de Dona Carminha. Logo deu-nos mostras que, entre delírio e lucidez, havia também fragmentos de uma esmerada cultura. Então como se aquilo estivesse cravado em sua alma. Ela recitou:


                O trigal entregou-se à morte.
                Já as foices cortam as espigas.
                Cabeceiam os choupos falando
                com a alma sutil da brisa.
                O trigal só quer silêncio.
                Coalhou-se com o sol, e suspira
                pelo amplo elemento em que moram
                os sonhos despertos.
                O dia, já maduro de luz e som,
                pelos montes azuis se declina.
                Parecem as espigas velhos pássaros...
(*)


        Cala-se no meio do verso, não se lembra mais. Depois acrescenta que eram versos de um poeta espanhol e que a mãe que era espanhola costumava recitar. Fica outra vez em silêncio como que buscando lembranças dos tempos idos. Tento prendê-la um pouco mais, t para descobrir que tesouros mais guardava aquela alma camuflada pela idade e pela aparente loucura que parecia fuga de um tempo sofrido e lágrimas choradas. Ela desenvencilhou-se da conversa, como alguém que tinha muito o que fazer e foi embora no seu passinho ligeiro, espalhando versos incompletos pela rua:


                São cabecinhas
                que têm cérebro de ouro puro
                e expressões tranquilas
        E repetia:
                ...Cabecinhas de ouro puro e expressões tranquilas.         

(*)Trecho do poema "Espigas" de Frederico Garcia Lorca.

Copyright©Neusa Buscko Codato

VOLTAR

1