O Chamado

da Floresta

 

Jack London

 

 

 

Buck é um cão como nunca se viu igual. Mas o amor que sente pelo dono, Thornton, é suficiente para conter seus instintos selvagens? Nas paisagens geladas do Canadá e do Alasca, povoadas de índios e aventureiros, o próprio Buck deve descobrir a resposta. Neste romance clássico, a influência do meio sobre o ser humano é discutida com base na perspectiva de um animal.

 

Jornalista e escritor, o americano Jack London (1876-1916) teve

uma vida de aventuras muito próxima às histórias que criou.

 

 

 

I

De encontro ao primitivo

 

 

“O salto nômade de antigas imagens

As correntes do costume desafia;

Nas brumas do sono, uma voz, como guia,

Desperta na fera seus instintos selvagens.”

 

 

Buck não lia jornais, do contrário saberia que tempos difíceis estavam chegando, não só para ele, mas para todo cão que, do estreito de Puget a San Diego, tivesse músculos fortes e pêlos longos e quentes. Isso porque os homens, tateando na escuridão do Ártico, haviam encontrado um metal amarelo, e as companhias de navegação, espalhando a notícia pelo mundo afora, acabaram fazendo que milhares de homens corressem para as terras do Norte. Esses homens precisavam de cães, e os cães que procuravam eram cães pesados, com músculos fortes para suportar o trabalho na neve e capas peludas para proteger-se do frio intenso.

Buck vivia numa casa grande, no ensolarado vale de Santa Clara. O sítio do juiz Miller, era como chamavam o lugar. A casa ficava afastada da estrada, meio escondida entre as árvores, através das quais se podia ver a ampla e sombreada varanda que a contornava. Os caminhos que levavam até lá eram cobertos de cascalhos e cortavam sinuosos os extensos gramados, sob os galhos entrelaçados dos altos álamos. Nos fundos, havia um espaço ainda maior. Estábulos enormes, onde trabalhavam cerca de doze homens; fileiras de cabanas cobertas de vinhas, onde moravam os empregados; uma série interminável de pequenas construções e telheiros; extensas vinhas, verdes pastos, pomares, canteiros de morangos e frutos silvestres. E ainda se podiam ver as instalações da bomba do poço artesiano e o imenso tanque cimentado onde os filhos do juiz davam seu mergulho matinal e se refrescavam nas tardes de calor.

E, nesses vastos domínios, Buck reinava absoluto. Aqui nascera e aqui morara os quatro anos de sua vida. Era bem verdade que havia outros cães. Nem podia ser de outro modo num lugar tão imenso como esse; mas eles não contavam. Iam e vinham com a mesma facilidade; ficavam nos canis, entre outros tantos iguais a eles, ou levavam uma vida obscura no interior da casa, como no caso de Toots, o pug japonês, ou Ysabel, a Mexican hairless; criaturas estranhas que raramente punham o focinho para fora da porta e quase nunca chegavam a pisar o chão. Pudera: do lado de lá, havia sempre pelo menos uns vinte fox terriers lançando promessas verdadeiramente tenebrosas para os dois, que ficavam só olhando pelas janelas, protegidos por uma legião de empregadas armadas de vassouras e esfregões.

Mas Buck não era nem um cão da casa nem um cão do canil. Todo o reino lhe pertencia. Mergulhava no tanque com os filhos do juiz; caçava com eles; acompanhava Mollie e Alice, as filhas do juiz, em longas caminhadas à luz do entardecer ou logo pela manhã; nas noites de inverno, ficava deitado aos pés do juiz, diante da lareira da biblioteca, ouvindo os estalos da lenha; carregava os netos do juiz nas costas; rolava com eles pela grama e vigiava seus passos nas aventuras arriscadas que empreendiam junto à fonte no pátio do estábulo, ou ainda mais adiante, nos cercados próximos aos cavalos e nos canteiros de morangos. Ignorava por completo Toots e Ysabel e, entre os terriers, caminhava altivo, exibindo uma superioridade absoluta, pois era ele o rei — rei sobre todas as criaturas da terra, da água e do ar que habitavam o sítio do juiz Miller, inclusive os humanos.

Seu pai, Elmo, um são-bernardo enorme, havia sido o companheiro inseparável do juiz, e Buck prometia seguir o mesmo caminho do pai. Não era tão grande — pesava só sessenta e cinco quilos —, uma vez que a mãe, Shep, era uma collie. Mesmo assim, os sessenta e cinco quilos, somados à dignidade típica de quem desfruta o bom e o melhor e goza o respeito de todos, permitiam que ele se portasse como um rei. Naqueles quatro anos, desde seus tempos de cachorrinho, vivera como um grande aristocrata; tinha um orgulho enorme de si mesmo e era até um tanto egoísta, como são, às vezes, os grandes proprietários rurais pelo tipo de vida isolada que levam. Mas Buck escapara de ser só mais um cão caseiro e cheio de mimos. A caça e outras diversões ao ar livre mantinham seu peso sob controle e fortaleciam seus músculos; e para ele, como para os cães de clima frio, o amor à água funcionava como um tônico, preservando sua saúde.

E era assim a vida do cachorro Buck no outono de 1897, quando a descoberta no rio Klondike arrastava homens de todas as partes do mundo para as terras geladas do Norte. Mas Buck não lia jornais e não sabia que Manuel, um dos ajudantes do jardineiro, podia vir a ser uma figura indesejável. É que Manuel tinha um vício. Era louco por loteria. E, pior ainda, toda vez que jogava, deixava-se levar por uma fraqueza fatal — teimava numa mesma combinação, o que acabou trazendo a sua ruína. Porque para insistir em determinado jogo é preciso muito dinheiro, e o salário de um ajudante de jardineiro não vai muito além das necessidades de uma esposa e uma prole numerosa.

O juiz havia ido a uma reunião da Associação dos Produtores de Passas, e os meninos estavam ocupados organizando um clube esportivo, na noite memorável em que se deu a traição de Manuel. Ninguém viu quando ele e Buck saíram, atravessando o pomar naquilo que Buck imaginava ser apenas um passeio. E, a não ser por um único homem, ninguém os viu chegar à pequena estação conhecida como College Park. Esse homem trocou algumas palavras com Manuel, e o som das moedas se fez ouvir entre eles.

—Você bem que podia embrulhar a mercadoria antes de entregar — disse o estranho num tom meio grosseiro, e Manuel dobrou um pedaço de corda grossa, passando-o ao redor do pescoço de Buck, por baixo da coleira.

—Aperta isso assim, firme, e você controla ele de jeito, entendeu? — disse Manuel, e o estranho grunhiu uma afirmativa.

Buck aceitara a corda com serena dignidade. Certamente essa não era uma operação muito comum, mas ele aprendera a confiar nos homens que conhecia e a lhes dar crédito por possuírem uma sabedoria que ia além da sua. Contudo, quando as pontas da corda passaram para as mãos do estranho, rosnou de forma ameaçadora. Simplesmente deu a entender que estava descontente, acreditando, em seu orgulho, que a mera insinuação seria suficiente. Qual não foi seu espanto quando a corda apertou seu pescoço, dificultando terrivelmente sua respiração. Numa ira cega ele avançou para cima do homem, que reagiu no mesmo instante, agarrando o cão pela garganta e, com um movimento rápido, jogando o animal por cima das costas. Foi então que a corda o sufocou sem piedade, e Buck se debateu furioso, desesperado, a língua para fora, o peito enorme arfando inutilmente. Nunca em toda a sua vida havia sentido tanta raiva. Mas a força foi lhe faltando, os olhos ficaram enevoados, e ele não sabia de mais nada quando o trem partiu e os dois homens o atiraram para dentro do vagão de carga.

A próxima coisa de que teve consciência foi uma vaga sensação de que sua língua doía e de que ele sacolejava em algum tipo de veículo. O chiado rouco das engrenagens e o assobio da locomotiva, anunciando um cruzamento, lhe disseram onde estava. Já tinha viajado muitas vezes com o juiz e sabia reconhecer a sensação de andar num vagão de carga. Abriu os olhos, e neles havia a ira descontrolada de um rei sequestrado. O homem ainda tentou estender o braço para lhe apertar a garganta, mas Buck foi mais rápido. Seus dentes se fecharam sobre a mão e não a soltaram até que o homem o fez perder os sentidos mais uma vez.

—É, ele anda tendo uns ataques —, disse o homem escondendo do fiscal de carga, que fora atraído pelos ruídos de luta, a mão estraçalhada. —O patrão pediu pra levar ele lá pra São Francisco. Tem um médico de cachorro lá, um cara famoso e tudo, que acha que pode deixar ele bom de novo.

Considerando-se a viagem daquela noite, o homem até que conseguia ser convincente ao contar sua história num galpão nos fundos de um boteco na baía de São Francisco.

—Tudo o que eu consigo é cinquenta — resmungou. —E eu não dava ele nem por mil dólares, dinheiro vivo.

A mão estava enrolada num lenço cheio de sangue, e a perna direita da calça, rasgada desde o joelho até embaixo.

—E  quanto foi mesmo que o outro otário lá te ofereceu? — perguntou o dono do boteco.

—Cem — foi a resposta. —Nem um centavo a menos, pode acreditar.

—Isso dá cento e cinquenta — calculou o dono do boteco. —E é o que ele vale, ou eu é que vou passar por idiota.

O sequestrador tirou o pano ensanguentado e examinou a mão lacerada.

—Se eu não pegar raiva...

—Vai ser porque quem nasce pra morrer assado não morre cozido, homem. E nem mordido — riu o dono do boteco. — Anda, vai, me dá uma mão aqui, a que te resta, antes de ganhar o mundo — acrescentou.

Meio zonzo, sentindo uma dor insuportável na língua e na garganta, com a vida quase arrancada de si, Buck ainda tentou enfrentar seus carrascos. Mas foi dominado, jogado ao chão e esganado sem piedade até que eles, usando uma lima. Conseguissem romper a grossa coleira de metal que trazia no pescoço. Depois tiraram a corda e o jogaram dentro de um engradado que mais parecia uma gaiola.

Lá ficou o resto daquela noite de sofrimentos, o ódio e o orgulho ferido crescendo mais e mais. Não conseguia entender o que significava tudo aquilo. Esses homens estranhos, o que queriam com ele? Por que o mantinham preso naquela jaula apertada? Ele não sabia bem por quê, mas se sentia oprimido por uma espécie de intuição de que uma desgraça estava prestes a acontecer. Diversas vezes durante a noite, ele se ergueu ao ouvir a porta do galpão abrir-se, na esperança de ver o juiz ou, pelo menos, os meninos. Mas toda vez o que via era a cara inchada do dono do boteco, que o espiava à luz mortiça de uma vela de sebo. E toda vez o latido de alegria que Buck trazia preso na garganta se transformava num rosnado selvagem.

Mas o dono do bar logo o deixou em paz, e, pela manhã, quatro homens entraram para apanhar o engradado. Mais carrascos, concluiu Buck, pois eram criaturas mal-encaradas, homens de aspecto cruel, maltrapilhos e sujos. Tomado por uma fúria sem igual, Buck investiu contra as grades na tentativa de atacá-los. Eles, por sua vez, apenas riram e o provocaram ainda mais, atiçando Buck com varas que ele, ainda mais furioso, logo tentava agarrar com os dentes. Até que percebeu que isso era exatamente o que queriam. Desse momento em diante, deitou-se cabisbaixo e deixou que os homens levassem o engradado para uma carroça. Então ele e o engradado em que estava preso começaram a passar de mão em mão. Funcionários que trabalhavam no expresso se encarregaram dele; foi levado para outra carroça; seguiu num vagão aberto, entre pilhas de caixas e pacotes até uma balsa a vapor; saiu da balsa, ainda no vagão aberto, e estava numa grande estação de trem, onde, finalmente, foi colocado num dos vagões do expresso.

Por dois dias e duas noites esse vagão seguiu em frente, arrastado na rabeira de locomotivas barulhentas; e por dois dias e duas noites Buck não comeu nem bebeu. Com raiva que sentia, recebera com rosnados as primeiras tentativas de aproximação dos mensageiros do expresso, e eles revidaram, provocando Buck ainda mais. Quando ele saltava sobre as barras do engradado, tremendo e espumando de raiva, riam dele, zombando de seu desespero. Rosnavam e latiam como cães danados, miavam e cacarejavam, batendo os braços como se fossem asas. Era tudo muito idiota, ele sabia; no entanto, quanto mais ultrajavam sua dignidade, maior a sua raiva. A fome até que não o incomodava tanto, mas a falta de água lhe causava um sofrimento absurdo e aumentava sua ira a tal ponto que parecia estar com uma febre intensa. E, sendo extremamente excitável e sensível, os maus-tratos acabaram fazendo que Buck ficasse realmente com febre, ocasionada pela inflamação na língua e na garganta, bastante irritadas.

Só uma coisa o alegrava: a corda não estava mais em seu pescoço. Isso lhes dera uma vantagem injusta; mas, agora que estava sem a corda, eles iam ver só. Jamais colocariam outra corda em seu pescoço. Disso ele tinha certeza. Por dois dias e duas noites não comeu nem bebeu e, durante aqueles dois dias e duas noites de tormentos, acumulou uma reserva de ódio que prometia o pior para a primeira pessoa que o contrariasse. Seus olhos ficaram injetados, e ele se transformou num demônio enfurecido. Tão mudado, que o próprio juiz não o teria reconhecido; e os mensageiros do expresso respiraram aliviados quando o botaram para fora do trem, em Seattle.

Quatro homens carregaram o engradado, com todo o cuidado, da carroça a um pequeno quintal cercado por muros altos. Um homem encorpado, com um suéter vermelho bem largo no pescoço, apareceu e assinou o recibo de entrega para o cocheiro. Esse era o homem, deduziu Buck, o próximo carrasco, e se lançou violentamente contra as grades, latindo como louco. O homem sorriu de uma forma um tanto sinistra e voltou com uma machadinha e um pedaço de pau.

—Você não vai soltar ele agora, vai? — perguntou o cocheiro.

—Vou sim senhor — respondeu o homem, enfiando a machadinha no engradado como se fosse um pé-de-cabra.

Na mesma hora, os quatro homens que haviam trazido o engradado fugiram para cima do muro, e de lá, empoleirados, prepararam-se para assistir ao que viria, em segurança.

Buck investia contra a madeira, que ia cedendo com os golpes, e enfiava os dentes nas partes lascadas, lutando desesperado para sair. Toda vez que a machadinha golpeava por fora, ele, de dentro, rosnava impaciente, tão ansioso para sair quanto o homem de suéter vermelho parecia calmo e determinado a tirá-lo de lá.

—É agora, seu diabo de olho vermelho — disse ele, assim que conseguiu fazer uma abertura grande o bastante para que Buck pudesse passar. No mesmo instante, largou a machadinha e passou o porrete para a mão direita.

E Buck parecia mesmo um diabo de olhos vermelhos, quando se preparava para saltar para fora, o pêlo eriçado, a boca espumando, um brilho desatinado nos olhos. Foi direto para cima do homem, com seus sessenta e cinco quilos de fúria e mais a dor engasgada de dois dias e duas noites de cárcere. Em pleno ar, bem na hora em que estava prestes a morder o homem em cheio, recebeu uma pancada tão violenta que o paralisou e fez que rangesse os dentes de pura agonia. Girou sobre o próprio corpo, indo bater de costas no chão. Jamais havia recebido uma paulada em sua vida e não conseguia entender o que era aquilo. Com um rosnado, que era em parte um latido e em parte um uivo, pôs-se novamente sobre as patas e saltou sobre o homem mais uma vez. E mais uma vez recebeu a pancada, que o levou ao chão, aniquilado. Dessa vez percebeu que era o porrete o que causava aquilo, mas a loucura não conhece o cuidado. Por doze vezes atacou, e por doze vezes o bastão pôs fim a seu ataque, deixando o animal prostrado no chão.

Depois de um golpe especialmente violento, ficou rastejando, atordoado demais para tentar atacar outra vez. Cambaleou no chão, o sangue jorrando nas narinas, da boca e dos ouvidos, seu pêlo impecável todo manchado de sangue e saliva. Foi então que o homem avançou em sua direção e, deliberadamente, desferiu-lhe um golpe terrível no focinho. Toda a dor que até então havia suportado não era nada comparada à intensa agonia desse último golpe. Com um som feroz, quase como o rugido de um leão, pulou para cima do homem mais uma vez. Mas este, passando rapidamente o cacete para a outra mão, agarrou o animal pela boca e, sustentando-o apenas com essa mão, pôs-se a sacudi-lo para baixo e para cima. Buck descreveu um círculo completo no ar, e ainda um semi-círculo, depois desabou no chão, batendo em cheio a cabeça e o peito.

Avançou, pela última vez. Então o homem desferiu-lhe o golpe certeiro, que vinha guardando especialmente para o final, e Buck voou longe, encolhido de tanta dor. Depois caiu, completamente sem sentidos.

—Rapaz, o homem é mesmo fera pra domar cachorro, nunca vi coisa igual! — gritou entusiasmado um dos homens que estavam no muro.

—É, Druther tá acostumado; doma potro brabo todo dia, e tem dia que chega a domar dois — foi o que respondeu o cocheiro, enquanto subia na carroça e punha os cavalos em movimento.

Buck recuperou os sentidos, mas não a força. Permaneceu onde havia caído e de lá observava o homem de suéter vermelho.

—“Atende pelo nome de Buck” — disse o homem para si mesmo, lendo em voz alta a carta do dono do boteco, que lhe passava, oficialmente, o engradado e seu conteúdo. — Então é isso, Buck, meu filho — continuou, com uma voz reconfortante —, tivemos nosso primeiro arranca-rabo, e é bom que seja o primeiro e o último, pra você e pra mim. Você já conhece agora o seu lugar, e eu conheço o meu. Seja um cachorro bonzinho, e tudo vai dar certo, vai tá tudo direitinho. Agora, se você bancar o cão danado, eu vou te arrancar o couro... Entendeu bem, rapaz?

Enquanto falava, acariciou sem medo a cabeça que havia pouco massacrara de forma tão impiedosa, e embora o pêlo de Buck se eriçasse involuntariamente ao sentir a mão do homem, o cão suportou tudo calado. Quando o homem lhe trouxe água, bebeu com vontade e, mais tarde, devorou uma porção generosa de carne crua, bocado por bocado, na mão do homem.

Tinha apanhado feio (sabia disso), mas não estava vencido. Compreendeu, de uma vez por todas, que não tinha a menor chance contra um homem armado de porrete. Tinha aprendido a lição, e jamais a esqueceria. Para ele, foi uma revelação. Foi seu primeiro contato com o mundo da lei primitiva, e ele não tinha outra escolha a não ser aceitar esse mundo. Os fatos da vida assumiam um aspecto mais feroz; e, enquanto olhava sem medo essa nova realidade, sentia que toda a astúcia latente em sua natureza começava a despertar. À medida que os dias passavam, chegavam outros cães, em engradados ou presos por cordas. Alguns eram mansos, outros rosnavam furiosos, exatamente como ele quando havia chegado; e, um a um, viu todos serem domados pelo homem de suéter vermelho. E, a cada nova demonstração de brutalidade, a lição parecia ficar ainda mais clara para Buck: um homem armado de porrete era quem fazia as leis, era um mestre a quem se devia obediência, mas não, necessariamente, amizade. Quanto a isso Buck jamais se sentiu culpado, se bem que chegasse a ver cachorros espancados que depois acabavam fazendo agrados ao homem, abanando o rabo e lambendo suas mãos. Mas viu também um cão que não quis saber de obedecer nem, muito menos, de ser amigável, e que, por fim, acabou morto na luta pela supremacia.

Vez por outra chegavam desconhecidos que se punham a conversar com o homem de suéter vermelho, das mais variadas formas, animados, tentando ganhar sua simpatia. E, sempre que o dinheiro passava de uma mão a outra, os estranhos iam embora, levando com eles um ou mais cachorros. Buck ficava imaginando para onde iam esses cães, pois nunca voltavam; mas sentia um medo profundo do que lhe poderia trazer o futuro e sentia-se feliz por não ter sido, até então, um dos escolhidos.

Mas, finalmente, chegou sua vez, na forma de um homem franzino que falava um inglês horrível, cheio de exclamações estranhas e ásperas, que Buck não conseguia entender.

—Nos’ Senhorra! — exclamou, assim que seus olhos pousaram em Buck. Aquel’ cachorro é danado de valente, hem? Quanto custa?

—Trezentos, e tá de graça — foi a resposta imediata do homem de suéter vermelho. — E, já que o dinheiro é do governo, você não tem nem do que reclamar, certo, Perrault?

Perrault sorriu de orelha a orelha. Considerando-se que o preço dos cães tinha subido de forma assustadora por conta da procura fora do comum, aquela até que não era uma quantia descabida por um animal tão excelente. O governo canadense não sairia perdendo, nem sua correspondência faria viagens tão lentas. Perrault entendia de cães e, quando pôs os olhos em Buck, soube que era um em mil — “Um em dez mil”, comentou consigo mesmo.

Buck viu o dinheiro passar de um para outro e não se espantou quando Curly, uma amigável terra-nova, e ele foram levados pelo homem franzino. Aquela foi a última vez em que viu o homem de suéter vermelho; e, quando ele e Curly, a bordo do Narwhal, olhavam para Seattle, que se afastava ao longe, foi também a última vez que viu as ensolaradas terras do Sul. Perrault levou os dois para baixo e os deixou com um homem gigantesco, de rosto escuro, chamado François. Perrault era franco-canadense, de pele morena; mas François era um franco-canadense mestiço, duas vezes mais moreno que o outro. Para Buck, eram homens de uma espécie nova (da qual ele estava destinado a ver muitos outros iguais) e, embora não chegasse a sentir afeição, passou a sentir um respeito sincero por eles. Logo percebeu que Perrault e François eram homens honestos, calmos e imparciais em questões que exigiam justiça, e que conheciam bem demais o mundo dos cachorros para se deixarem enganar por eles.

Nas entrecobertas do Narwhal, Buck e Curly encontraram mais dois cachorros. Um deles era grande e branco e vinha das ilhas Spitzergen, Noruega; fora trazido pelo capitão de um baleeiro e, já no Canadá, acompanhara uma expedição geológica nas regiões descampadas próximas à baía de Hudson. Parecia amigável, se bem que um tanto traiçoeiro, do tipo que sorri ao mesmo tempo que apronta sorrateiro mais uma das suas, como aconteceu, por exemplo, quando roubou parte da comida de Buck logo na primeira vez em que comeram juntos. No momento em que Buck ia avançar sobre ele para lhe dar um corretivo, o chicote de François rasgou o ar, atingindo o culpado antes mesmo que Buck o fizesse. Não sobrou nada para Buck, a não ser ter seu osso de volta, mas reconhecia que aquela havia sido uma atitude muito justa por parte de François, e o mestiço começou a subir no conceito de Buck.

Já o outro cão não tentou se aproximar de ninguém, nem ninguém tentou se aproximar dele; também não tentou roubar nada dos recém-chegados. Era uma criatura fechada, meio mal-humorada, e deixou bem claro a Curly que tudo o queria era ficar em paz e, principalmente, que haveria muito barulho se não o deixassem ficar em paz. Dave, era como o chamavam, só comia, dormia e de vez em quando bocejava, e não se interessava por nada, nem mesmo quando o Narwhal atravessou o estreito da Rainha Carlota e balançou, pulou e espinoteou como se estivesse possuído. Quando Buck e Curly já estavam mais que agitados, meio descontrolados de tanto medo, ele levantou a cabeça como se estivesse incomodado, lançou-lhes um olhar indiferente, bocejou e voltou a dormir.

Dia e noite o navio pulsava no ritmo incansável do motor, e, embora todos os dias parecessem iguais, Buck via claramente que o tempo estava ficando cada vez mais frio. Por fim, certa manhã, o motor silenciou, e o Narwhal viu-se invadido por um clima de grande expectativa. Ele também sentia esse clima, assim como os outros cães, e sabia que alguma mudança estava prestes a acontecer. François passou a corrente nos cachorros e trouxe todos ao convés. Ao tocarem a superfície fria pela primeira vez, as patas de Buck afundaram numa coisa branca, meio mole e muito parecida com lama. Assustado, recuou no mesmo instante, bufando. Estava caindo mais daquela substância branca. Sacudiu-se todo, mas a coisa branca continuou a cair sobre ele. Curioso, cheirou-a. Então lambeu um pouquinho, apanhando alguns flocos com a língua. Aquilo queimou como fogo, e depois já não era mais nada. Isso o deixou intrigado. Experimentou mais um pouquinho, com o mesmo resultado. Todos que o observavam caíram na maior gargalhada, e ele ficou envergonhado, sem entender por quê. Afinal, aquela era a primeira neve de sua vida.

 

NEXT

1