III
O
domínio da fera primitiva
O
domínio da fera primitiva era cada vez maior em Buck, e, sob as condições
selvagens da vida na trilha, crescia mais e mais. Ainda que secretamente. Sua
astúcia, que mal acabava de nascer, dava a ele controle e equilíbrio. E,
ocupado demais tentando se ajustar à nova vida, não só não provocava brigas,
como também as evitava sempre que possível. Havia certa determinação por trás
de sua atitude. Não era dado a ações irrefletidas e precipitadas; e, no ódio
amargo que existia entre ele e Spitz, não demonstrava a menor impaciência,
abrindo mão de toda e qualquer ofensa.
Por
sua vez, provavelmente porque sentisse em Buck um rival perigoso, Spitz nunca
perdia uma oportunidade de arreganhar os dentes para ele. Chegava até a se dar
ao trabalho de arranjar essas oportunidades, provocando Buck, sempre fazendo de
tudo para começar um abriga que só acabaria com a morte de um ou de outro.
Logo
no início da viagem, isso poderia ter acontecido, não fosse por um terrível
imprevisto. No fim daquele dia, armaram um acampamento frio e miserável nas
margens do lago Le Barge. Uma nevasca violenta, um vento que cortava como lâmina
em brasa e a escuridão haviam forçado grupo
a procurar um lugar para acampar. E não poderiam ter tido uma sorte pior. A
suas costas erguia-se um paredão altíssimo de pedra, e Perrault e François não
tiveram escolha a não ser fazer fogueira e estender os sacos de dormir no próprio
gelo que cobria o lago. A barraca, tinham deixado em Dyea, para que pudessem
viajar com menos peso. Alguns gravetos às margens do lago serviram de lenha
para acender o fogo que, pouco depois, se desfez no gelo, deixando os dois no
escuro, no meio da refeição.
Bem
junto ao abrigo que a rocha oferecia, Buck fez seu ninho. Tão aconchegante e
quente que detestou ter de sair de lá quando François distribuiu o peixe que
havia descongelado no fogo. Quando Buck acabou de comer e voltou, seu ninho já
estava ocupado. Um ronco de advertência deixou claro que o invasor era Spitz.
Até então, Buck tinha evitado problemas com o inimigo, mas aquilo já era
demais. A fera dentro dele rugiu. Avançou para cima de Spitz com uma fúria que
deixou os dois surpresos; Spitz em especial, já que toda a sua experiência com
Buck sempre lhe havia mostrado que o rival era um cachorro incrivelmente tímido,
que só conseguia se manter inteiro graças ao peso e ao tamanho.
François
ficou surpreso, também, quando viu os dois voarem para fora, embolados, o ninho
todo desmanchado, e adivinhou logo a causa de tanta confusão.
—A-a-ah!
— gritou para Buck. —Dá nele! Dá nele! Dá nes’ ladron sans vergonha!
Spitz
estava tão determinado quanto Buck. Latia alto, com vontade de matar, louco de
tanta raiva, e ficava dando voltas para trás e para a frente, esperando uma
chance para atacar. A vontade e o cuidado de Buck não eram menores, e ele também
dava voltas para trás e para a frente, procurando uma vantagem. Mas foi aí que
aconteceu o inesperado, aquilo que jogaria para o futuro a luta dos dois pela
supremacia, para depois de muitos quilômetros extremamente cansativos de trilha
e trabalho.
Uma
praga de Perrault, o som seco do impacto de um porrete num monte de ossos e um
latido agudo de dor foram os primeiros sinais de que o inferno estava começando.
De uma hora para outra, por todo os lados, surgiram do nada figuras escuras,
cobertas de pêlos — huskies vadios, mortos de fome, uns oitenta ou cem deles,
que, tendo farejado o acampamento desde alguma aldeia índia, agora se
aproximavam. Foram chegando rasteiros, sem serem notados, enquanto Buck e Spitz
estavam brigando, e, quando os dois homens avançaram sobre eles com porretes,
reagiram arreganhando os dentes. Estava alucinados pelo cheiro de comida.
Perrault encontrou um coma cabeça enfiada na caixa de mantimentos. O porrete
desceu pesadamente sobre as costelas magras, e a caixa de mantimentos rolou pelo
chão. No mesmo instante, outros vinte bárbaros esfomeados já estavam
disputando, também alucinados, o pão e o toucinho. Os porretes desceram sobre
eles, e não adiantou. Ganiam e uivavam debaixo daquela tempestade de golpes,
mas, mesmo assim, continuaram brigando como loucos, até devorarem a última
migalha.
Nesse
meio tempo, os cães de trenó, assustados, haviam saído de seus abrigos e,
para seu desespero, acabaram cercados pelos ferozes invasores. Buck nunca tinha
visto cães iguais àqueles. Parecia que os ossos deles iam saltar para fora da
pele. Não passavam de esqueletos enrolados em peles sujas e frouxas; os olhos
em chamas, a baba escorrendo da boca. Mas era a loucura da fome que os tornava
terríveis, invencíveis. Não havia como ir contra eles. No primeiro confronto,
os cães de trenó ficaram acuados contra a rocha.
Buck
foi cercado por três huskies, e, em questão de segundos, sua cabeça e seus
ombros estavam rasgados. O barulho era medonho. Billee estava ganindo, chorando
como sempre. Dave e Sol-leks, o sangue escorrendo de muitos cortes e dentadas,
lutavam com bravura, lado a lado. Joe mordia como um louco. Houve um momento em
que seus dentes se fecharam na perna de um dos huskies e trituraram o osso.
Pike, o preguiçoso malandro, pulou para cima do animal machucado, quebrando-lhe
o pescoço com um adentada rápida e um empurrão violento. Buck pegou pela
garganta um cão que espumava de raiva e, quando enfiou os dentes na jugular do
animal, o sangue esguichou nele. O gosto quente do sangue em sua boca foi o
incentivo para que ele ficasse ainda mais feroz. Avançou para cima de outro e,
no mesmo instante, sentiu dentes fortes afundar em sua garganta. Era Spitz, que,
traiçoeiro, o atacava pela lateral.
Perrault
e François, tendo libertado sua parte do acampamento, correram para salvar os cães
de trenó. A onda selvagem de feras famintas recuou diante dos homens, e Buck
conseguiu se livrar. Mas por pouco tempo. Os dois homens tiveram de voltar
correndo para defender os mantimentos, mais uma vez saqueados pelos invasores
que haviam recuado do ataque ao grupo. Billee, movido pelo terror, saltou
corajosamente no meio deles, atravessou o círculo selvagem e fugiu pelo gelo
afora. Pike e Dub seguiram seu exemplo, e o resto do grupo foi atrás. Quando
Buck estava se preparando para saltar e ir atrás deles, viu, com o rabo do olho,
que Spitz avançava em sua direção com a clara intenção de derrubá-lo. E
uma vez no chão, sob aquela massa de huskies, ele não teria a mínima chance.
Buck juntou forças para aguentar o impacto da investida de Spitz, furou o cerco
e seguiu em fuga, com os outros, sobre o lago.
Mais
tarde, os nove cães, já reunidos, procuraram refúgio na floresta. Ainda que
tivessem a sorte de não serem perseguidos, estavam todos num estado lastimável.
Não havia um que não estivesse ferido em uns quatro ou cinco lugares, e alguns
gravemente. Dub estava com uma pata traseira bem machucada; Dolly, a última
husky a juntar-se ao grupo em Dyea, tinha um corte fundo na garganta; Joe tinha
perdido um olho; e Billee, o amável, com uma orelha toda mordida e rasgada,
ficou uivando e ganindo a noite toda. Assim que nasceu o dia, voltaram mancando,
cautelosos, e encontraram o acampamento livre dos assaltantes e os dois homens
de mau humor. Metade dos mantimentos havia sumido. Famintos, os huskies tinham
rasgado com os dentes as correias do trenó e as lonas. Na verdade, nada por
menos comestível que pudesse ser, havia escapado. Comeram um par de mocassins
de couro de alce, de Perrault, boa parte das tiras de couro e até mesmo uns
sessenta centímetros do chicote de François, que, saindo da triste contemplação
do que restava do chicote, olhou para seus pobres cães, todos machucados.
—Ah,
me’s ami — disse com ternura —, talvez vocês virrem todos cachorr’s
lo’cos, com tanta mordide. Talvez todos cachorr’s lo’cos, Nos’ Senhôrra!
O qu’é quê ‘cê acha, hem Perrault?
O
mensageiro balançou a cabeça, sem saber o que responder. Com seiscentos e
cinquenta quilômetros ainda entre eles e Dawson, não conseguia nem imaginar o
que seria se a raiva tomasse conta de seus cães. Com duas horas de pragas e
muito empenho, os dois conseguiram dar um jeito nos arreios, e o grupo pôs-se a
caminho, enfrentando, com um esforço doloroso, o trecho mais difícil da trilha
que já haviam encontrado, na verdade o mais difícil entre eles e Dawson.
O
rio Thirty Miles não estava totalmente congelado. Suas águas selvagens
desafiavam o gelo, e só nas margens e na água parada o gelo chegava a se
formar. Foram necessários seis dias de trabalho exaustivo para que conseguissem
cobrir aquelas trinta horríveis milhas. Horríveis, porque cada metro era
conquistado com grande risco de vida para cães e homens. Por várias vezes,
Perrault, explorando o caminho, afundou no gelo, sendo salvo graças ao longo
bastão que sempre levava, o qual ele segurava tão firme que, quando caía no
buraco feito por seu peso, o bastão ia junto. Mas uma onda de frio estava a
caminho, o termômetro registrava cinquenta abaixo de zero, e, se ele quisesse
manter-se vivo, toda vez que afundava no gelo era obrigado a fazer uma fogueira
e secar as roupas.
Nada
o amedrontava. E era porque nada o amedrontava que ele havia sido escolhido para
mensageiro do governo. Aceitava todo e qualquer risco, abrindo caminho, decidido,
o rosto magro e enrugado contra o frio, numa luta contínua desde a primeira luz
da aurora até a escuridão da noite. Contornava os trechos ameaçadores andando
pelo gelo das margens, que cedia e rachava debaixo de seus pés e sobre o qual não
ousavam parar um segundo. Uma vez, o trenó afundou parcialmente, levando Dave e
Buck, que estavam semicongelados, quase afogados, quando foram puxados para fora.
Foi preciso a fogueirinha de sempre para que se salvassem. Uma grossa camada de
gelo os cobria, e os dois homens fizeram que ficassem correndo sem parar em
volta da fogueira, pingando, descongelando, tão perto do fogo que até ficaram
chamuscados.
Em
outra ocasião, foi Spitz quem afundou, arrastando com ele o grupo todo, até
Buck, que jogou toda a sua força para trás, as patas dianteiras deslizando na
borda escorregadia, o gelo rachando e estalando por toda a volta. Mas atrás
dele estava Dave, também puxando para trás do trenó, François, puxando com
toda a força que seus músculos ainda podiam ter.
Mais
uma vez a borda de gelo quebrou e afundou na frente e atrás, e não havia saída
a não ser saltar para cima do rochedo. Perrault conseguiu escalá-lo por um
milagre, enquanto François rezava para que o milagre acontecesse; e com todos
os chicotes, correias, tiras, até o último centímetro dos arreios entrançados
numa corda comprida, os cães foram içados, um a um, para o algo do rochedo.
François subiu por último, depois do trenó e da carga. Então começaram a
procurar um lugar por onde descer, e a descida foi feita, afinal, com a ajuda da
mesma corda. A noite encontrou o grupo novamente sobre o rio, com meio quilômetro
de percurso para aquele dia.
No
momento em que chegaram ao Houtalinqua, com gelo firme, Buck estava esgotado. E
os outros cachorros também estavam na mesma condição; mas Perrault, para
compensar o atraso, punha os animais em marcha até bem tarde e logo bem cedo.
No primeiro dia, cobriram cinquenta e cinco quilômetros até o Big Salmon; no
outro, mais cinquenta e cinco até o Little Salmon; e, no terceiro, sessenta e
cinco quilômetros, o que lhes permitiu chegar com boa margem de tempo ao
caminho do Five Fingers.
As
patas de Buck não eram tão firmes e duras quanto as dos huskies. Tinham
amolecido através das muitas gerações, desde o dia em que seu último
ancestral selvagem foi domesticado pelo homem da caverna ou pelo homem que
morava às margens dos rios, em abrigos primitivos, n alto de estacas de madeira.
Passou o dia todo mancando, agoniado, e, assim que ergueram o acampamento, caiu
morto de cansaço. Mesmo com toda a fome que sentia, não moveu um músculo para
ir buscar a ração de peixe, que François teve de trazer até ele. Todas as
noites depois da refeição, François massageava as patas de Buck por meia hora
e sacrificou os próprios mocassins para, com os canos altos dos sapatos, fazer
quatro mocassins para Buck. Isso trouxe grande alívio para Buck, e, certa manhã,
este chegou a fazer que o rosto magro e castigado de Perrault sorrisse, quando
François esqueceu os mocassins e Buck ficou deitado de costas, agitando as
quatro patas no ar, como que implorando pelos sapatos e deixando bem claro que não
sairia de lá sem eles. Algum tempo depois, suas patas ficaram mais duras com a
trilha, e os gastos sapatos de cachorro foram jogados fora.
Numa
manhã, no rio Pelly, enquanto estavam sendo atrelados aos arreios, Dolly, que
nunca demonstrara nada de errado ou de estranho, de repente enlouqueceu. Revelou
seu estado com um uivo de lobo, longo, comovente, que deixou todos os cães eriçados
de tanto medo, e então partiu para cima de Buck. Ele jamais havia visto um
cachorro enlouquecer assim, nem tinha nenhum motivo para temer a loucura; no
entanto, sabia que aquilo era o horror e fugiu em disparada, tomado de pânico.
E foi em frente, voando, com Dolly, resfolegando e espumando, a um salto dele;
nem ela conseguia alcançá-lo, tamanho o horror que o tomara, nem ele conseguia
ganhar distância, tamanha a loucura que a dominava. Mergulhou no meio do
conjunto de árvores da ilha, voou para a parte mais baixa, cruzou um canal meio
escondido cheio de pontas ásperas de gelo para alcançar outra ilha, ganhou a
terceira ilha, fez uma curva em direção ao rio principal, e correu,
desesperado, pronto para cruzar as águas. E o tempo todo, ainda que não
olhasse para trás, podia ouvir Dolly rosnando, a apenas um salto dele. François
chamou por ele a uns quatrocentos metros de distância, e ele, ainda a um salto
de Dolly, deu uma volta, ofegando, já com dor no peito de tanta falta de ar e
com toda a sua fé na idéia de que François iria salvá-lo. O homem ficou com
um machado em riste nas mãos e, quando Buck passou por ele como uma bala,
desceu o machado sobre a alucinada cabeça de Dolly.
Buck
cambaleou, indo se encostar no trenó, exausto, sem ar e sem forças. Era a
chance que Spitz tanto esperava. Saltou sobre Buck, e, por duas vezes, seus
dentes afundaram na carne do inimigo completamente indefeso, cortando e rasgando
fundo, até o osso. Então, o chicote de François desceu sobre ele, e Buck teve
a satisfação de ver Spitz receber a pior surra que até então já fora dada a
qualquer um do grupo.
—É
um diable es’ Spitz! — observou Perrault. — Qualquer dia vai matarr o
Buck.
—E
o Buck é dois diables! — respondeu François. —Toda vez que vej’ Buck,
sei disso. Olha, qualquerr dia dess’, el’ vai ficar lo’co com’o diable,
e aí vai mastiga’ o Spitz inte’rrinho e ainda vai cuspirr ele todinho na
neve. É isso mesmo, sei disso...
Daquele
dia em diante, ficou declarada a guerra entre eles. Spitz, enquanto líder no
trenó e reconhecido como chefe do grupo, sentia sua supremacia ameaçada por
aquele estranho cachorro do Sul. E Buck era estranho para ele porque, dos muitos
cachorros do Sul que tinha conhecido, nenhum havia se mostrado tão bom de
trilha e tão capaz de viver no acampamento. Eram todos moles demais, morrendo
com o trabalho pesado, com o gelo e com a fome. Buck era a exceção. Era o único
que tinha resistido e se dado bem, chegando a igualar-se aos huskies em força,
selvageria e astúcia. Era, então, um cachorro hábil, capaz de liderar, e o
que o tornava perigoso era o fato de o porrete nas mãos do homem de suéter
vermelho ter arrancado de seu desejo de liderança toda a coragem cega e toda a
imprudência. Era excepcionalmente astuto e sabia esperar sua vez com uma paciência
que não era outra coisa além de primitiva.
Era
inevitável que o conflito pela liderança acontecesse mais cedo ou mais tarde.
Buck queria ser o líder. Queria porque estava em sua natureza, porque havia
sido tomado completamente por aquele orgulho indefinível, incompreensível da
trilha e dos tirantes — o orgulho que mantém os cães no trabalho duro até o
último sopro de vida, que os leva a morrer com prazer nos arreios e quebra seus
corações se são afastados dos mesmos. Era esse o orgulho de Dave como cão de
trenó, o de Sol-leks, quando puxava com toda a sua força; o orgulho que os
invadia assim que saíam do acampamento e os transformava de criaturas
embrutecidas e amarguradas em criaturas esforçadas, vivas, ambiciosas; o
orgulho que, como uma espora, fazia-os seguir em frente o dia todo e os
abandonava no instante em que se acampavam, à noite, deixando que caíssem mais
uma vez sob o domínio da tristeza, da inquietude e do descontentamento. Era
esse o orgulho que mantinha Spitz vivo e o levava a bater nos cães de trenó
que cometiam faltas, fugiam dos tirantes ou se escondiam na hora de pôr os
arreios pela manhã. Também era esse o orgulho que lhe causava receio de Buck
como um possível líder. E era esse, também, o orgulho de Buck.
Passou
a ameaçar abertamente a liderança do outro. Colocava-se entre Spitz e os que
deviam ser punidos por fugir dos arreios. E fazia isso deliberadamente. Uma
noite, veio uma nevasca violenta, e, na manhã seguinte, Pike, aquele muito
malandro, não apareceu. Estava escondido em seu ninho, bem protegido, debaixo
de uns trinta centímetros de neve. François o chamou e procurou por ele em
toda a parte. Em vão. Spitz ficou louco de raiva. Enfurecido, vasculhou o
acampamento, cheirando e cavando todos os lugares que lhe pareciam possíveis,
rosnando de forma tão assustadora que Pike tremeu quando o ouviu de seu
esconderijo.
Mas,
quando afinal foi descoberto e Spitz voou para cima dele para lhe dar um bom
castigo, Buck correu, com a mesma fúria, e colocou-se entre os dois. Foi tudo tão
inesperado e armado de modo tão esperto, que Spitz acabou sendo empurrado para
trás perdendo o equilíbrio. Pike, que até então só tremia de tanto medo,
ganhou coragem diante daquela rebelião declarada e saltou contra o líder
derrubado. Buck, para quem o jogo limpo era uma coisa do passado, um código já
esquecido, também pulou para cima de Spitz. Mas François, embora contente por
dentro, não deixou de ser imparcial e desceu o chicote sobre Buck com toda a
força. Isso no entanto, não conseguiu tirar Buck de cima do rival caído, e o
cabo do chicote teve de entrar em ação. Meio atordoado com o golpe, Buck
cambaleou um pouco para trás, e o chicote continuou descendo sobre ele enquanto
Spitz punia, de forma exemplar, o mais de mil vezes culpado Pike.
Nos
dias que se seguiram, conforme Dawson ficava cada vez mais perto, Buck ainda
continuava a se meter entre Spitz e os culpados; mas isso com muita astúcia,
quando François não estava por perto. Com essa rebeldia dissimulada de Buck,
veio uma insubordinação generalizada, que crescia mais e mais. Dave e Sol-leks
ficaram imunes, mas o resto do grupo ia de mau a pior. As coisas não davam mais
certo. Muita briga e confusão o tempo todo. Conflitos. O clima sempre agitado,
em ebulição. E, por trás de tudo isso, estava Buck. Ele mantinha François
ocupado o tempo todo, pois o condutor do trenó vivia apreensivo com a luta de
vida ou morte entre os dois; luta que, tinha certeza, aconteceria mais cedo ou
mais tarde. E, em mais e uma noite, o barulho dos cães a latir e brigar fez que
saísse do saco de dormir, com medo de que esses cães fossem Buck e Spitz.
Mas
a oportunidade não apareceu, e, numa tarde triste e melancólica, eles entraram
em Dawson com a terrível luta ainda por acontecer. Lá havia muitos homens e um
sem-número de cachorros, todos dando duro. Parecia a ordem natural das coisas
os cães terem de trabalhar. O dia inteiro, subiam e desciam a rua principal, em
longos grupos, e, à noite, ainda se podia ouvir o som dos sinos perder-se ao
longe. Puxavam madeira para cabanas e lenha, seguindo carregados até as minas,
e faziam todos os tipos de trabalho que, no vale de Santa Clara, eram reservados
aos cavalos. Aqui e ali, Buck encontrou cachorros do Sul, mas quase todos eram
selvagens huskies, meio lobos. E todas as noites, regularmente, às nove, à
meia-noite e às três da madrugada, entoavam um canto noturno, um canto
estranho e sobrenatural, ao qual Buck também se unia, com profundo prazer.
Com
a aurora boreal brilhando como chama fria suspensa no céu ou com as estrelas
saltando para seu palco escuro na dança do gelo, a terra adormecida e congelada
sob um manto de neve, o canto daqueles huskies poderia ser um desafio à vida, só
que num tom menor, com lamentos longos, profundos, e soluços, quase como um
choro, e era mais como um apelo à vida, a agonia articulada da existência. Era
um canto antigo, antigo como a própria espécie — um dos primeiros cantos do
mundo primitivo, num tempo em que as canções eram cheias de tristeza. Nele
estava a desgraça de incontáveis gerações, naquele lamento que comovia Buck
de forma tão estranha. Quando se lamentava, gemendo e soluçando, era com a dor
de existir que fora havia muito a dor de seus ancestrais selvagens, e com o medo
e o mistério do frio e da escuridão, que para eles era medo e mistério. E
ficar comovido com esse canto marcava a totalidade do processo com o qual ele
voltava, através dos séculos, às origens da vida, na era dos uivos e dos
lamentos.
Sete
dias depois de chegarem a Dawson, desceram a encosta íngreme junto ao Barracks
até a trilha do Yukon e seguiram adiante, no rumo de Dyea e Salt Water.
Perrault estava levando, se é que isso era possível, despachos ainda mais
importantes do que aqueles que acabara de trazer; ademais, viu-se tomado pelo
orgulho de ter conseguido vencer aquela dura jornada e propôs que fizessem a
viagem mais rápida do ano. Várias coisas o ajudaram. O descanso de uma semana
recuperara os cães e os deixara em plena forma. A trilha que haviam aberto
naquela região estava bem marcada e batida, pois já fora percorrida por outros
viajantes. E, além disso, a polícia instalara em dois ou três lugares postos
de mantimentos para cães e homens, o que permitia que viajassem com pouco peso.
Chegaram
ao Sixty Miles, um percurso de oitenta quilômetros, no primeiro dia; e o
segundo dia já os viu passar rapidamente pelo Yukon, bem adiantados a caminho
do Pelly. Mas uma corrida tão extraordinária não foi feita sem que houvesse
grandes problemas e muita irritação por parte de François. A insidiosa
revolta liderada por Buck havia destruído a solidariedade do grupo. Não era
mais como se um único cão puxasse os tirantes. O encorajamento que Buck dava
aos rebeldes os levava a todas as espécies de pequenas infrações. Spitz não
era mais um líder tão profundamente temido e respeitado. O antigo pavor havia
desaparecido, e eles se sentiam cada vez mais capazes de desafiar sua
autoridade. Uma noite, Pike roubou metade de seu peixe e a engoliu sob a proteção
de Buck. Em outra ocasião, Dub e Joe brigaram com Spitz e o obrigaram a abrir mão
do castigo que mereciam. Até mesmo Billee, o amável, já não era tão amável,
e já não gania de forma tão dócil. E Buck, sempre que passava perto de
Spitz, rosnava e ficava todo eriçado, de modo ameaçador. Na verdade, ele
passou a ter um comportamento muito próximo ao de um valentão e vivia
passeando para cima e para baixo, todo empinado, bem debaixo do nariz de Spitz.
Da
mesma forma, a quebra da disciplina acabou afetando as relações entre os cães.
Latiam e brigavam mais do que nunca; às vezes, o acampamento parecia até um
hospício. Dave e Sol-leks eram os únicos que se mantinham inalterados, se bem
que ficassem profundamente irritados com tanta briga e tanta confusão. François
rogava pragas estranhas e tremendas, chutava a neve de tanta raiva e quase
arrancava os cabelos. Seu chicote vivia estalando entre os cães, mas de nada
adiantava. Era só ele dar as costas, e começavam tudo de novo. Apoiava, com o
chicote, as ações de Spitz, enquanto Buck apoiava o resto do grupo. François
sabia que ele estava por trás de todos os problemas, e Buck sabia que ele
sabia; mas Buck era esperto demais para ser pego em flagrante outra vez.
Trabalhava com toda a vontade do mundo nos tirantes, uma vez que o trabalho era
agora, para ele, um verdadeiro prazer; mas prazer ainda maior era desencadear,
com muita manha e muita astúcia, uma briga entre seus companheiros e ver os
tirantes se embaraçarem.
Na
embocadura do Tahkeena, uma noite, depois da refeição, Dub desalojou um coelho
da neve, errou o pulo e acabou perdendo-o. Num segundo, todo o grupo já estava
perseguindo a caça, latindo atrás dela. A uns cem metros de distância,
achava-se o acampamento da polícia daquela região, com cinquenta cães, todos
huskies, que se uniram à caçada. O coelho fugiu a toda, rio abaixo, e desviou
entrando num estreito riacho congelado, onde manteve a mesma velocidade. Corria
leve e ligeiro sobre a superfície coberta de neve, enquanto os cachorros
sulcavam a neve. Buck ia à frente da matilha, sessenta cães, todos fortes, uma
curva atrás da outra, mas não conseguia vencer a distância. Corria abaixado,
rente ao chão, ganindo desesperado de tanta vontade de conseguir pegar o
coelho, o corpo esplêndido rasgando a neve como um raio, um salto atrás do
outro, sob o pálido luar. E, um salto atrás do outro, como um fantasma de
gelo, o coelho ia como um raio.
Todo
aquele arrebatamento de velhos instintos que, em determinados períodos, impele
os homens das cidades seguras e confortáveis à floresta e à planície
unicamente para matar outros seres com grãos de chumbo que cortam o ar semeando
a morte; a ânsia de sangue; o prazer de matar — tudo isso estava em Buck, só
que de uma forma infinitamente mais íntima. Corria à frente da matilha,
perseguindo sem parar aquela criatura selvagem, carne fresca, para matar com os
próprios dentes e lambuzar o focinho até os olhos em seu sangue quente.
Há
um êxtase que marca o apogeu da vida; além desse ponto, a vida não pode mais
avançar. E é esse o paradoxo da vida, esse êxtase que chega quando se está
mais vivo do que nunca, e chega como um completo esquecimento de que se está
vivo. Esse êxtase, esse esquecimento da existência, chega ao artista, quando
incapaz de se expressar diante de uma página que arde como fogo; chega ao
soldado, enlouquecido pela guerra, num campo arrasado, recusando a mercê do
inimigo; e chegava a Buck, conduzindo a matilha, repetindo o antigo uivo dos
lobos, dando tudo de si atrás do alimento vivo que fugia com toda a rapidez a
sua frente, em meio ao luar. Estava repetindo o som que vinha das profundezas de
sua natureza, de partes de sua natureza que eram mais profundas do que ele, as
quais retornavam ao útero do Tempo. Estava dominado pelo impulso da vida, pela
poderosa onda da existência, pelo prazer perfeito, completo, de cada músculo,
de cada junta, de cada nervo, de tudo o que era contrário à morte, que era
ardente e impetuoso, que se expressava por meio do movimento, arremessando-se
num vôo exultante sob as estrelas e acima da face da matéria morta e inerte.
Mas
Spitz, frio e calculista mesmo em seu momento supremo, abandonou a matilha e
cortou caminho através de uma estreita faixa de terra que dava num ponto onde o
riacho fazia uma longa curva. Buck não sabia do atalho, e, conforme fez a
curva, o coelho, fantasma de gelo ainda esvoaçando a sua frente, viu
outro fantasma de gelo, maior, saltar da ribanceira direto para o meio do
caminho. Era Spitz. O coelho não teve como desviar e, quando aqueles dentes
brancos lhe quebraram as costas em pleno ar, gritou tão alto quanto um homem
violentamente atingido teria gritado. Diante daquele som, o grito da Vida
mergulhando vertiginosamente de seu ponto mais alto para as garras da Morte,
toda a matilha deu início a um canto infernal de prazer.
Buck
não uivou. Não pensou duas vezes; atirou-se sobre Spitz, ombro contra ombro,
com tanto ímpeto que perdeu a chance de lhe rasgar a garganta. E rolaram,
rolaram, rolaram muitas vezes sobre a neve revirada. Spitz se pôs de pé tão rápido
que nem parecia ter caído e, mordendo o ombro de Buck, saltou para longe. Por
duas vezes seus dentes se fecharam, como se fossem uma armadilha de dentes de aço,
mordendo o ar, enquanto ele recuava, tentando se posicionar melhor, a boca
contraída, rosnando.
Num
relâmpago, Buck compreendeu tudo. Era agora. Era vida ou morte. Enquanto davam
voltas, um de frente para o outro, rosnando, as orelhas para trás, atentos a
toda e qualquer vantagem que pudessem obter, a cena pareceu tão familiar a
Buck. Supunha já ter visto tudo aquilo — a floresta branca, a terra, o luar e
a emoção da batalha. E sobre a brancura e o silêncio pairava uma calma
fantasmagórica. Não havia o mais leve sussurro no ar — nada se movia, nem
uma folha sequer, nada, a respiração dos cães suspensa, visível, erguendo-se
lentamente como fios prateados no ar gelado, quase parados. Já haviam dado
conta do coelho, aqueles cães que, na verdade, eram lobos mal domesticados; e
agora estavam todos reunidos num círculo, esperando. Também estavam em silêncio,
os olhos brilhando e a respiração flutuando, vagarosa e insinuante. Para Buck,
nada era novo ou estranho; aquela era uma cena do passado. Era como se sempre
tivesse sido assim, a ordem natural das coisas.
Spitz
era experiente; sabia lutar. De Spitzbergen, passando pelo Ártico e cruzando o
Canadá e suas terras frias e descampadas, mantivera-se inteiro no meio de cães
de todos os tipos e conquistara a liderança sobre eles. Tinha um ódio amargo,
mas não um ódio cego. Tomado pelo desejo de rasgar e destruir, jamais esquecia
que o inimigo também se encontrava dominado pelo mesmo desejo. Nunca atacava
sem antes estar preparado para receber um ataque; nunca atacava sem que,
primeiro, tivesse se defendido daquele ataque.
Foi
inútil todo o esforço de Buck para afundar os dentes no pescoço do enorme
cachorro branco. Onde quer que seus dentes batessem à procura da carne mais
mole e sensível, davam sempre com os dentes fortes de Spitz. Eram dentes contra
dentes, as bocas cortadas e sangrando, mas Buck não conseguia romper a guarda
do inimigo. Enfurecido, envolveu Spitz num verdadeiro furacão de assaltos. A
todo o instante, tentava atingir a garganta branca, de uma brancura igual à da
neve, atingir o ponto onde a vida borbulhava bem próxima à superfície; mas, a
cada tentativa, Spitz sempre conseguia abrir mais um corte em seu corpo e
escapar para o lado. Então Buck partiu para mais uma investida como se tentasse
atingir a garganta, e, de repente, afastando a cabeça para trás e jogando um
dos ombros para a frente, arremeteu na direção do ombro de Spitz, como um aríete,
pronto para derrubar o inimigo. Mas, em vez disso, foi o ombro de Buck que
recebeu mais uma mordida de Spitz, que, ágil, saltava para o lado, sempre se
afastando a tempo.
Spitz
estava sem nenhum arranhão, enquanto Buck perdia muito sangue e também as forças,
respirando com dificuldade. A luta se tornava cada vez mais desesperada. E, o
tempo todo, o círculo silencioso daqueles quase-lobos esperava ansioso o
momento de acabar de vez com o primeiro que fosse ao chão. Percebendo que o
outro começava a fraquejar, Spitz partiu para o ataque, deixando Buck
completamente bambo. Ao ver o estado de Buck, o círculo dos sessenta cachorros
ficou de prontidão; mas ele se recuperou quando estava quase tocando o chão, e
o círculo teve de recuar e esperar.
Buck,
porém, tinha uma qualidade extraordinária, que pesava em seu favor — imaginação.
Lutava por instinto, mas sabia lutar usando a cabeça, também. Avançou, como
se tentasse o velho truque do ombro; mas, no último instante, desviou e abaixou
o corpo, ficando rente à neve. E fechou os dentes na pata esquerda dianteira de
Spitz. Ouviu-se o som estalado de ossos a quebrar, e o cachorro branco, ainda
assim, enfrentou o inimigo, contando apenas com o apoio de três patas. Por três
vezes, Buck tentou derrubá-lo e, então, repetiu o truque, quebrando outra pata
dianteira. Apesar da dor e do total desamparo, Spitz fazia até o impossível
para se manter em pé. Viu o círculo silencioso, os olhos brilhantes, as línguas
para fora, a respiração prateada flutuar no ar; viu o círculo fechar-se sobre
ele, como já tinha visto, no passado, outros círculos se fecharem sobre os
perdedores. A única diferença era que, agora, era ele o perdedor.
Não
havia mais a menor esperança. Buck foi implacável. A piedade era uma coisa que
só podia existir em climas mais amenos. Preparou-se para o ataque final. O círculo
já estava tão fechado que podia sentir a respiração dos huskies a suas
costas. Podia ver os cães atrás de Spitz e por toda a volta, meio agachados,
prontos para o salto, os olhos fixos no cão trêmulo.
Por
um instante, o tempo pareceu congelar-se. Ficaram todos parados, imóveis, como
se fossem de pedra. Só Spitz estremecia e eriçava os pêlos, enquanto
cambaleava para trás e para a frente, rosnando uma última e horrível ameaça,
como se tentasse afugentar a morte agora tão inevitável. Então Buck avançou,
depois saltou para longe; mas, quando avançou, seu ombro, finalmente, bateu em
cheio no ombro do outro. O círculo passou a ser um ponto escuro na neve
inundada pelo luar, no mesmo instante em que Spitz desaparecia na paisagem. Buck
continuava de pé, observando, o grande vencedor, a fera primitiva cada vez mais
forte, que matara pela primeira vez e achara isso bom.