XVIII
NECESSIDADES
Um dia Maurício e eu fomos à Biblioteca. Em uma das estantes há uma divisória espelhada, olhei observando-me e ajeitei meus cabelos, que para minha comodidade ficavam sempre como desejava. Maurício sorriu e começamos a falar sobre necessidades.
—Patrícia, — meu amigo explicou — encarnados não julgam que a vida continua e sem saltos. As necessidades do encarnado acompanham-no como os reflexos da doença. São poucos, pouquíssimos os que ao desencarnar entendem e se libertam imediatamente destes reflexos, das necessidades, a maioria só aos poucos vai deixando.
Oscar, um conhecido, já havia sido apresentada a ele, trabalha na biblioteca. Estando perto, parou com sua pesquisa e ficou escutando a preciosa lição. Com ele, estava um rapaz. Acabou por participar da nossa conversa.
—Desculpe a intromissão. Este é Ramiro — apresentou-nos o rapaz. Após os cumprimentos, Oscar continuou a falar. — Estou bem categorizado como a maioria a que Maurício se referiu. O senhor tem razão, necessito progredir e agora. O comodismo, o estar muito bem assim, faz com que paremos. Já estive pior, mas não é por isto que não posso estar melhor.
—Realmente — disse Maurício — devemos ser aqui e agora. O que e como fazemos é o que somos.
Curiosa, indaguei:
—Oscar, como foram suas necessidades?
—Foram bem diferentes das suas. Você, Patrícia, veio sem vícios, nem de carne se alimentava. Quem não cria hábitos se adapta com mais facilidade. Você não deixou para depois, fez encarnada, eu, por minha vez, fiquei adiando minha transformação sempre para depois, mesmo quando aqui cheguei. Você não ficou com atos externos, fez interiormente. A simplicidade facilita. Observe que no Educandário as crianças se acostumam rápido e logo a maioria aprende a tirar da natureza e com naturalidade seu alimento. Eu, quando encarnado, nada conhecia do Mundo Espiritual, tinha religião de forma externa. Desencarnei e fui para o Umbral. Não era receptivo para ter um socorro e, se não sofresse, não iria dar valor ao que uma Colônia Espiritual oferece. Acho mesmo que, se viesse logo que desencarnei para cá, nem ia gostar. Senti dores horríveis, o reflexo das minhas doenças. Tinha fome, sede, sentia calor e frio. Alimentava-me de plantas que encontrava, tomava água de filetes sujos, também evacuava e urinava pelos cantos, pelo chão. Ansiava desesperado pelo cigarro e pelos meus aperitivos. Sofri muito. Por anos fiquei no Umbral. Um dia, um parente desencarnado que vagava como eu, mas que sabia ir entre os encarnados me levou para meu ex-lar terreno. Este parente vagava entre os encarnados e pelo Umbral. Fiquei com meus familiares. Senti-me melhor. Perto deles, tragava os cigarros quando eles fumavam, bebia e comia.
—Como?! — quis saber.
—Troca de energia. Se você fica perto de um fumante, sente a fumaça, se ficar colado, fuma junto. Alimentava-me quando eles iam tomar as refeições, sentava à mesa, inalava os fluidos dos alimentos. E sugava as energias dos encarnados. Com isto melhorei, mas não estava bem. Sentia dores e frio, estava triste e insatisfeito. Notei que os estava prejudicando, fiquei chateado. Não queria voltar para o Umbral e não sabia como resolver este problema. Acabei por cansar e querer uma outra forma de vida. Comecei a orar, a pedir a Jesus que me auxiliasse. Um dia, para minha alegria, um socorrista veio em meu auxílio e fui conduzido a um Posto de Socorro. Fiquei internado em tratamento, fui melhorando aos poucos. Alimentava-me quatro vezes ao dia. Esforcei-me para largar o tabaco, pois nos Postos de Socorro e nas Colônias (Postos de Socorro são na maioria pequenos locais de primeiros socorros, estão localizados na Crosta e nos Umbrais. As Colônias são maiores, são cidades espirituais.) não é dado cigarro, mas sim um tratamento para largar o vício. De qualquer forma, a luta é de cada um. Graças a Deus, consegui, logo não tinha vontade de fumar. Mas demorei para me recuperar. Encarnado, tomava banho diariamente, era higiênico. No Umbral é sujo, não há como se banhar. Sentia falta desta higiene, mas a fome, a sede e as dores eram minhas primordiais necessidades. Quando fui socorrido, estava feio e sujo. No Posto de Socorro tomava banho todos os dias, usava o banheiro para minhas necessidades.
Oscar fez uma pausa e Maurício aproveitou para nos dar alguns esclarecimentos.
—Nas cidades do Umbral, seus habitantes, irmãos ignorantes no mal, a higiene não está nos seus costumes. Porém, sabemos que muitos deles se higienizam de forma rudimentar. Conheci muitos habitantes do Umbral relativamente limpos. Isto depende de cada um. Mas, como Oscar narra, com dificuldades mais sérias, a higiene fica em segundo plano. Os que vagam sofrendo pelo Umbral não conseguem higienizar-se.
—Recuperado — Oscar continuou — quis entender o que se passava comigo, vim para a Colônia estudar e trabalhar. Nada entendia da existência desencarnada, necessitava aprender. Hoje, anos depois, gosto de ler, saber, trabalho, estou tranquilo, alimento-me pouco e minhas necessidades fisiológicas são poucas. Aqui estou bonito e sadio. Meus cabelos (passou a mão na nuca) não me preocupam.
Rimos, Oscar é careca, tem poucos cabelos.
—O que demorei para largar foram meus óculos — continuou nosso amigo —, tinha a impressão que sem eles não enxergava. Por incrível que possa parecer, estive sempre com eles, no Umbral e vagando.
—É mesmo! — exclamei. —Não é comum ver alguém de óculos aqui. Lembro que vovó Amaziles usava encarnada óculos e agora enxerga muito bem.
Maurício nos esclareceu.
—Defeitos, doenças, são do corpo carnal. Embora a impressão destes possa ser forte no corpo perispiritual. Aqui, basta compreender, aprender, para sentir-se sadio. Quando digo aqui me refiro às Colônias e Postos de Socorro. Quem vaga ou por afinidade acaba nos Umbrais, quase sempre tem doenças e deficiências como acompanhantes. Muitos desencarnados bons, ao quererem se identificar entre os encarnados, podem plasmar óculos, ou até mesmo deficiências. O livre-arbítrio é respeitado. Conheço alguns espíritos bons, trabalhadores do Bem, que não querem se desfazer das deficiências, dos óculos ou das bengalas. Estão bem assim, usam porque querem. Como Oscar, é careca porque quer. Se quisesse, teria uma bela cabeleira.
Rimos.
—Realmente — disse Oscar —, identifico-me com minha careca e não acho uma deficiência. Mas o que acho bom mesmo é não ter que ir ao dentista.
—É mesmo! — exclamei novamente. — Não pensei nisto, tenho visto aqui todos com dentes perfeitos.
Maurício aproveitou para nos esclarecer.
—Patrícia, todos aqui na Colônia podem ter dentes perfeitos. Ao se recuperar de doenças, recupera-se também a dentição e não estraga mais, nada de cáries. Infelizmente, os desencarnados que vagam, os que não são socorridos, continuam como estavam, se não tinham dentes continuam banguelas. Não tenho conhecimentos que estragam mais os dentes, creio que continuam como desencarnaram.
—Aqui na Colônia não ficamos mais doentes? — quis saber curiosa.
—Uma vez sadio, sempre sadio. Um desencarnado bem aqui na Colônia e nos Postos de Socorro não adoece mais. Mas, se não estão totalmente recuperados e saem sem permissão, voltam para os ex-lares sem autorização, ou seja, vão vagar, quase sempre voltam a sentir os reflexos de suas doenças. Não sabem ainda se manter sadios sem os fluidos benéficos destes lugares. Mas os que seguem os regulamentos continuam sempre bem. Não há por que ter doenças.
—Maravilha! — exclamei.
XVIII
A HISTÓRIA DE RAMIRO
Ramiro nos escutava com atenção, então lhe perguntei:
—E você, Ramiro, não quer falar um pouco de si? Escutar amigos é obter informações.
—Até pouco tempo envergonhava-me de falar de minha vida encarnada, da minha desencarnação. Depois, aprendi que todos nós temos nossas histórias e que aqui na Colônia não há críticas e, sim, ajudas. Tem razão, Patrícia, escutar amigos é receber preciosas lições. Minha desencarnação foi bem triste. Por que a maioria das desencarnações é triste?
Fez-se silêncio de minutos. Realmente, pensei. De quase todos aqui, escutei: “Minha desencarnação foi triste... ou sofri muito na minha desencarnação...” Foi Maurício quem respondeu:
—Porque a maioria não pensa na desencarnação para si, não se prepara para a continuação da vida. Vivem encarnados como se fosse seu objetivo maior, amam mais a matéria que as verdades espirituais. Não amam o verdadeiro e, sim, as ilusões da carne e a elas ficam presos. Desesperam ao deixar o corpo físico perecível, esquecem que este veículo físico é temporário. Não vivem de conformidade com os exemplos de Jesus, temem a morte do corpo. Assim sendo, a desencarnação é triste e dolorida. Mas os bons, os que encarnados serviram ao Pai, viveram os ensinos de Jesus, nada temem e a desencarnação é uma alegria.
Maurício quietou e olhamos para Ramiro, convidando-o a continuar narrando. Nosso amigo não se fez de rogado.
—Desencarnei jovem. Tomava drogas, não era ainda um dependente, eu pensava não ser. Iludimo-nos muito ao fazer uso de drogas, achamos que paramos quando queremos, mas ao tentarmos nos libertar é que compreendemos o quanto estamos presos a elas. Comecei com maconha e passei à cocaína. Minha família não sabia, não soube. Não tinha motivos para justificar meu envolvimento com as drogas. Agora, tenho certeza que não há motivos que justifiquem esta loucura. Comecei quando namorei uma garota muito bonita e cobiçada pelos rapazes da escola. Ela e sua turma fumavam e me induziram a fumar maconha. Com medo idiota de ser tachado de bobo, imaturo, etc., passei a fumar. Terminei o namoro mas fiquei na turma. Numa corrida, num “racha” com uma moto emprestada, tive um acidente. Caí da moto e bati com a cabeça numa pedra. Meu corpo morreu na hora.
Fiquei muito perturbado. Vaguei por entre os familiares e com os amigos da turma. Os membros da minha turma deram uma parada com as drogas, temeram com a minha desencarnação. Alguns dias depois que desencarnei comecei a sentir falta da cocaína. Todo meu perispírito ansiava pela droga. Foi horrível. Em casa, o desespero de ver minha mãe chorar agoniava-me. Sentia-me culpado. E fui. Desencarnei por minha imprudência, por brincar com a moto, veículo tão perigoso e por estar drogado. Desencarnei antes da hora prevista. O sofrimento dos meus me enchia de culpa e remorso. Incomodava-me ficar em casa, saí e vaguei. Entendi que desencarnara, embora não soubesse ao certo o que ocorrera comigo, meu corpo morreu, mas eu continuava vivo e não sabia o que fazer. Foi aumentando a vontade de injetar cocaína. Nunca pensei em sofrer tanto. Esta foi minha necessidade primordial. Não me interessava em alimentar, com frio ou calor, às vezes sentia sede. Resolvi buscar a droga. Sabia de outra turma que tomava muito mais drogas que a nossa. Fui procurá-los. Nem me aproximei. Ao lado deles estavam monstros horríveis. Mais tarde vim a saber que eram tão somente desencarnados viciados, irmãos em sofrimentos, presos a drogas a vampirizar encarnados viciados.
Estava desesperado. Sentia minha avó orando por mim. Minha avó era espírita, o que era motivo de gozações de nossa parte, principalmente dos netos. Pensei: não é que minha avó deve estar certa! Morri e estou aqui como espírito vagando. Lembrei dos termos que ela usava. Sabia onde se localizava o Centro Espírita que ela frequentava e fui andando até ele. Estava aberto. Entrei envergonhado. Quando um senhor, um socorrista desencarnado do Centro me indagou o que queria, falei implorando: “Me socorre pelo amor de Deus! Aqui não ajudam espíritos que vagam? Morri e não sei o que fazer. Estou desesperado. Quero tomar uma dose de cocaína, senão morro. Não posso morrer outra vez, não é? Se não posso morrer de novo, não sei o que acontecerá se não tomar a cocaína. Minha avó frequenta aqui. Socorre-me!”
O socorrista me olhava bondosamente, caí nos seus braços e dormi. Sou grato aos Espíritas, às pessoas bondosas que me acolheram. Fui levado para um hospital, a um ala onde se faz a recuperação de viciados em tóxicos. Não foi fácil minha luta com o vício. Desesperava e era bondosamente auxiliado pelos irmãos que lá trabalham. Foram muitos meses em tratamento. Tomava passes, aprendi a orar, nos momentos que não estava em crise, lia livros Espíritas e o Evangelho. Tomava refeições, água, banhava-me somente quando me sentia melhor.
Quando melhorei, fui ver outros irmãos imprudentes como eu. O que vi, não esqueço. Sofrimentos que nunca pensei existir. Vi muitos jovens deformados, débeis em recuperação, iguais aos que julguei serem monstros. Entendi que socorridos estavam no caminho que os livraria do sofrimento. Pior eram os que não tinham socorro, os que não queriam se libertar. Compreendi que não sofri tanto porque minha avó com suas orações sinceras me guiou. E também porque não fiz outras ações erradas, não cometi crimes tão comuns entre os toxicômanos. E busquei logo um socorro, senão ia vagar em sofrimento como tantos outros. Desintoxicado vim para o Educandário, onde estudo e me preparo, quero, no futuro, ser um socorrista de irmãos escravos dos vícios. A necessidade que tive desencarnado foi para meu sofrimento, minha agonia, a cocaína. Só ansiava, desesperado, por ela.
Ramiro calou-se e foi abraçado por Maurício.
—Estamos presos aos que nos ligamos quando encarnados. Tenho certeza de que você, meu jovem, será um excelente socorrista.
—Será, sim! — Oscar falou, sorrindo.
Ramiro, aproveitando a presença de Maurício, indagou-o ávido por aprender.
—Maurício, o que acontece com as pessoas com doenças como o câncer, que tomam remédios fortes para conter as dores e que muitas vezes estes medicamentos abreviam a existência encarnada. Elas também sentem falta dessas drogas quando desencarnadas? Está errado tomá-las já que abreviam a existência corporal?
—Cuidar do corpo físico é obrigação de todos nós que por um período temo-lo para viver encarnado. Temos que dispor do que a Medicina terrena nos oferece para curar as doenças. Se o que dispomos para amenizar nossas dores pode abreviar a existência, não é culpa nem dos médicos nem dos doentes. Acredito que a ciência logo encontrará novas formas de alívio e curas. Mas, meu jovem Ramiro, ao tomar uma droga como medicamento indispensável, ela não nos fará falta quando desencarnados. Porém, como médico socorrista, há anos vejo muitos agirem de várias formas diante da dor. Os que sofrem doenças dolorosas no corpo, com resignação, são socorridos, logo estão bem. Os que se revoltam diante da mesma dor desencarnam, nem sempre podem ser socorridos e sentem os reflexos da doença e as dores. Querem, às vezes, os remédios para se curar, suavizar as dores. Mas não são viciados, não sentem falta da droga, pois as tomaram como medicamento. Tenho visto, aqui, pessoas que ficaram dependentes de soníferos. Quando socorridas, têm que aprender a dormir sem eles, têm de se livrar desta dependência. Remédios devem ser tomados quando necessário. E nos casos de câncer, doença que normalmente provoca dores terríveis, mesmo se acontecer de abreviar a existência é certo tomá-los. É o que a Medicina dispõe como tratamento. O uso é permitido, o mau uso é que é condenado.
Aquietamo-nos por momentos. Achando que podia nos elucidar mais, bondosamente Maurício completou:
—Podemos dizer que os habitantes da Terra sejam encarnados ou desencarnados são de dois modos. Há os que por esforço se tornam auto-suficientes ou servos úteis e há os necessitados, embora entre os dois haja aspirantes, os que querem aprender a ser úteis. A faixa dos primeiros infelizmente é pequena. Basta observar nos Centros Espíritas: os que vão para ajudar são poucos e grande parte são necessitados porque querem. Tendo oportunidade não querem passar de necessitados a auto-suficientes; estas necessidades acarretam sofrimentos como ocorreu com Oscar e Ramiro, e ocorre com tantos outros. Ser ou não ser. Encarnado ainda pode enganar e iludir-se. Desencarnados não há como enganar. Os fluidos, vibrações de um espírito bom, são agradáveis e os fluídos dos espíritos ignorantes são maus. O espírito tem sempre muitas oportunidades e pode pelo seu livre-arbítrio refletir o belo e o bem, ou o feio e o mal. O belo e o bem se apresentam na harmonia, no equilíbrio. E desta harmoniosa união surge o amor que leva a progredir espiritualmente. O feio apresenta-se na turbulência da ignorância, gerando o ódio, a inveja, os desejos insaciáveis, o egoísmo que é a maior chaga perturbadora, o luxo e a luxúria, tornando o homem um verdadeiro vulcão de conflitos interiores, tornando a vida humana um inferno seja encarnada ou desencarnada.
Devemos compreender sem ilusão o que realmente somos e não o que pensamos ser e com coragem realizar nossa transformação. Ser agora no presente. O futuro é uma consequência vivida do presente e não fruto de aspirações de uma mente ociosa que deixa sempre esta transformação para depois. É nossa obrigação passar de necessitado a útil.
Oscar, Ramiro e eu agradecemos comovidos a Maurício pela bela lição. Prometi a mim mesmo não ter mais necessidades, não somente as que se refletem do corpo físico como a de alimentação, a de dormir, etc. Mas as principais: não ser pedinte de graças, não querer que outras pessoas façam o que posso fazer e também aprender para ser útil e para servir.