O
Chamado
da
Floresta
Jack
London
Buck
é um cão como nunca se viu igual. Mas o amor que sente pelo dono, Thornton, é
suficiente para conter seus instintos selvagens? Nas paisagens geladas do Canadá
e do Alasca, povoadas de índios e aventureiros, o próprio Buck deve descobrir
a resposta. Neste romance clássico, a influência do meio sobre o ser humano é
discutida com base na perspectiva de um animal.
Jornalista
e escritor, o americano Jack London (1876-1916) teve
uma
vida de aventuras muito próxima às histórias que criou.
I
De
encontro ao primitivo
“O
salto nômade de antigas imagens
As
correntes do costume desafia;
Nas
brumas do sono, uma voz, como guia,
Desperta
na fera seus instintos selvagens.”
Buck
não lia jornais, do contrário saberia que tempos difíceis estavam chegando, não
só para ele, mas para todo cão que, do estreito de Puget a San Diego, tivesse
músculos fortes e pêlos longos e quentes. Isso porque os homens, tateando na
escuridão do Ártico, haviam encontrado um metal amarelo, e as companhias de
navegação, espalhando a notícia pelo mundo afora, acabaram fazendo que
milhares de homens corressem para as terras do Norte. Esses homens precisavam de
cães, e os cães que procuravam eram cães pesados, com músculos fortes para
suportar o trabalho na neve e capas peludas para proteger-se do frio intenso.
Buck
vivia numa casa grande, no ensolarado vale de Santa Clara. O sítio do juiz
Miller, era como chamavam o lugar. A casa ficava afastada da estrada, meio
escondida entre as árvores, através das quais se podia ver a ampla e sombreada
varanda que a contornava. Os caminhos que levavam até lá eram cobertos de
cascalhos e cortavam sinuosos os extensos gramados, sob os galhos entrelaçados
dos altos álamos. Nos fundos, havia um espaço ainda maior. Estábulos enormes,
onde trabalhavam cerca de doze homens; fileiras de cabanas cobertas de vinhas,
onde moravam os empregados; uma série interminável de pequenas construções e
telheiros; extensas vinhas, verdes pastos, pomares, canteiros de morangos e
frutos silvestres. E ainda se podiam ver as instalações da bomba do poço
artesiano e o imenso tanque cimentado onde os filhos do juiz davam seu mergulho
matinal e se refrescavam nas tardes de calor.
E,
nesses vastos domínios, Buck reinava absoluto. Aqui nascera e aqui morara os
quatro anos de sua vida. Era bem verdade que havia outros cães. Nem podia ser
de outro modo num lugar tão imenso como esse; mas eles não contavam. Iam e
vinham com a mesma facilidade; ficavam nos canis, entre outros tantos iguais a
eles, ou levavam uma vida obscura no interior da casa, como no caso de Toots, o pug
japonês, ou Ysabel, a Mexican hairless; criaturas estranhas que
raramente punham o focinho para fora da porta e quase nunca chegavam a pisar o
chão. Pudera: do lado de lá, havia sempre pelo menos uns vinte fox terriers
lançando promessas verdadeiramente tenebrosas para os dois, que ficavam só
olhando pelas janelas, protegidos por uma legião de empregadas armadas de
vassouras e esfregões.
Mas
Buck não era nem um cão da casa nem um cão do canil. Todo o reino lhe
pertencia. Mergulhava no tanque com os filhos do juiz; caçava com eles;
acompanhava Mollie e Alice, as filhas do juiz, em longas caminhadas à luz do
entardecer ou logo pela manhã; nas noites de inverno, ficava deitado aos pés
do juiz, diante da lareira da biblioteca, ouvindo os estalos da lenha; carregava
os netos do juiz nas costas; rolava com eles pela grama e vigiava seus passos
nas aventuras arriscadas que empreendiam junto à fonte no pátio do estábulo,
ou ainda mais adiante, nos cercados próximos aos cavalos e nos canteiros de
morangos. Ignorava por completo Toots e Ysabel e, entre os terriers,
caminhava altivo, exibindo uma superioridade absoluta, pois era ele o rei —
rei sobre todas as criaturas da terra, da água e do ar que habitavam o sítio
do juiz Miller, inclusive os humanos.
Seu
pai, Elmo, um são-bernardo enorme, havia sido o companheiro inseparável do
juiz, e Buck prometia seguir o mesmo caminho do pai. Não era tão grande —
pesava só sessenta e cinco quilos —, uma vez que a mãe, Shep, era uma
collie. Mesmo assim, os sessenta e cinco quilos, somados à dignidade típica de
quem desfruta o bom e o melhor e goza o respeito de todos, permitiam que ele se
portasse como um rei. Naqueles quatro anos, desde seus tempos de cachorrinho,
vivera como um grande aristocrata; tinha um orgulho enorme de si mesmo e era até
um tanto egoísta, como são, às vezes, os grandes proprietários rurais pelo
tipo de vida isolada que levam. Mas Buck escapara de ser só mais um cão
caseiro e cheio de mimos. A caça e outras diversões ao ar livre mantinham seu
peso sob controle e fortaleciam seus músculos; e para ele, como para os cães
de clima frio, o amor à água funcionava como um tônico, preservando sua saúde.
E
era assim a vida do cachorro Buck no outono de 1897, quando a descoberta no rio
Klondike arrastava homens de todas as partes do mundo para as terras geladas do
Norte. Mas Buck não lia jornais e não sabia que Manuel, um dos ajudantes do
jardineiro, podia vir a ser uma figura indesejável. É que Manuel tinha um vício.
Era louco por loteria. E, pior ainda, toda vez que jogava, deixava-se levar por
uma fraqueza fatal — teimava numa mesma combinação, o que acabou trazendo a
sua ruína. Porque para insistir em determinado jogo é preciso muito dinheiro,
e o salário de um ajudante de jardineiro não vai muito além das necessidades
de uma esposa e uma prole numerosa.
O
juiz havia ido a uma reunião da Associação dos Produtores de Passas, e os
meninos estavam ocupados organizando um clube esportivo, na noite memorável em
que se deu a traição de Manuel. Ninguém viu quando ele e Buck saíram,
atravessando o pomar naquilo que Buck imaginava ser apenas um passeio. E, a não
ser por um único homem, ninguém os viu chegar à pequena estação conhecida
como College Park. Esse homem trocou algumas palavras com Manuel, e o som das
moedas se fez ouvir entre eles.
—Você
bem que podia embrulhar a mercadoria antes de entregar — disse o estranho num
tom meio grosseiro, e Manuel dobrou um pedaço de corda grossa, passando-o ao
redor do pescoço de Buck, por baixo da coleira.
—Aperta
isso assim, firme, e você controla ele de jeito, entendeu? — disse Manuel, e
o estranho grunhiu uma afirmativa.
Buck aceitara a corda com serena dignidade. Certamente essa não era uma operação muito comum, mas ele aprendera a confiar nos homens que conhecia e a lhes dar crédito por possuírem uma sabedoria que ia além da sua. Contudo, quando as pontas da corda passaram para as mãos do estranho, rosnou de forma ameaçadora. Simplesmente deu a entender que estava descontente, acreditando, em seu orgulho, que a mera insinuação seria suficiente. Qual não foi seu espanto quando a corda apertou seu pescoço, dificultando terrivelmente sua respiração. Numa ira cega ele avançou para cima do homem, que reagiu no mesmo instante, agarrando o cão pela garganta e, com um movimento rápido, jogando o animal por cima das costas. Foi então que a corda o sufocou sem piedade, e Buck se debateu furioso, desesperado, a língua para fora, o peito enorme arfando inutilmente. Nunca em toda a sua vida havia sentido tanta raiva. Mas a força foi lhe faltando, os olhos ficaram enevoados, e ele não sabia de mais nada quando o trem partiu e os dois homens o atiraram para dentro do vagão de carga.
A
próxima coisa de que teve consciência foi uma vaga sensação de que sua língua
doía e de que ele sacolejava em algum tipo de veículo. O chiado rouco das
engrenagens e o assobio da locomotiva, anunciando um cruzamento, lhe disseram
onde estava. Já tinha viajado muitas vezes com o juiz e sabia reconhecer a
sensação de andar num vagão de carga. Abriu os olhos, e neles havia a ira
descontrolada de um rei sequestrado. O homem ainda tentou estender o braço para
lhe apertar a garganta, mas Buck foi mais rápido. Seus dentes se fecharam sobre
a mão e não a soltaram até que o homem o fez perder os sentidos mais uma vez.
—É,
ele anda tendo uns ataques —, disse o homem escondendo do fiscal de carga, que
fora atraído pelos ruídos de luta, a mão estraçalhada. —O patrão pediu
pra levar ele lá pra São Francisco. Tem um médico de cachorro lá, um cara
famoso e tudo, que acha que pode deixar ele bom de novo.
Considerando-se
a viagem daquela noite, o homem até que conseguia ser convincente ao contar sua
história num galpão nos fundos de um boteco na baía de São Francisco.
—Tudo
o que eu consigo é cinquenta — resmungou. —E eu não dava ele nem por mil dólares,
dinheiro vivo.
A
mão estava enrolada num lenço cheio de sangue, e a perna direita da calça,
rasgada desde o joelho até embaixo.
—E
quanto foi mesmo que o outro otário lá te ofereceu? — perguntou o
dono do boteco.
—Cem
— foi a resposta. —Nem um centavo a menos, pode acreditar.
—Isso
dá cento e cinquenta — calculou o dono do boteco. —E é o que ele vale, ou
eu é que vou passar por idiota.
O
sequestrador tirou o pano ensanguentado e examinou a mão lacerada.
—Se
eu não pegar raiva...
—Vai
ser porque quem nasce pra morrer assado não morre cozido, homem. E nem mordido
— riu o dono do boteco. — Anda, vai, me dá uma mão aqui, a que te resta,
antes de ganhar o mundo — acrescentou.
Meio
zonzo, sentindo uma dor insuportável na língua e na garganta, com a vida quase
arrancada de si, Buck ainda tentou enfrentar seus carrascos. Mas foi dominado,
jogado ao chão e esganado sem piedade até que eles, usando uma lima.
Conseguissem romper a grossa coleira de metal que trazia no pescoço. Depois
tiraram a corda e o jogaram dentro de um engradado que mais parecia uma gaiola.
Lá
ficou o resto daquela noite de sofrimentos, o ódio e o orgulho ferido crescendo
mais e mais. Não conseguia entender o que significava tudo aquilo. Esses homens
estranhos, o que queriam com ele? Por que o mantinham preso naquela jaula
apertada? Ele não sabia bem por quê, mas se sentia oprimido por uma espécie
de intuição de que uma desgraça estava prestes a acontecer. Diversas vezes
durante a noite, ele se ergueu ao ouvir a porta do galpão abrir-se, na esperança
de ver o juiz ou, pelo menos, os meninos. Mas toda vez o que via era a cara
inchada do dono do boteco, que o espiava à luz mortiça de uma vela de sebo. E
toda vez o latido de alegria que Buck trazia preso na garganta se transformava
num rosnado selvagem.
Mas
o dono do bar logo o deixou em paz, e, pela manhã, quatro homens entraram para
apanhar o engradado. Mais carrascos, concluiu Buck, pois eram criaturas mal-encaradas,
homens de aspecto cruel, maltrapilhos e sujos. Tomado por uma fúria sem igual,
Buck investiu contra as grades na tentativa de atacá-los. Eles, por sua vez,
apenas riram e o provocaram ainda mais, atiçando Buck com varas que ele, ainda
mais furioso, logo tentava agarrar com os dentes. Até que percebeu que isso era
exatamente o que queriam. Desse momento em diante, deitou-se cabisbaixo e deixou
que os homens levassem o engradado para uma carroça. Então ele e o engradado
em que estava preso começaram a passar de mão em mão. Funcionários que
trabalhavam no expresso se encarregaram dele; foi levado para outra carroça;
seguiu num vagão aberto, entre pilhas de caixas e pacotes até uma balsa a
vapor; saiu da balsa, ainda no vagão aberto, e estava numa grande estação de
trem, onde, finalmente, foi colocado num dos vagões do expresso.
Por
dois dias e duas noites esse vagão seguiu em frente, arrastado na rabeira de
locomotivas barulhentas; e por dois dias e duas noites Buck não comeu nem bebeu.
Com raiva que sentia, recebera com rosnados as primeiras tentativas de aproximação
dos mensageiros do expresso, e eles revidaram, provocando Buck ainda mais.
Quando ele saltava sobre as barras do engradado, tremendo e espumando de raiva,
riam dele, zombando de seu desespero. Rosnavam e latiam como cães danados,
miavam e cacarejavam, batendo os braços como se fossem asas. Era tudo muito
idiota, ele sabia; no entanto, quanto mais ultrajavam sua dignidade, maior a sua
raiva. A fome até que não o incomodava tanto, mas a falta de água lhe causava
um sofrimento absurdo e aumentava sua ira a tal ponto que parecia estar com uma
febre intensa. E, sendo extremamente excitável e sensível, os maus-tratos
acabaram fazendo que Buck ficasse realmente com febre, ocasionada pela inflamação
na língua e na garganta, bastante irritadas.
Só
uma coisa o alegrava: a corda não estava mais em seu pescoço. Isso lhes dera
uma vantagem injusta; mas, agora que estava sem a corda, eles iam ver só.
Jamais colocariam outra corda em seu pescoço. Disso ele tinha certeza. Por dois
dias e duas noites não comeu nem bebeu e, durante aqueles dois dias e duas
noites de tormentos, acumulou uma reserva de ódio que prometia o pior para a
primeira pessoa que o contrariasse. Seus olhos ficaram injetados, e ele se
transformou num demônio enfurecido. Tão mudado, que o próprio juiz não o
teria reconhecido; e os mensageiros do expresso respiraram aliviados quando o
botaram para fora do trem, em Seattle.
Quatro
homens carregaram o engradado, com todo o cuidado, da carroça a um pequeno
quintal cercado por muros altos. Um homem encorpado, com um suéter vermelho bem
largo no pescoço, apareceu e assinou o recibo de entrega para o cocheiro. Esse
era o homem, deduziu Buck, o próximo carrasco, e se lançou violentamente
contra as grades, latindo como louco. O homem sorriu de uma forma um tanto
sinistra e voltou com uma machadinha e um pedaço de pau.
—Você
não vai soltar ele agora, vai? — perguntou o cocheiro.
—Vou
sim senhor — respondeu o homem, enfiando a machadinha no engradado como se
fosse um pé-de-cabra.
Na
mesma hora, os quatro homens que haviam trazido o engradado fugiram para cima do
muro, e de lá, empoleirados, prepararam-se para assistir ao que viria, em
segurança.
Buck
investia contra a madeira, que ia cedendo com os golpes, e enfiava os dentes nas
partes lascadas, lutando desesperado para sair. Toda vez que a machadinha
golpeava por fora, ele, de dentro, rosnava impaciente, tão ansioso para sair
quanto o homem de suéter vermelho parecia calmo e determinado a tirá-lo de lá.
—É
agora, seu diabo de olho vermelho — disse ele, assim que conseguiu fazer uma
abertura grande o bastante para que Buck pudesse passar. No mesmo instante,
largou a machadinha e passou o porrete para a mão direita.
E
Buck parecia mesmo um diabo de olhos vermelhos, quando se preparava para saltar
para fora, o pêlo eriçado, a boca espumando, um brilho desatinado nos olhos.
Foi direto para cima do homem, com seus sessenta e cinco quilos de fúria e mais
a dor engasgada de dois dias e duas noites de cárcere. Em pleno ar, bem na hora
em que estava prestes a morder o homem em cheio, recebeu uma pancada tão
violenta que o paralisou e fez que rangesse os dentes de pura agonia. Girou
sobre o próprio corpo, indo bater de costas no chão. Jamais havia recebido uma
paulada em sua vida e não conseguia entender o que era aquilo. Com um rosnado,
que era em parte um latido e em parte um uivo, pôs-se novamente sobre as patas
e saltou sobre o homem mais uma vez. E mais uma vez recebeu a pancada, que o
levou ao chão, aniquilado. Dessa vez percebeu que era o porrete o que causava
aquilo, mas a loucura não conhece o cuidado. Por doze vezes atacou, e por doze
vezes o bastão pôs fim a seu ataque, deixando o animal prostrado no chão.
Depois
de um golpe especialmente violento, ficou rastejando, atordoado demais para
tentar atacar outra vez. Cambaleou no chão, o sangue jorrando nas narinas, da
boca e dos ouvidos, seu pêlo impecável todo manchado de sangue e saliva. Foi
então que o homem avançou em sua direção e, deliberadamente, desferiu-lhe um
golpe terrível no focinho. Toda a dor que até então havia suportado não era
nada comparada à intensa agonia desse último golpe. Com um som feroz, quase
como o rugido de um leão, pulou para cima do homem mais uma vez. Mas este,
passando rapidamente o cacete para a outra mão, agarrou o animal pela boca e,
sustentando-o apenas com essa mão, pôs-se a sacudi-lo para baixo e para cima.
Buck descreveu um círculo completo no ar, e ainda um semi-círculo, depois
desabou no chão, batendo em cheio a cabeça e o peito.
Avançou,
pela última vez. Então o homem desferiu-lhe o golpe certeiro, que vinha
guardando especialmente para o final, e Buck voou longe, encolhido de tanta dor.
Depois caiu, completamente sem sentidos.
—Rapaz,
o homem é mesmo fera pra domar cachorro, nunca vi coisa igual! — gritou
entusiasmado um dos homens que estavam no muro.
—É,
Druther tá acostumado; doma potro brabo todo dia, e tem dia que chega a domar
dois — foi o que respondeu o cocheiro, enquanto subia na carroça e punha os
cavalos em movimento.
Buck
recuperou os sentidos, mas não a força. Permaneceu onde havia caído e de lá
observava o homem de suéter vermelho.
—“Atende
pelo nome de Buck” — disse o homem para si mesmo, lendo em voz alta a carta
do dono do boteco, que lhe passava, oficialmente, o engradado e seu conteúdo.
— Então é isso, Buck, meu filho — continuou, com uma voz reconfortante
—, tivemos nosso primeiro arranca-rabo, e é bom que seja o primeiro e o último,
pra você e pra mim. Você já conhece agora o seu lugar, e eu conheço o meu.
Seja um cachorro bonzinho, e tudo vai dar certo, vai tá tudo direitinho. Agora,
se você bancar o cão danado, eu vou te arrancar o couro... Entendeu bem, rapaz?
Enquanto
falava, acariciou sem medo a cabeça que havia pouco massacrara de forma tão
impiedosa, e embora o pêlo de Buck se eriçasse involuntariamente ao sentir a mão
do homem, o cão suportou tudo calado. Quando o homem lhe trouxe água, bebeu
com vontade e, mais tarde, devorou uma porção generosa de carne crua, bocado
por bocado, na mão do homem.
Tinha
apanhado feio (sabia disso), mas não estava vencido. Compreendeu, de uma vez
por todas, que não tinha a menor chance contra um homem armado de porrete.
Tinha aprendido a lição, e jamais a esqueceria. Para ele, foi uma revelação.
Foi seu primeiro contato com o mundo da lei primitiva, e ele não tinha outra
escolha a não ser aceitar esse mundo. Os fatos da vida assumiam um aspecto mais
feroz; e, enquanto olhava sem medo essa nova realidade, sentia que toda a astúcia
latente em sua natureza começava a despertar. À medida que os dias passavam,
chegavam outros cães, em engradados ou presos por cordas. Alguns eram mansos,
outros rosnavam furiosos, exatamente como ele quando havia chegado; e, um a um,
viu todos serem domados pelo homem de suéter vermelho. E, a cada nova demonstração
de brutalidade, a lição parecia ficar ainda mais clara para Buck: um homem
armado de porrete era quem fazia as leis, era um mestre a quem se devia obediência,
mas não, necessariamente, amizade. Quanto a isso Buck jamais se sentiu culpado,
se bem que chegasse a ver cachorros espancados que depois acabavam fazendo
agrados ao homem, abanando o rabo e lambendo suas mãos. Mas viu também um cão
que não quis saber de obedecer nem, muito menos, de ser amigável, e que, por
fim, acabou morto na luta pela supremacia.
Vez
por outra chegavam desconhecidos que se punham a conversar com o homem de suéter
vermelho, das mais variadas formas, animados, tentando ganhar sua simpatia. E,
sempre que o dinheiro passava de uma mão a outra, os estranhos iam embora,
levando com eles um ou mais cachorros. Buck ficava imaginando para onde iam
esses cães, pois nunca voltavam; mas sentia um medo profundo do que lhe poderia
trazer o futuro e sentia-se feliz por não ter sido, até então, um dos
escolhidos.
Mas,
finalmente, chegou sua vez, na forma de um homem franzino que falava um inglês
horrível, cheio de exclamações estranhas e ásperas, que Buck não conseguia
entender.
—Nos’
Senhorra! — exclamou, assim que seus olhos pousaram em Buck. Aquel’ cachorro
é danado de valente, hem? Quanto custa?
—Trezentos,
e tá de graça — foi a resposta imediata do homem de suéter vermelho. — E,
já que o dinheiro é do governo, você não tem nem do que reclamar, certo,
Perrault?
Perrault
sorriu de orelha a orelha. Considerando-se que o preço dos cães tinha subido
de forma assustadora por conta da procura fora do comum, aquela até que não
era uma quantia descabida por um animal tão excelente. O governo canadense não
sairia perdendo, nem sua correspondência faria viagens tão lentas. Perrault
entendia de cães e, quando pôs os olhos em Buck, soube que era um em mil —
“Um em dez mil”, comentou consigo mesmo.
Buck
viu o dinheiro passar de um para outro e não se espantou quando Curly, uma amigável
terra-nova, e ele foram levados pelo homem franzino. Aquela foi a última vez em
que viu o homem de suéter vermelho; e, quando ele e Curly, a bordo do Narwhal,
olhavam para Seattle, que se afastava ao longe, foi também a última vez que
viu as ensolaradas terras do Sul. Perrault levou os dois para baixo e os deixou
com um homem gigantesco, de rosto escuro, chamado François. Perrault era
franco-canadense, de pele morena; mas François era um franco-canadense mestiço,
duas vezes mais moreno que o outro. Para Buck, eram homens de uma espécie nova
(da qual ele estava destinado a ver muitos outros iguais) e, embora não
chegasse a sentir afeição, passou a sentir um respeito sincero por eles. Logo
percebeu que Perrault e François eram homens honestos, calmos e imparciais em
questões que exigiam justiça, e que conheciam bem demais o mundo dos cachorros
para se deixarem enganar por eles.
Nas
entrecobertas do Narwhal, Buck e Curly encontraram mais dois cachorros.
Um deles era grande e branco e vinha das ilhas Spitzergen, Noruega; fora trazido
pelo capitão de um baleeiro e, já no Canadá, acompanhara uma expedição geológica
nas regiões descampadas próximas à baía de Hudson. Parecia amigável, se bem
que um tanto traiçoeiro, do tipo que sorri ao mesmo tempo que apronta
sorrateiro mais uma das suas, como aconteceu, por exemplo, quando roubou parte
da comida de Buck logo na primeira vez em que comeram juntos. No momento em que
Buck ia avançar sobre ele para lhe dar um corretivo, o chicote de François
rasgou o ar, atingindo o culpado antes mesmo que Buck o fizesse. Não sobrou
nada para Buck, a não ser ter seu osso de volta, mas reconhecia que aquela
havia sido uma atitude muito justa por parte de François, e o mestiço começou
a subir no conceito de Buck.
Já
o outro cão não tentou se aproximar de ninguém, nem ninguém tentou se
aproximar dele; também não tentou roubar nada dos recém-chegados. Era uma
criatura fechada, meio mal-humorada, e deixou bem claro a Curly que tudo o
queria era ficar em paz e, principalmente, que haveria muito barulho se não o
deixassem ficar em paz. Dave, era como o chamavam, só comia, dormia e de vez em
quando bocejava, e não se interessava por nada, nem mesmo quando o Narwhal
atravessou o estreito da Rainha Carlota e balançou, pulou e espinoteou como se
estivesse possuído. Quando Buck e Curly já estavam mais que agitados, meio
descontrolados de tanto medo, ele levantou a cabeça como se estivesse
incomodado, lançou-lhes um olhar indiferente, bocejou e voltou a dormir.
Dia
e noite o navio pulsava no ritmo incansável do motor, e, embora todos os dias
parecessem iguais, Buck via claramente que o tempo estava ficando cada vez mais
frio. Por fim, certa manhã, o motor silenciou, e o Narwhal viu-se
invadido por um clima de grande expectativa. Ele também sentia esse clima,
assim como os outros cães, e sabia que alguma mudança estava prestes a
acontecer. François passou a corrente nos cachorros e trouxe todos ao convés.
Ao tocarem a superfície fria pela primeira vez, as patas de Buck afundaram numa
coisa branca, meio mole e muito parecida com lama. Assustado, recuou no mesmo
instante, bufando. Estava caindo mais daquela substância branca. Sacudiu-se
todo, mas a coisa branca continuou a cair sobre ele. Curioso, cheirou-a. Então
lambeu um pouquinho, apanhando alguns flocos com a língua. Aquilo queimou como
fogo, e depois já não era mais nada. Isso o deixou intrigado. Experimentou
mais um pouquinho, com o mesmo resultado. Todos que o observavam caíram na
maior gargalhada, e ele ficou envergonhado, sem entender por quê. Afinal,
aquela era a primeira neve de sua vida.