Às 23:30 daquela quarta-feira de maio decolava do Aeroporto dos Guararapes um boing da TAP com destino a Madri, e eu sentado numa de suas poltronas tentava em vão identificar os meus pais e o meu irmão mais velho na esperança de lhes retribuir os acenos.
Mas aos poucos o avião ia ganhando altura e, na medida em que as pontes e os viadutos e os incontáveis edifícios do Recife se tornavam cada vez menores e mais insignificantes, eu me questionava sobre o porquê de se largar a família, os amigos, o trabalho e os lazeres para fazer uma aventura que eu sabia que não iria ser fácil: caminhar 800Km desde San Jean Pied de Port, no País Basco francês, até a legendária cidade de Santiago de Compostela.
A história do caminho:
Após a morte de Jesus Cristo os apóstolos se dispersaram pelo mundo no intuito de divulgar o Evangelho e a fé cristã, tendo Tiago sido designado para as terras mais ocidentais as quais correspondem atualmente a Galícia, Zaragoza e Valência, de acordo com registros históricos. Durante todos esses anos de pregação não mais que quatro ou cinco pessoas se converteram ao cristianismo, o que talvez tenha motivado o apóstolo a voltar a Jerusalém onde, por motivos político-religiosos, teve o corpo decapitado e jogado aos corvos no ano 44 d.C. por ordem de Herodes Agrippa.
Todavia, alguns discípulos naquela madrugada recolheram o corpo do mestre para levá-lo, através de um longo e tenebroso percurso, até as longínquas terras onde pregou o apóstolo e onde, conforme seu desejo, gostaria de ser enterrado. Após uma lacuna histórica de oito séculos, justificada pelo domínio mouro na Península Ibérica, um pastor chamado Pelayo avistou uma chuva de estrelas (campo stellae do latim originou o nome Compostela, que significa campo de estrelas) e se dirigiu ao local do fenômeno encontrando o túmulo de Santiago, o que mais tarde foi confirmado pelo bispo de Iria Flávia.
As pessoas, então, começaram a fazer orações e a atribuir graças ao santo, até que o bispo de Le Puy com a propagação da notícia deixou a sua cidade na França e foi a pé até a tal tumba, tendo sido considerado o primeiro peregrino da história. Logo, sob a égide da Igreja Católica e da Ordem dos Templários, peregrinos de todas as partes da Europa, e inclusive do oriente, começavam a aparecer e a fazer povoar estrategicamente aquela região.
O rei Afonso II, naturalmente na intenção de torná-lo um símbolo da reconquista contra os mouros, nomeou o santo patrono da Espanha e ordenou a construção de uma igreja para o seu mausoléu, ao redor da qual toda a cidade de Santiago foi construída. E as pregações que Santiago fez deixaram de ser o aparente fracasso para se transformar na maior rota de peregrinação do cristianismo.
O Caminho Francês:
Há diversos caminhos para se chegar a Santiago, a exemplo de rotas que saem de Portugal e das várias regiões da Espanha, e o escolhido por mim foi o mais tradicional e conhecido de todos: El Camino Francés. Ele começa na cidade de San Jean Pied de Port, nos pirineus, e se unifica com todas as outras rotas (exceto a Portuguesa) em Punta La Reina, e é o que dispõe da melhor estrutura em termos de hospedagem e alimentação.
O norte inteiro da Espanha é atravessado nesta peregrinação, desde o País Basco até a Galícia, cruzando regiões interessantes como a Navarra, Leon e Castela, e atravessando cidades importantes como Pamplona, Burgos e Leon. Cada uma dessas regiões, além de suas riquezas históricas, nos oferece comidas típicas, roupas e danças diferentes, uma geografia singular e, na maioria das vezes, um dialeto ou idioma próprio.
O dia-a-dia do peregrino:
O peregrino se hospeda em albergues, locais específicos para os que estão fazendo o caminho nas modalidades a pé, a cavalo e de bicicleta, e que geralmente são mosteiros antigos, velhas igrejas reformadas ou repartições públicas adaptadas para receber pessoas. Ao carimbar a sua credencial del peregrino o caminhante é levado pelo albergueiro a um quarto geralmente grande e repleto de beliches onde dormem juntos homens e mulheres que têm de dividir não apenas o ronco como também o banheiro, não havendo muita privacidade.
A maioria dos peregrinos se levanta para a caminhada em torno das 6:00 na intenção de fugir do causticante sol do meio-dia, uns preferindo a caminhada em grupo e outros optam pela solidão, embora sempre haja grupos involuntários se formando ao longo dos dias de convivência. É importante saber que por mais que queiramos estar a sós sempre teremos companhia, seja nas trilhas, nos bares, no refúgio ou onde for, e que por mais que queiramos ter companhia sempre estaremos a sós, apenas nós e o nosso pensamento.
Após algumas horas de caminhada, em que o peregrino faz em média 5 ou 4 km por hora, devido ao terreno ser geralmente acidentado, ele coloca a sua mochila sobre a cama numa maneira de separar o seu espaço. Então ele toma banho (porque suou muito e levou bastante poeira ou se sujou de lama), lava as roupas em qualquer pia do albergue e as põe para secar, ficando livre para almoçar ou descansar.
As refeições podem ser preparadas nas cozinhas dos albergues que dispõe de todo o aparato, a exemplo de panela, prato, talheres, fogão etc, sendo necessário apenas a compra das comidas e ingredientes; a outra opção é comer o menu del peregrino, que são refeições ótimas e baratas ( custam em torno de R$ 13,00), oferecidas em restaurantes que praticamente se especializaram em atender a peregrinos, com direito à entrada, sobremesa e prato principal, e sempre regadas a muito, muito vinho.
À noite, depois de uma merecida siesta pela tarde, os peregrinos se reúnem para contar suas histórias e experiências com relação ao caminha e à vida de um modo geral, e aproveitam para tomar vinho e talvez fazer um pequeno banquete em que cada um oferece aquilo que tem: alguém dá os pães, outro o queijo, outro o leite, outro as frutas, outro prepara a comida etc; e no final acontece aquele verdadeiro banquete de comida e amizade.
Esses momentos de alegre convivência, provavelmente um dos mais ricos de todo a peregrinação têm o inconveniente de serem interrompidos às 22:00, porque é nesse horário que a maioria dos albergues fecha as portas e ninguém pode mais entrar ou sair senão ficará do lado de fora. Além do mais há que se fazer silêncio pois outros querem dormir, o que não é problema porque o desgaste físico é tanto que todos acabam dormindo muito cedo para poder escalar o cume do dia seguinte.
As belezas do caminho:
As pontes romanas e as igrejas do século XII, que sempre abarcam mais de um estilo arquitetônico, como por exemplo o gótico, o românico e o renascentista, posto que levavam séculos para serem construídas, são sempre locais para o caminhante conhecer e meditar.
As paisagens naturais são ainda uma riqueza maior do caminho, pois os bosques, os rios, as pequenas cachoeiras e as montanhas parecem muitas vezes terem saído de um sonho, impressão que aumentava quando havia bruma e nos mais bonitos nasceres de sol que já pude ver.
Um programa interessante é simplesmente passear com os amigos pelos vilarejos, que normalmente são lugares demasiadamente pequenos, e aproveitar para tirar fotos e observar como a vida se perdeu no tempo ali - ruas de pedra, senhoras que se preparam para ir à missa, homens velhos de boina e moletom a jogar baralho, ninhos de cegonha nas torres de uma igreja e um extraordinário roseiral são imagens bem emblemáticas do caminho.
Tauden Farias
Advogado e Poeta
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